03 novembro 2024

Qual direita?

Novidades de uma direita despolitizada
As eleições municipais no Brasil mostraram que o eixo da política se deslocou para a direita, mas se afastou do fascismo
Silvio Caccia Bava/Le Monde Diplomatique   

As análises dos resultados eleitorais apontam que o eixo da política se deslocou para a direita, mas se afastou do fascismo, e reafirmam o descolamento da política nacional das eleições municipais. Não é bem assim, nem aqui nem no resto do mundo. 

Na política nacional, as eleições de 2022 foram vencidas por uma ampla coalizão, liderada pelo PT, um partido de esquerda que montou um governo de centro-direita. Foi uma estratégia brilhante e vitoriosa para combater o fascismo, mas que cobrou um custo alto em termos políticos. No entanto, a avaliação estava correta: evitar a todo custo outro governo Bolsonaro.  

O governo federal encontra limites para realizar as mudanças tão desejadas e necessárias para reduzir a desigualdade, a pobreza e a exclusão social, como propõe o presidente Lula. Depara com resistências fora e dentro do governo, da parte de membros de partidos conservadores e também dos donos do dinheiro, que insistem no refrão do ajuste fiscal e de que as políticas sociais não cabem no orçamento da União. Isso para não falar nas dificuldades de relação com o Congresso, especialmente a Câmara dos Deputados, controlada por um Centrão integrado por mercadores de votos em rota de colisão com o Executivo e o Judiciário, agora por conta dos bilhões de reais sequestrados do Orçamento Público pelas emendas parlamentares. O cheiro de golpe continua no ar.  

Com todas as suas dificuldades e diferenças, a coalizão eleita apresentou um programa comum de governo, que se propõe a combater a fome e a pobreza, e a criar um novo modelo de industrialização. As eleições municipais, por sua natureza local, não permitiram a costura política feita pelo PT na eleição nacional. 

Agora, em 2024, a cara conservadora da maioria dos brasileiros deu a marca da eleição. Compreender as expressões dessa cara conservadora, seus medos e aspirações, e encontrar as pontes de diálogo, de aproximação, é tarefa dos defensores da democracia e dos direitos humanos. É graças a essa base conservadora, que defende valores, uma moral, uma família, o empreendedorismo, que a extrema direita conquista adeptos. É essa base que a esquerda precisa disputar, afirmando seus valores, mas em uma perspectiva de construção do coletivo, do espaço público, de soluções comunitárias e defesa de direitos.  

O resultado eleitoral indica que a extrema direita soube realizar melhor essa tarefa de compreender medos e aspirações, seja por meio de canais convencionais, como as igrejas evangélicas neopentecostais, seja pelas redes sociais, uma nova fronteira da política. Um destaque nessa eleição é a presença de uma direita hiperpolitizada, militante, com trabalho de base, impulsionando mobilizações em defesa de seu projeto político.1

Uma direita hiperpolitizada? Como assim? Não sejamos ingênuos, isso não surge do dia para a noite, tampouco por uma inspiração especial. Há aí muito trabalho e um vultoso investimento de décadas, e que continua fluindo.  

Operando em uma nova realidade, em que o grande capital é cada vez mais concentrado, os grandes empresários se distanciam da democracia. Há de fato uma estreita relação entre a extrema direita e grandes empresas. A democracia tenta impor regulações que a extrema direita não quer. Elon Musk tem também suas versões nacionais.

Mas vejamos como se construíram as capacidades que nos levaram ao resultado destas eleições.

Nos últimos vinte anos foram criados no Brasil mais de trinta institutos que formulam estratégias e políticas de direita, os think tanks, como o Instituto Millenium. Fundado em 2005 e financiado por entidades como a Rede Globo e o Bank of America, ele atua para disseminar sua ideologia, buscando transformá-la em senso comum e, assim, criar as bases para políticas de entrega das riquezas do Brasil. Entre seus fundadores estão João Roberto Marinho (Globo) e Paulo Guedes.

Essas iniciativas têm o patrocínio de uma rede de financiamento internacional denominada Atlas Network, que declara, nas palavras de seu ex-presidente, que seu objetivo é criar quantos think tanks forem necessários para derrubar governos de esquerda na América Latina e influenciar a composição dos parlamentos. 

Além disso, foram criados grupos de ativistas e militantes a partir, por exemplo, da vinda para o Brasil da Students for Liberty, que resultou no MBL. Essa extrema direita também lidera nas redes sociais, onde tem uma atuação das mais importantes. O Gabinete do Ódio, os robôs e as fake news invadem o espaço digital e mostram um enorme poder. 

Completam a frente de atuação o financiamento nacional e internacional (Usaid, Fundação Interamericana, Fundação Lemann etc.) para bolsas de estudo, pesquisas, análises e informações que formam novas lideranças, sustentam e alimentam seu ideário neoliberal e o difundem como ciência. 

Não é preciso muita perspicácia para perceber que as TVs e a grande imprensa corporativa abraçam e defendem esse ideário neoliberal e suas implicações políticas. Basta acompanhar a discussão nessas mídias sobre a independência do Banco Central, a necessidade do ajuste fiscal e agora as agências de regulação. Demandam independência de seus negócios em relação ao controle público, aos entes reguladores do Estado.

A propaganda contínua do neoliberalismo nas TVs e jornais, valorizando o individualismo, a liberdade para a competição, o cada um por si, o empreendedorismo, apresenta um caminho para o sucesso. São armas poderosas de convencimento. 

A disputa pela liderança desse movimento fascista é também uma novidade. O antes monolítico bloco bolsonarista agora enfrenta novas lideranças e governadores, como Ronaldo Caiado (GO) e Ratinho Jr. (PR), dispostos a disputar a Presidência da República em 2026. São tensões que já se expressam, mas não se pode desprezar a força política do clã Bolsonaro. O plano B, caso Jair Bolsonaro se mantenha inelegível e enfrentando processos judiciais, aponta Flávio Bolsonaro como candidato em seu lugar. 

É bom frisar que o fascismo foi derrotado nestas eleições, mas continua vivo, atuante, e é expressivo. O PL teve o maior número de votos para prefeito. E Pablo Marçal (PRTB) quase passou para o segundo turno na eleição em São Paulo, amealhando 28,13% do total de votos, isto é, mais de 1 milhão de votos. O governador Tarcísio de Freitas também se projeta como uma liderança da extrema direita, assumindo uma dimensão mais moderada, mas que evidentemente é um esforço de um bolsonarista-raiz.   

A atuação dos parlamentares, com emendas destinadas a reforçar sua presença em cidades que são sua base eleitoral, influiu muito nestas eleições. Garantiu a onda conservadora e a recondução de dezesseis dos dezenove prefeitos de capital que se recandidataram. É o financiamento do continuísmo, dos grupos políticos no poder.   

Com esse quadro eleitoral, pode-se dizer que o que antes se chamava de centro, como o PSDB, cedeu espaço para o extremismo, aproximando-se mais da direita, e hoje abraça um ideário que é da extrema direita, com destaque para suas manifestações em favor de golpes de Estado, como Aécio Neves expressou quando dos resultados da eleição presidencial.

Nesse cenário político há críticas crescentes ao papel da esquerda, sua incapacidade de se aproximar do povo, sua falta de propostas, sua falta de renovação de quadros. Mas trata-se de simplismo e falsidade acusar a incapacidade da esquerda de responder a esses ataques, ignorar toda a luta dos trabalhadores e das esquerdas para conquistar espaços e direitos, e tachá-las hoje de incompetentes ou incapazes de levar à frente seus projetos. 

Desde que o neoliberalismo se impôs como hegemônico, nos anos 1980, assistimos aos ataques aos sindicatos, aos movimentos sociais, aos grupos defensores de direitos, que foram se fragilizando e limitando sua atuação nos espaços públicos, nos debates, nas disputas por políticas públicas, nas disputas pelo poder. No Brasil, esse processo se acentuou a partir dos anos 1990, quando FHC assumiu radicalmente o neoliberalismo e passou a entregar as riquezas naturais e o patrimônio público principalmente a grupos multinacionais, e o fez por meio dos processos de privatização.

Mas o conflito permanece e se agudiza, já que a desigualdade aumenta, os ricos ficam mais ricos, a exclusão social é maior, o meio ambiente é destruído para favorecer o agronegócio e a mineração, a violência se torna a principal ação de controle sobre a sociedade.  

Então fica a questão: as esquerdas, os movimentos sociais e os grupos que se organizam na defesa de direitos contam com o quê? Quem os apoia? De onde podem retirar sua força?

Aqui entra uma discussão central. A história demonstra que a única forma de enfrentar a voracidade sem limites do capital é com a força das mobilizações populares atuando em um espaço democrático. E esse espaço democrático precisa ser alargado para haver a participação das representações coletivas, dos múltiplos interesses da sociedade civil e dos grupos de defesa de direitos nos processos de decisão. Só assim a agenda de mudanças para superar as desigualdades e os privilégios poderá penetrar os espaços da democracia, como o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas, as Câmaras Municipais, os Conselhos de Gestão e os próprios Executivos.    

Não se trata de quem ou de que partido oferece o melhor Bolsa Família, presta o melhor serviço. Trata-se de construir poder, capacidade de pressão social para influenciar a política. 

Há todo um desafio colocado por estas eleições municipais no sentido de que a disputa política, a disputa pelo poder, seja assumida pelas forças de esquerda também em nível local, nas municipalidades. Para isso, o PT e as demais forças de esquerda precisam buscar a capilaridade, a presença junto à realidade popular, e ampliar suas ações para além do plano institucional. 

Precisamos também fortalecer nossas capacidades de ação política. Precisamos de nossos think tanks, de uma imprensa crítica ao neoliberalismo e voltada para o fortalecimento dos movimentos sociais e coletivos da sociedade civil, de grupos de militância nas ruas. Os governos passam, mas a capacidade de defesa de direitos e da democracia deve se acumular na sociedade civil. Ou não teremos poder para operar mudanças.   

1 Antonio Carlos A. Lobão, citado por José Geraldo de Sousa Junior, “Eleições municipais: o que de novidade trazem para a política”, Instituto Humanitas Unisinos, 16 out. 2024. 

[Ilustração: Claudius]

Leia sobre temas ausentes na campanha eleitoral https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/10/minha-opiniao_27.html

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