30 dezembro 2025

Palavra de poeta

O habitante
(ao meu pai)
Mia Couto  

Se partiste, não sei.
Porque estás,
tanto quanto sempre estiveste.

Essa tua,
tão nossa, presença
enche de sombra a casa
como se criasse,
dentro de nós,
uma outra casa.

No silêncio distraído
de uma varanda
que foi o teu único castelo,
ecoam ainda os teus passos
feitos não para caminhar
mas para acariciar o chão.

Nessa varanda te sentas
nesse tão delicado modo de morrer
como se nos estivesse ensinando
um outro modo de viver.

Se o passo é tão celeste
a viagem não conta
senão pelo poema que nos veste.

Os lugares que buscaste
não têm geografia.

São vozes, são fontes,
rios sem vontade de mar,
tempo que escapa da eternidade.

Moras dentro,
sem deus nem adeus.

[Ilustração: Hugo Castilho]

Leia também um poema de Sophia de Mello Breyner Andresen https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/08/palavra-de-poeta_3.html 

Imprensa "marron"

O massacre do BNDES e o caso Malu Gaspar
Malu Gaspar foi porta voz do MPF na campanha implacável contra o BNDES. Confrontada com dados reais... ignorou e não deu desmentido.
Luís Nassif/Jornal GGN  

No auge da Lava Jato, o BNDES foi alvo de uma campanha implacável do Ministério Público Federal, através do procurador Ivan Marx. O auge foi uma condução coercitiva de quase 40 funcionários. Foi cometida toda sorte de vilania. 

Principal porta-voz da operação na mídia, Malu Gaspar contava que um executivo da Andrade Gutierrez só conseguiria ser liberado se entregasse o BNDES. O artigo terminava com um fecho ameaçador:

“O que está claríssimo é que, se depender da Lava Jato, não sobrarão mistérios a respeito dos esquemas que cercaram o banco de fomento. Em entrevista à mesma Época que publicou a delação de Antunes, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos porta-vozes da força-tarefa de Curitiba, foi direto: “Só há lugar para mais uma empreiteira” nos acordos com o MP. O que ele não disse, mas até as hortências dos parques de Curitiba já entenderam, é que, se quiser ser essa empreiteira, a Odebrecht tem de entregar o BNDES”. 

Aí entra o padrão que conspurcou o jornalismo no período Lava Jato e, agora, ameaça voltar. No Foro de Teresina (o podcast da revista Piauí) Malu despejou novas acusações contra o banco, nas negociações com a JBS, tomando por base o mesmo procurador Ivan Marx. Havia muita informação incorreta.

Um assessor do banco entrou em contato com um conhecido, que trabalhava na revista Piauí, que lhe passou o contato de Malu.

Conversaram. O assessor dividiu sua exposição em dez pontos, demonstrando que as acusações de Ivan Marx não paravam de pé. Até reconheci que num primeiro momento era razoável ter alguma dúvida. Afinal, a JBS nunca tinha precisado lidar com o setor público e, na primeira vez que precisam, a empresa se torna a maior do mundo em proteínas. Num ambiente marcado por corrupção, seria fácil suspeitar da afirmação de Wesley Batista de que no BNDES “nunca me pediram nada de errado, do presidente ao faxineiro”.  

Mas era isso mesmo e Malu recebeu a informação sobre porque os sistemas de compliance do banco impedia a concretização de operações de suborno. Depois dos dez pontos, o assessor fez  uma correção técnica. Malu tinha dito que o BNDES estava alavancado. Foi-lhe explicado que era o contrário disso: o banco tinha índice de Basileia de 30%, quando o piso é 11%. O BNDES tinha se desalavancado.

Quando o programa seguinte saiu, Malu mencionou o contato e admitiu que devia uma correção. Qual foi? A do índice de Basileia!

O assessor escreveu para ela, explicou que o Índice da Basiléia era uma correção lateral, que havia acusações graves e infundadas, por parte de Ivan Marx, que tinham sido esclarecidas.

Ela disse que faria uma nova correção, mas que jamais foi mencionada ou publicada.

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Leia também: Sempre na superfície maledicente https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/minha-opiniao_22.html

Fotografia

 

Elliott Erwitt 

A repórter que desnudou o ChatGPT https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/resistencia-social-e-codigo-aberto.html 

Brasil em ebulição

No Brasil, 2025 é marcado por prisão de Bolsonaro, luta por soberania e embates no Congresso
Prisão de ex-presidente e militares representa marco histórico; Lula se destacou pela defesa da soberania frente a ataques de Trump
Portal Grabois www.grabois.org.br   

O ano de 2025 foi marcado pela tensão entre o Congresso Nacional, impulsionado pela ala conservadora formada pela aliança entre o centrão e a extrema direita, o Executivo e o Judiciário brasileiro, com atuação destacada no julgamento dos acusados pela tentativa de golpe, no dia 8 de janeiro de 2023. O processo resultou na prisão do ex-presidente Jair Bolsonaro e de militares ligados a ele.

Em um ano de ataques por parte dos Estados Unidos, no primeiro ano da nova gestão de Donald Trump, a atuação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se destacou pela defesa da soberania brasileira, pelo fortalecimento da presença do Brasil no BRICS e pelo posicionamento do país como representante do Sul Global. 

O ano político no Brasil começou com a eleição dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, respectivamente Hugo Motta (Republicanos-PB) e Davi Alcolumbre (União-AP), atreladas à manutenção da distribuição de emendas parlamentares, anunciando a disputa de poder com o Executivo.

Em seu discurso de posse, Motta afirmou que não houve tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023, mas sim vandalismo, sinalizando espaço para que projetos que concedam anistia aos golpistas de 8 de janeiro avancem no Parlamento, conforme analisou em sua coluna Ronald Freitas, membro do Comitê Central do PCdoB e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da FMG.

denúncia da Procuradoria-Geral da República, encaminhada ao Supremo Tribunal Federal (STF) em fevereiro, aponta que Bolsonaro e outras 33 pessoas faziam parte de uma organização criminosa “constituída desde pelo menos o dia 29 de junho de 2021 e operando até o dia 8 de janeiro de 2023, com o emprego de armas (art. 2º da Lei n. 12.850/2013)”.

No documento de 272 páginas, o procurador-geral Paulo Gonet responsabiliza diretamente o ex-presidente pelos ataques aos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 e pelos planos de assassinato do presidente Lula, Geraldo Alckmin e do ministro do STF, Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Apontado como líder da trama golpista, Bolsonaro é acusado junto de outros réus por cinco crimes: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático, golpe de Estado, dano qualificado por violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado.

“Pela primeira vez na História do Brasil, uma tentativa de golpe de Estado foi alvo formal de denúncia da Procuradoria-Geral da República. O ineditismo levará militares de altíssima patente, filhotes do regime de exceção, da ideologia da tortura e da Lei de Segurança Nacional, ao banco dos réus, por conspirar contra um governo democraticamente eleito”, destacou a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) em sua coluna.

A reação da extrema-direita começou pelo Congresso Nacional, a partir da decisão do presidente da Câmara, Hugo Motta, que colocou em regime de urgência a tramitação do Projeto de Lei nº 2858, de 2022, com o objetivo de anistiar Bolsonaro e a cúpula militar golpista, após a denúncia da PGR.

Em março, Bolsonaro se tornou réu por tentativa de golpe de Estado na Ação Penal 2668, em decisão unânime do STF. Os ministros Flávio Dino, Luiz Fux, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, da Primeira Turma do STF, acompanharam o voto de Alexandre de Moraes, relator do caso.

Moraes afirmou que a PGR demonstrou indícios de que o ex-presidente e seus aliados podem ter cometido os cinco crimes apontados na denúncia.

Luta por soberania

Na tentativa de salvar Bolsonaro da prisão, partiu de seu próprio núcleo familiar o principal ataque à soberania brasileira, que expôs o alinhamento ideológico do bolsonarismo com o governo de Donald Trump nos EUA, contra os interesses nacionais. No contexto de taxações impostas por Trump ao Brasil, Eduardo Bolsonaro tentou condicionar a aplicação de novas tarifas ao Brasil, como forma de pressionar pela anistia aos golpistas.

Contra Trump e os sabujos, a resposta do Brasil foi de soberania e democracia, como analisou o presidente da Fundação Maurício Grabois, Walter Sorrentino, a partir do posicionamento do presidente Luiz Inácio Lula da Silva:

“O Brasil é um país soberano, com instituições independentes, e não aceitará ser tutelado por ninguém. […] Qualquer elevação unilateral de tarifas será respondida com base na Lei de Reciprocidade Econômica”, respondeu Lula ao ataque dos EUA.

O tema da soberania nacional ganhou o debate público no Brasil e perpassou as mesas do Ciclo de Debates para o 16º Congresso do PCdoB, organizado pela Fundação Maurício Grabois (FMG). As mesas realizadas em cinco capitais — São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Salvador (BA), Porto Alegre (RS) e Recife (PE) — discutiram soberania, eleições de 2026, o partido, o papel da classe trabalhadora e os rumos do desenvolvimento nacional.

Em julho, o ministro Alexandre de Moraes determinou medidas cautelares contra o ex-presidente Jair Bolsonaro por coação, obstrução e atentado à soberania nacional. A medida foi solicitada pela Polícia Federal (PF), recebeu aval da PGR e foi referendada pela Primeira Turma do STF.

Petição 1419 impôs a Bolsonaro: uso de tornozeleira eletrônica; recolhimento domiciliar entre 19h e 6h de segunda a sexta-feira e em tempo integral nos fins de semana e feriados; proibição de acesso a embaixadas e consulados e de manter contato com embaixadores e autoridades estrangeiras; e proibição de utilização de redes sociais, direta ou indiretamente, inclusive por intermédio de terceiros.

O avanço do processo contra Jair Bolsonaro acentuou a luta interna na extrema-direita para escolher um sucessor, e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), reforçou sua aliança com o golpismo em busca da vaga do ex-presidente na disputa eleitoral do próximo ano. “Num momento em que a extrema-direita busca reorganizar suas forças, o governador de São Paulo se mostrou disposto a ajoelhar no altar do golpismo para herdar os votos de seu criador”, destacou o presidente da Fundação Maurício Grabois (FMG), Walter Sorrentino, após a participação do governador no ato dos bolsonaristas na Avenida Paulista no 7 de setembro.

“A esquerda e o campo popular em torno do presidente Lula retomam a iniciativa política por conta dos erros sucessivos que o campo bolsonarista cometeu e ainda cometerá até o final de 2025. Pela primeira vez em 10 anos, nós retomamos a iniciativa política devido ao discurso nacionalista, pela soberania do país”, avalia Elias Jabbour.

Em agosto, diante dos ataques dos Estados Unidos, Xi Jinping disse a Lula por telefone, que a China estaria “pronta para trabalhar com o Brasil para estabelecer um exemplo de unidade e autossuficiência entre os países do Sul Global” e afirmou apoiar o povo brasileiro na defesa de sua soberania nacional e na salvaguarda de seus direitos e interesses legítimos, “exortando todos os países a se unirem na luta decidida contra o unilateralismo e o protecionismo.”

“Esse é o momento da grande política em que Lula e Xi Jinping entram em cena para buscar uma solução coordenada entre esses dois países e os BRICS de uma forma geral, diante dessa nova ordem global. É o momento em que esse grupo pode se afirmar enquanto bloco e não somente enquanto arranjo político, como tem sido até aqui”, analisou Elias Jabbour. 

Bolsonaro condenado e preso

Em julgamento histórico, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria pela condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro no dia 11 de setembro, na Ação Penal 2668 . Bolsonaro foi condenado a 27 anos e três meses de pena privativa de liberdade em regime inicial fechado e 124 dias-multa (cada dia-multa no valor de dois salários mínimos à época dos fatos).

A condenação do ex-presidente gerou articulações dos bolsonaristas na Câmara em tentativa de pautar, em regime de urgência, a anistia para os golpistas, utilizando como moeda de troca a PEC da blindagem dos parlamentares e o voto secreto na decisão sobre processos contra parlamentares, “abrindo um novo ciclo de impunidade para crimes praticados por representantes eleitos e convidando o crime organizado a se fortalecer no aparelho de Estado”, avaliou Walter Sorrentino em sua coluna.

A manobra bolsonarista encontrou reação nas ruas, na manifestação de esquerda que lotou a Avenida Paulista no dia 21 de setembro. 

A prisão do ex-presidente foi concretizada no dia 25 de novembro, depois da tentativa de Bolsonaro de violar a tornozeleira eletrônica durante a prisão domiciliar em sua residência em Brasília (DF). Alexandre de Moraes decretou o início do cumprimento da pena do ex-presidente, assim como dos demais integrantes do chamado núcleo 1 da trama golpista: Walter Braga Netto, Almir Garnier, Anderson Torres, Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Alexandre Ramagem.

Em dezembro, com a liderança do presidente da Câmara Hugo Motta, os bolsonaristas conseguiram aprovar, em uma sessão marcada por censura a jornalistas e interrupção da transmissão da TV Câmara, o PL da Dosimetria, uma nova tentativa parlamentar de aliviar a pena dos golpistas. 

No dia 17 de dezembro, na última semana antes do recesso parlamentar, o Senado Federal aprovou o PL 2.162/2023, do deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RS). Conhecido como PL da Dosimetria, o projeto que reduz as penas dos condenados pelo golpe de 8 de janeiro de 2023 foi relatado pelo senador Esperidião Amin (PP-SC) e aprovado com 48 votos a favor e 25 contra.

Embates com o Congresso Nacional

A anistia aos golpistas esteve longe de ser a única pauta em que a maioria conservadora do Congresso Nacional, que se mostrou hostil ao governo federal e às pautas progressistas. Em julho, a revogação pelo Congresso do decreto presidencial que aumentava o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) abriu uma crise com o governo, que acionou o Supremo Tribunal Federal.

No programa Almoço Grátis da TV Grabois, Iago Montalvão coordenador do Grupo de Trabalho Novo Ciclo de Desenvolvimento Social da Grabois e doutorando em economia pela Unicamp comenta a polêmica envolvendo o IOF. 

Walter Sorrentino analisou esse impasse como uma oportunidade para ampliar o debate com as camadas médias e populares da sociedade, “que mais sofrem com o atual sistema e que podem se engajar por reformas estruturantes”.

“O governo precisa sair da defensiva. Manter os fundamentos do programa — reindustrialização, política externa soberana, políticas sociais — e reorganizar sua base aliada. É preciso que as forças progressistas sejam chamadas à responsabilidade para se unificar e ampliar a mobilização social em torno de propostas como o fim da jornada 6×1 e a reforma tributária justa”, defendeu Sorrentino em sua coluna.

Foi justamente a mobilização popular contra a PEC da Blindagem que possibilitou ao governo uma vitória expressiva no Congresso Nacional, com a aprovação de uma promessa de campanha do presidente Lula: a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil e o desconto decrescente para quem ganha de R$ 5 mil a R$ 7 mil.

“Acuado, o Congresso dominado pelo Centrão e a extrema-direita bolsonarista, não teve outra escolha senão ceder à pauta da isenção do IR incluída nas manifestações de 21 de setembro. A sanção da lei do IRPF ocorreu em 26 de novembro com a ausência dos presidentes da Câmara e do Senado”, aponta Sinival Pitaguari, professor de Economia na Universidade Estadual de Londrina (UEL), doutorando em Economia na UnB e professor da Escola Nacional João Amazonas, do PCdoB.

Apesar da aprovação do PL da Dosimetria, Pitaguiri chama a atenção para a escolha do ministro da Secretaria-Geral, Guilherme Boulos, para articular no Congresso a luta pela limitação da jornada de trabalho na escala máxima 5×2, com até 40 horas semanais e 8 horas por dia. “Foi a opção politicamente mais realista para o movimento popular organizado e para o governo Lula em vez de tentar uma escala 4×3 com 35 horas, por exemplo, mesmo que ela seja mais justa. A vitória depende da amplitude do movimento político e, para isso, a causa precisa ser considerada por amplas massas do povo como justa e factível”, destaca.

No programa Tá na Rede da TV Grabois, Jade Beatriz analisa como a pauta histórica dos trabalhadores ganhou força nas ruas, nas redes sociais e agora no Congresso Nacional, com a proposta do governo.

16º Congresso do PCdoB e frente ampla para 2026

Em entrevista exclusiva para o Portal Grabois, a vice-presidenta do PCdoB, Nádia Campeão destacou que, apesar da prisão de Jair Bolsonaro, “a luta continua e persiste ainda forte para 2026”, diante da força política do bolsonarismo no país, com “base social, força material, financeira e parlamentar”.

A Resolução Política do PCdoB, aprovada entre os dias 16 e 19 de outubro no 16º Congresso do partido, que teve a participação do presidente Lula na abertura, reforçando a aliança eleitoral e programática e a necessidade de uma frente ampla para 2026, liderada pela esquerda.

Lula encerra o ano como favorito na disputa eleitoral em 2026 em todos os cenários, recolocando o Brasil como porta-voz do Sul Global em discussões centrais, como a COP30, realizada em Belém. No âmbito doméstico, a bandeira da soberania nacional se refletiu em conquistas centrais para a população brasileira, como a retirada do país do Mapa da Fome da ONU — feito histórico realizado pela segunda vez; a primeira ocorreu em 2014, no governo de Dilma Rousseff.

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Leia: O lugar do PCdoB na cena política https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/partido-renovado-e-influente.html 

Mundo em transição

China enfrenta o tarifaço de Trump e consolida estratégia de soberania tecnológica em 2025
Ao longo de 2025, sanções, disputa tecnológica e reacomodação geopolítica marcaram a resposta chinesa à ofensiva dos EUA, com impactos no Sul Global e na relação estratégica com o Brasil.
Portal Grabois www.grabois.org.br   

O ano de 2025 foi marcado pelo avanço da China na corrida tecnológica mundial, mesmo diante da retomada da hostilidade dos Estados Unidos, com o retorno de Donald Trump à Casa Branca.

Já em janeiro, a inteligência artificial chinesa DeepSeek despontou na imprensa internacional após provocar a queda das ações das grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos: Nvidia, Microsoft, Meta e Alphabet, sendo que a Nvidia chegou a apresentar uma queda de quase 17%.

Gratuito, o aplicativo chinês se mostrou uma alternativa mais barata e eficaz e demonstrou a “falência da Batalha dos Chips” imposta por Washington, analisou o diretor de pesquisas do Centro de Estudos Avançados Brasil China (Cebrach), Diego Pautasso, em sua coluna para o Portal Grabois.

Ele avalia que o modelo de IA chinesa driblou as sanções da Casa Branca às exportações para a China dos chips da Nvidia e revelou que a política dos EUA não apenas se mostrou incapaz de interditar o setor de semicondutores, como acelerou o desenvolvimento chinês. “A mentalidade da Guerra Fria e da contenção da China já deu todos os sinais possíveis de sua falência – porém, o governo Trump não parece ser capaz de apresentar soluções mais inovadoras”, alertou Pautasso.

Tarifaço

Nos primeiros três meses de seu governo, Trump iniciou um movimento de aumentar as tarifas dos países que mantêm relações comerciais com os EUA, voltando-se principalmente para o México, Canadá, China e União Europeia, com tarifas de até 24%.

Em abril, Trump escalou a medida protecionista decretando tarifas de importação entre 10% e 50% para quase todos os países do mundo, sob a alegação de reciprocidade. Iniciou-se uma grande corrida dos países pela negociação das tarifas, mas ficou claro que o alvo principal das medidas protecionistas era a China, com tarifas que chegaram a 145%.

Socialismo de Mercado: como a China expande modelo econômico com abertura ao setor privado

A resposta da China foi recíproca, com aplicação de tarifas de até 125% para produtos dos EUA, posição que rendeu uma capa icônica da revista The Economist em abril.

Em nova coluna para o Portal Grabois, Diego Pautasso analisou naquele momento como a reação da China à guerra tarifária expôs o declínio da hegemonia dos Estados Unidos.

“Por detrás do unilateralismo de Trump, há o reconhecimento da perda de capacidade produtiva e de liderança dos EUA, bem como da emergência de um mundo multipolar. Inegavelmente, vivemos uma precipitação da transição sistêmica, marcada por incertezas e potencial de escalada de conflitos. Se os EUA dão mostras de uma condução política temerária, a China, por sua vez, demonstra não apenas resiliência, mas também capacidade de prover soluções e alternativas à desordem internacional”, destacou Pautasso.

A posição da China de enfrentamento à política trumpista também fortaleceu os laços entre os países do Sul Global, em especial com o Brasil — também alvo do tarifaço trumpista. Em artigo exclusivo para o Portal Grabois, Jiang Shixue, professor da Universidade de Xangai (China), apontou como a cooperação China-Brasil é estratégica para enfrentar ameaças à ordem global.

Shixue destacou que a política de Trump é marcada por hegemonismo, intervencionismo, unilateralismo e protecionismo, “representando uma grave ameaça à paz e ao desenvolvimento mundiais” e defendeu que, diante desse ambiente externo altamente desfavorável, “a forma como o Sul Global deve responder é uma questão urgente e relevante”. Com base em informações do Ministério da Agricultura chinês, Shixue apontou que China e Brasil devem intensificar ainda mais sua cooperação diante da guerra comercial promovida por Trump.

Rússia, Brasil e China formam triângulo que alimenta o mundo

O encontro bilateral entre China e Brasil aconteceu de fato em maio, quando Lula e Xi Jinping se encontraram durante o IV Fórum China-Celac, realizado em Pequim. “Não é exagero dizer que, apesar dos mais de 15 mil quilômetros que nos separam, nunca estivemos tão próximos”, afirmou Lula ao descrever o atual estágio das relações entre Brasil e China, durante sua visita a Pequim.

O encontro se deu no momento que a política de Trump “começava a demonstrar sinais de desgaste”, com o recuo momentâneo dando um “semblante de derrota às iniciativas norte-americanas”, aponta Tiago Nogara, Doutor em Ciência Política da Universidade de São Paulo e pesquisador do Cebrach. Em sua coluna, ele analisa o posicionamento de Lula e Xi-Jinping diante do unilateralismo de Trump e os novos acordos bilaterais assinados entre os países.

Historiadora, Mestre e Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a pesquisadora do Cebrach, Isis Paris Maia considera que a reunião ministerial realizada no IV Fórum China-Celac marcou um novo capítulo na relação entre os países, estabelecendo um roteiro para a próxima década a partir do assim chamado “Cinco Programas” para o desenvolvimento compartilhado. Em sua coluna, ela detalha o Programa 2, voltado ao desenvolvimento, dando ênfase ao setor digital.

Em agosto, diante dos ataques dos Estados Unidos, Xi Jinping disse a Lula por telefone, que a China estaria “pronta para trabalhar com o Brasil para estabelecer um exemplo de unidade e autossuficiência entre os países do Sul Global” e afirmou apoiar o povo brasileiro na defesa de sua soberania nacional e na salvaguarda de seus direitos e interesses legítimos, “exortando todos os países a se unirem na luta decidida contra o unilateralismo e o protecionismo.”

Em 1º de setembro,  Xi Jinping anunciou a proposta chinesa da Iniciativa de Governança Global (IGG) durante a reunião da Organização de Cooperação de Shanghai (OCS). O documento destaca, entre outros pontos, a sub-representação do Sul Global na ONU, a frequente utilização de sanções unilaterais por países relevantes e aponta a necessidade de debater temas como a inteligência artificial, o ciberespaço e o espaço sideral.

Nilton Vasconcelos, diretor do Cebrach e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e conflitos institucionais no Brasil, analisa em sua coluna como o IGG representa “um convite para repensar as bases da cooperação entre as nações, recolocando a paz, a justiça social, o desenvolvimento sustentável e o direito dos povos a um futuro comum, no centro do debate”.

Os movimentos geopolíticos dos últimos anos refletiram na opinião da população brasileira. Entre 2023 e 2025, a aprovação da China subiu de 34% para 49%, enquanto EUA e Israel perderam apoio, revelou pesquisa Quaest divulgada em agosto. O salto maior ocorreu de 2024 para 2025, quando a opinião favorável saltou 11 pontos percentuais. Por outro lado, a opinião desfavorável em relação à potência asiática caiu de 44% para 37%. 

Por ser o principal parceiro comercial do Brasil, o professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UERJ, Elias Jabbour defende que as relações com a China devem atingir outro patamar, em uma relação que pode beneficiar ainda mais a economia brasileira, revertendo a desindustrialização e fortalecendo um projeto nacional voltado à soberania econômica.

O desenvolvimento da economia chinesa foi tema de duas edições da Revista Princípios. Coordenadas por Jabbour, as publicações analisaram como a China atualiza a economia de projetamento de Ignácio Rangel.

+ Princípios 171: China e nova economia do projetamento
+ Princípios 172: Socialismo e nova economia do projetamento
+ Elias Jabbour explica socialismo do século XXI e nova economia do projetamento na China

Em intervenção aos delegados do 16º Congresso do PCdoB em outubro, o representante do Departamento Internacional do Comitê Central do Partido Comunista da China (PCCh), Wang Jialei, defendeu que o multilateralismo, a solidariedade Sul-Sul e a cooperação entre China e América Latina são fundamentais diante das tensões geopolíticas e da ofensiva unilateralista dos Estados Unidos. O representante do PCCh também apresentou as Iniciativas Globais lançadas pelo presidente Xi Jinping — de Governança, Desenvolvimento, Segurança e Civilização — como pilares de uma nova ordem internacional mais justa e equilibrada.

15º Plano quinquenal

O Comitê Central do PCCh se reuniu entre 20 e 23 de outubro para avaliar as principais conquistas de desenvolvimento do país durante o 14º Plano Quinquenal (2021-2025) e deliberar sobre a formulação do 15º Plano Quinquenal de Desenvolvimento Econômico e Social. “A partir de seis princípios orientadores, o debate e o detalhamento das propostas seguem num processo que culminará com a deliberação final das chamadas Duas Sessões – as reuniões anuais do Congresso Nacional do Povo (CNP) e da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), previstas para março de 2026”, detalha em sua coluna Nilton Vasconcelos, diretor de Relações Institucionais do Cebrach e membro do Grupo de Pesquisa sobre Estado e Instituições da Grabois.

A partir do 15º Plano Quinquenal, o presidente da Grabois, Walter Sorrentino, analisa como o planejamento estatal chinês integra inovação, inclusão social e metas ambientais, oferecendo referências ao Sul Global. Sorrentino considera que a divulgação das bases do 15º Plano em outubro confirma a capacidade de formulação estratégica do Estado chinês com o Partido Comunista no poder. “A implementação do novo Plano deve influenciar as cadeias produtivas globais, com especial importância para o Sul Global e para a parceria estratégica entre Brasil e China, abrindo janelas de oportunidades ao desenvolvimento soberano”, destaca Sorrentino. 

Elias Jabbour considera que as bases colocadas pelo PCCh para o 15º Plano remontam ao movimento iniciado pelo país em 2017, quando a China entrou na etapa da “nova era” na definição de Xi Jinping, tendo como objetivo central a construção da prosperidade comum. O ano de 2017, em que a China havia alcançado os norte-americanos em mais de 70% de altas tecnologias sensíveis, foi marcado pelo início da era de sanções e bullying tecnológico promovido pela administração de Donald Trump nos Estados Unidos.

“Isso levou a sociedade, o Estado e o Partido Comunista chinês a mobilizarem completamente seu núcleo empresarial e financeiro para uma guerra popular prolongada em torno da autossuficiência tecnológica. Os chineses acordaram para uma realidade de um mundo hostil aos seus objetivos estratégicos, que representa o fim da tentativa de desenvolvimento pacífico em relação aos países capitalistas centrais”, aponta Jabbour.

Dessa perspectiva, ele considera que o 15º Plano Quinquenal deve ser observado como “mais um capítulo no rumo da autossuficiência tecnológica”. “Eu colocaria o socialismo pela primeira vez na história em condições não somente de igualdade, mas de superioridade em relação ao capitalismo em matéria de inovação e autossuficiência tecnológica”, ressalta.

Ao analisar a guerra tarifária imposta pelos Estados Unidos contra a China em 2025, Jabbour aponta um elemento central nas condições dessa disputa que provocaram o recuo da ofensiva de Donald Trump: as terras raras. A China possui a maior reserva (70%) e capacidade de processamento de quase toda a cadeia produtiva (90%) que envolve esses minerais: agrega valor e exporta o produto industrializado para os Estados Unidos.

“A China não só conseguiu superar seus impasses internos, criados com o bullying tecnológico iniciado pelos EUA em 2017, mas possui essa grande carta na manga, um instrumento estratégico fundamental para diminuir sua dependência do mercado dos EUA, tanto para exportar produtos, quanto para importar tecnologia nova. Se os norte-americanos quiserem negociar, terão que negociar nos termos chineses”, destaca Jabbour.

Em dezembro, documentos publicados por Estados Unidos e China quase simultaneamente, revelam as diferenças da política externa dessas potências em relação à América Latina. A administração de Donald Trump publicou sua Estratégia Nacional de Defesa (National Security Strategy of the United States of America), enquanto o governo de Xi Jinping apresentou o documento sobre sua política para América Latina e Caribe (Terceiro Documento sobre la Política de China hacia América Latina y el Caribe). 

Os documentos expressam projetos de poder profundamente distintos para a América Latina, avalia Diego Pautasso.

“De um lado, os Estados Unidos reafirmam uma visão hemisférica hierárquica, securitária e de contenção de rivais. De outro, a China articula um discurso de cooperação Sul–Sul, desenvolvimento compartilhado e construção de uma ‘comunidade de futuro compartilhado’, inserindo a região num vocabulário alternativo ao da ordem liberal ocidental”, analisa em sua coluna.

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Leia também: Caminho para uma nova moeda internacional de reserva https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/12/novo-padrao-monetario-no-mundo.html 

29 dezembro 2025

Cláudio Carraly opina

Os deuses que Nietzsche não matou
Cláudio Carraly*  

"Quem é ateu e viu milagres como eu
Sabe que os deuses sem Deus
Não cessam de brotar, nem cansam de esperar"

— Caetano Veloso, Milagres do Povo

 Há coisas que, à primeira vista, não deveriam coexistir. Marxista e crente. Materialista histórico e pessoa de fé. Militante comunista desde os 14 anos e alguém que sempre acreditou que o mundo guarda mistérios que escapam ao olhar. O mundo esperava, às vezes exigia que eu escolhesse um lado. Ateu, agnóstico, no mínimo um antirreligioso. Era o roteiro esperado de quem carregava Marx no peito desde tão cedo. Mas a vida não lê roteiros.

Cresci em uma família kardecista, uma das mais antigas a professar essa fé em Pernambuco. Fui criado também pela mão firme e doce de uma incrível mulher da umbanda. Essas presenças não eram ornamentos da infância, eram universos. Eram modos de sentir, de intuir, de perceber que existe algo além do que as estruturas materiais conseguem me explicar. Não contra elas. Mas além. Um pouco além. Muito mais além.

"Quem é ateu e viu milagres como eu sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar". Eles brotavam na mesa de passes, nos pontos cantados, nas histórias que formaram meu imaginário. Inúmeros deuses que Nietzsche não matou, que o materialismo não apagou. Divindades que insistiam em existir porque eram do povo, nascidos da necessidade humana de beleza, sentido e transcendência, porque a vida não basta em si mesma. 

Marx tinha razão sobre muita coisa. Sobre como as condições materiais moldam a consciência, sobre como a religião pode funcionar como ópio e funciona, em inúmeros contextos históricos, sobre a necessidade urgente de transformar o mundo em vez de apenas interpretá-lo ou consolá-lo. 

Mas Marx operava com uma antropologia incompleta. Ele partiu da premissa de que as contradições da humanidade eram causadas apenas pelas questões materiais, sociais e de classe. Seu prognóstico era claro: com a transformação das condições materiais, a necessidade da religião desapareceria. A consciência religiosa era, na sua visão, superestrutura, reflexo ideológico de misérias concretas. Resolvidas essas misérias, a religião definharia naturalmente. 

O que Marx não viu, ou não quis ver, é que a necessidade de transcendência não é privilégio dos oprimidos nem compensação exclusiva dos miseráveis. Ela atravessa todas as classes. O direito, a capacidade, a necessidade de crer ou não crer é uma negociação interna de cada ser humano no planeta. É algo interno, não externo. Não se dissolve com a redistribuição dos meios de produção.

A angústia metafísica não é falsa consciência. O espanto diante do mistério da existência por que há algo em vez de nada? Não é ideologia de classe. A experiência do sagrado não desaparece quando o estômago está cheio e a jornada de trabalho é justa.

Marx confundiu a forma histórica que a religião assume (e que pode, de fato, ser alienante, opressora, legitimadora da injustiça) com a dimensão antropológica da religiosidade, essa abertura humana ao que está além do calculável, do mensurável, do puramente material.

E aí reside minha divergência com o materialismo ortodoxo: posso aceitar toda a crítica estrutural marxista, toda a análise das relações de produção, toda a denúncia da exploração de classe, e ainda assim reconhecer que o ser humano não se esgota na dimensão histórico-econômica. Há algo no humano que continua perguntando "e agora? Para que tudo isso?" Mesmo quando as necessidades materiais estão atendidas. Essas perguntas não são alienação. São sinais de que somos mais complexos do que qualquer materialismo consegue capturar.

Veio então a curiosidade, aquela fome de quem quer compreender tudo, a busca pelo que passava pela alma da humanidade, o que tocava cada um que habitava esse plano como eu. Então li: hinduísmo, islamismo, confucionismo, budismo, zoroastrismo, xamanismo. Eu devorava religiões como quem tenta montar um quebra-cabeça impossível, procurando as bordas do mistério, os pontos de confluência e os de separação, buscava onde estava a centelha compartilhada em cada filosofia, o que animava nossa existência.

Mas havia um lugar para onde eu sempre voltava, um ponto de gravidade, podemos dizer que meu marco zero nos estudos: o judaísmo. De lá normalmente minhas jornadas partiam e para onde retornavam. E não estava sozinho nessa viagem.

Walter Benjamin entrelaçou materialismo histórico e messianismo judaico numa filosofia da história que via na redenção a interrupção revolucionária do tempo capitalista. Ernst Bloch escreveu sobre a esperança como princípio tanto da utopia marxista quanto da profecia religiosa. Erich Fromm mostrou que a ética judaica e o humanismo socialista bebem da mesma fonte: a dignidade radical de cada ser humano.

Não eram homens que abandonaram Marx para encontrar Deus, nem que traíram a fé para abraçar a revolução. Eram homens que perceberam que justiça social e profecia, luta de classes e reparação do mundo, crítica e transcendência podiam, talvez precisassem, caminhar juntas.

O judaísmo sempre denunciou a opressão, sempre gritou contra a injustiça, sempre exigiu cuidado com o estrangeiro, a viúva, o órfão. Não é coincidência que tantos revolucionários tenham vindo de famílias judaicas: há nessa tradição um imperativo ético de responsabilidade coletiva.

E é isso que respondo ao Marx ortodoxo que me acusaria de consolação burguesa: o judaísmo que pratico não é o que anestesia, não é o que promete céu em troca de resignação terrena. É o judaísmo profético, o que empurra para dentro da história, não para fora dela. É a fé que exige justiça agora, que não aceita exploração como vontade divina, que vê no tikun olam – reparação do mundo – não uma promessa para depois da morte, mas um imperativo para hoje.

Essa espiritualidade não compete com o marxismo. Ela o alimenta com combustível moral, com memória dos oprimidos, com recusa ética que vem de mais fundo que a análise econômica.

E então o destino me fez me reencontrar com ela, minha futura rabina, e hoje meu amor.

Foi como se todas as versões de mim, o militante, o buscador espiritual, o menino criado entre passes e guias, o homem que lia "O Estado e a Revolução", finalmente se encontrassem e reconhecessem que sempre foram partes de um mesmo ser. Complexo, sim. Contraditório, também. Mas pela primeira vez, inteiro.

Ela me ajudou a ver que eu podia ser tudo isso. Aliás, que eu sempre fui isso. Que a contradição não era um problema a ser resolvido, mas um território a ser ainda mais explorado. Minha visão multilateral também a ajudou a melhor compreender a maravilha da diversidade humana.

Me ensina que pertencer não significa fechar portas. Que encontrar novas moradas não exige negar o que nos moldou, seja os orixás que me encantam ou Gramsci que ajudou a libertar minha alma.

Construímos juntos uma forma de viver onde marxismo e judaísmo não competem, mas dialogam. Onde ela, como rabina, traz a profundidade da tradição que carrega milênios de sabedoria sobre justiça e compaixão. E onde eu trago a urgência revolucionária, a análise das estruturas, a recusa em aceitar que pobreza e opressão sejam naturais ou inevitáveis.

Nossas conversas são tessituras. Ela me lembra que transformação social sem dignidade humana vira autoritarismo. Eu a lembro que dignidade sem justiça material é privilégio de quem pode pagar por ela. Juntos, tentamos construir um pensamento que não mutile nenhuma dimensão do humano.

"E o coração — soberano e senhor — não cabe na escravidão, não cabe no seu não."

Não cabe em nenhuma ortodoxia que me obrigue a ser menos do que sou. O coração soberano insiste em ser inteiro. Acende velas no Shabat sem rasgar minha carteirinha do partido. Estuda Torá sem esquecer a mais-valia. Frequenta a sinagoga sabendo que religião pode ser ópio, mas também pode ser profecia, resistência, memória subversiva de quem nunca aceitou a escravidão e opressão.

Não abandonei nada. Integrei tudo. Corpo, mente e alma reunidos em uma só pessoa.

Posso ser comunista sem perder o assombro diante do mistério. Posso ser religioso sem ignorar as estruturas materiais de dominação. Justiça social e vida espiritual não são inimigas, são aliadas na caminhada rumo a um mundo reparado.

Somos felizes. Plenos. Nossa vida tem espaço para tudo: para a crítica social e para as bênçãos, para a análise materialista e para o transcendente. Tem espaço para a complexidade, para a contradição criativa, para a tensão que não precisa virar síntese muito menos uma antítese forçada.

Há uma sabedoria que só vem de quem já tentou caber em caixas estreitas e desistiu. De quem viveu o suficiente para saber que a realidade é mais vasta que qualquer ortodoxia. De quem amou o suficiente para entender que a verdade não é propriedade privada, é algo que se compartilha, que circula, que se revela de modos diferentes em tradições diversas.

O kardecismo me ensinou continuidade. A umbanda me mostrou força ancestral e que os orixás são reais para quem deles precisa. O marxismo me deu ferramentas para enxergar dominação e combatê-la. O judaísmo me ofereceu comunidade, memória, esperança.

E minha trajetória me ensinou que eu não precisava escolher entre esses tesouros. Que eu podia, que eu devia carregá-los todos comigo.

"Os deuses sem Deus não cessam de brotar, nem cansam de esperar."

Esperam que entendamos que não é preciso matar a transcendência para fazer a revolução. Que não é preciso negar a matéria para acessar o espírito. Que podemos ser inteiros, complexos, contraditórios e, por isso mesmo, mais sábios.

Estamos em casa, minha rabina e eu. Uma casa com lugar para todas as minhas contradições, para todos os meus mundos, para todas minhas fés. Uma casa onde um militante comunista e uma judia acendem velas no Chanucá em perfeita comunhão. Onde o materialismo dialético e a crença no sagrado conversam, discutem, dançam, bebem, celebram. Uma casa onde não peço desculpas por ter visto milagres. Onde não nego que os deuses brotam, teimosos e necessários, do coração de cada um de nós.

Onde a luta de classes e a reparação do mundo são faces da mesma esperança e lados da mesma moeda.

Somos matéria e espírito. Estrutura e desejo. História e transcendência. Marx e Moisés. A crítica que desmascara ilusões e a fé que insiste que o mundo pode ser mais mágico, mais justo, e muito mais humano.

Sim somos muito complexos, bastante complicados, mas enfim agora, só um pouquinho mais sábios. E estamos em casa!

* Advogado, ex-Secretário Executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

Leia: A adesão popular às ideias neoliberais e de extrema direita https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/guerra-cultural.html 

Palavra de poeta

POEMA PARA PINTAR O MUNDO DE VERDE
Maurílio Rodrigues 

Pensei em pintar

O mundo de verde.

Trazendo as tintas dos jardins,

Das selvas, e florestas,

Para dentro das pessoas.

 

Tornarem verdes ,

As frases difíceis e inúteis ,

Às vezes, escritas em livros,

Que povoam bibliotecas.

 

Trazer o verde 

Para aquele pensamento ,

Incapaz de imaginar,

Que os rebentos são a garantia,

Que as árvores estão vivas,

E, apesar de tudo, sobreviverão.

 

Pensei em pintar

O mundo de verde,

Para contemplar,

As cores vivas,

Presentes em teus cabelos.

 

Pensei em pintar

O mundo de verde,

Para juntar a esperança ,

Ao sentimento doído,

Dos seres humanos.


[Ilustração: Claudio Tozzi]

Leia também: "O cheiro da tangerina", Ferreira Gullar https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/palavra-de-poeta_20.html