Não é o
propósito deste artigo tratar das dificuldades econômicas que o Brasil está
enfrentando no momento presente. Todos sabemos a respeito do aprofundamento do
quadro recessivo, do aumento do desemprego e da redução sistemática da
capacidade do Estado em oferecer os serviços básicos de cidadania a sua
população.
Por Paulo Kliass*, no portal Vermelho
É de amplo conhecimento
também que o quadro atual guarda relação íntima com a opção realizada pela
Presidenta Dilma logo após a vitória eleitoral de outubro de 2014. Naquele
instante, ela resolveu abandonar o programa de governo que apresentara à
população e entregou a condução da política econômica nas mãos dos mais
legítimos representantes do financismo.
Os resultados vieram na
sequência. Convencida de que o essencial seria combinar a mistura explosiva de
juros elevados com cortes nas despesas públicas, a candidata do coração valente
converteu-se na fiadora entusiasta da política do austericídio. O País iniciou
uma perigosa aventura ladeira abaixo,
onde a meta principal do governo era
centrada no seguinte binômio: cortar gastos sociais e promover arrocho
monetário.
Ocorre que nem tudo que
atinge o nível do péssimo tem como única opção sua melhoria. Assim como ainda
não chegamos ao fundo do poço, esse quadro de perversidade social e econômica
tem todas as condições de se tornar ainda mais dramático. E aqui eu me refiro
explicitamente à possibilidade de êxito da estratégia golpista em curso e do
eventual afastamento de Dilma da Presidência da República. Há sérios riscos de
um enorme retrocesso, e não apenas em termos da colocação em xeque dos
fundamentos do Estado democrático de direito. Apesar da gravidade da crise, é
importante percebermos que a coisa pode piorar, e muito.
Nesse caso, estaria
aberta a alternativa de montagem de uma equipe de governo sob a batuta do vice
Michel Temer. Seu partido, o PMDB, apresentou há alguns meses um programa de
saída para a crise, que seu recebeu o sugestivo título de“Uma ponte para o
futuro”. Ali estão apresentadas as propostas que expressariam a divergência da
direção da agremiação com relação à condução da política econômica de Dilma.
Porém, a leitura atenta do documento revela a essência conservadora de suas
sugestões.
Na verdade, ao contrário
do que deixa a entender, o que o texto oferece ao leitor é uma verdadeira
“ponte para o passado”. Ali mantém-se o diagnóstico de que os maiores problemas
enfrentados hoje pelo Brasil são a crise fiscal, o suposto descontrole das
contas públicas e a retomada da inflação. Assim, a solução passaria pela
retomada do tripé da política macroeconômica, para conferir maior credibilidade
ao governo. E nesse ponto o programa peemedebista se articula com as ideias dos
economistas vinculados ao tucanato, cuja expressão maior agora é representada
por Armínio Fraga. Além disso, vale lembrar que um dos nomes cogitados para
comandar a área econômica do governo de “transição” é Henrique Meirelles,
ex-tucano, atual correligionário de Temer e sempre quadro bem preparado da
banca internacional.
Isso significa que a
taxa oficial de juros, a SELIC, deveria ser mantida nos níveis atuais ou ainda
mais elevados, pois seria o único mecanismo para evitar a alta dos preços. Isso
significaria aumentar ainda mais a extração de superávit primário, de forma a
assegurar tranquilidade ao sistema financeiro. Mas para obter esse resultado, o
novo governo deveria reduzir ainda mais as despesas orçamentárias com a área
social e com os investimentos. Afinal, a mágica embutida na armadilha do
superávit primário é justamente deixar de fora do cálculo as despesas de
natureza financeira, ou seja, aqueles pagamentos destinados a cobrir as
obrigações com juros e serviços da dívida pública.
Há uma tentativa em
marcha de promover a desconstrução dos avanços obtidos na Constituição, cujos
dispositivos asseguram à população o acesso a valores universais como educação,
saúde e previdência social, por exemplo. O argumento falacioso cada vez mais
difundido é que os direitos ali previstos foram incluídos em 1988 e não cabem
mais no orçamento nos dias de hoje.
Os golpistas pretendem
dar continuidade às mudanças iniciadas quando Joaquim Levy ocupava o Ministério
da Fazenda e que foram mantidas mesmo depois da sua substituição por Nelson
Barbosa. Trata-se de retirar direitos na área de proteção do trabalhador, a
exemplo do seguro desemprego, do abono salarial, do auxílio doença e outros
benefícios previsto na CLT. Trata-se de retirar direitos no sistema de previdência
social, por meio da divulgação enganosa de falsos déficits estruturais do
modelo gerenciado pelo INSS e da solução milagrosa que viria sob a forma de uma
“reforma previdenciária”.
O programa liberalóide
do golpismo pretende restaurar a ideia do Estado mínimo, com a intenção de
ampliar o leque de alternativas para o processo de acumulação de capital. Com
isso, aprofunda as sugestões de privatização de empresas públicas e a
generalização de concessões e permissões de serviços públicos ao capital privado.
Pegando uma carona oportunista na crise a que a Petrobrás está atualmente
submetida, cria-se um movimento para jogar a opinião contra a existência de
empresas estatais. Em um cenário de depressão das atividades econômicas, uma
venda eventual de tal patrimônio seria realizada a preços bastante reduzidos.
Uma triste repetição daquilo que foi a entrega da Vale, das empresas de
telefonia e de eletricidade sob a batuta de FHC.
Outra frente de ação do
retrocesso seria a tão falada independência do Banco Central. Os representantes
desse pensamento neoliberal não se cansam de insistir que os problemas da
inflação e do gasto público excessivo são explicados pela chamada
“interferência política” na condução da política monetária. Assim, clamam por
uma falaciosa neutralidade técnica na direção do Banco Central, que seria
obtida por meio dessa autonomia radical a ser conferida por lei a seus
diretores, que teriam um mandato fixo e que seriam inamovíveis partir da posse.
O problema é que não
existe um saber isento ou neutro na formulação e na implementação da política
econômica. A outorga de um imenso poder a uma tecnocracia para decidir como bem
entender a respeito de aspectos essenciais da política monetária é um movimento
antidemocrático e antirepublicano. Seria a perpetuação do encastelamento do
financismo no comando de uma agência do governo federal que deveria, ao
contrário do que tem feito há décadas, promover a fiscalização e a regulação do
sistema financeiro.
Na linha da distribuição
de renda e da remuneração das camadas da base da pirâmide social, o discurso
dos apoiadores do golpe propõe abertamente a revogação da atual lei de
valorização real do salário, bem como a introdução de regras para promover a
desvinculação do salário mínimo dos pisos de benefícios da previdência social.
Com isso, estaríamos frente à real possibilidade de redução ainda mais
expressiva das conquistas obtidas ao longo da última década.
Enfim, como se pode
perceber, é imensa a lista de malefícios que uma eventual vitória golpista
poderia promover em nosso País. Seria a trilha para retroagir a um Brasil do
século passado. Corremos o risco de voltarmos a ser um país muito mais marcado
pela desigualdade socioeconômica do que essa ainda existente e pela eliminação
de todo e qualquer traço de um Estado capaz de operar como estímulo ao
desenvolvimento inclusivo e sustentável.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão
Governamental, carreira do governo federal.