22 novembro 2025

Dólar ainda moeda-chave?

Por que o dólar segue dominante no sistema monetário internacional
Iniciativas como BRICS, SML e INSTEX ampliam alternativas de pagamento, mas não substituem o arranjo consolidado desde 1971
Marcelo Fernandes/Portal Grabois 
www.grabois.org.br   

Está ocorrendo uma ruptura do sistema monetário internacional? 
Desde a imposição das sanções econômicas contra a Rússia em razão desse país ter invadido a Ucrânia em fevereiro de 2022, uma discussão mais ampla sobre “desdolarizaç&atild e;o” se tornou recorrente. Vários analistas acreditam que o papel do dólar americano como moeda-chave do sistema monetário internacional (SMI) estaria em risco ou mesmo que ele já não cumpre essa função. André Lara, por exemplo, não tem mais dúvida de que o domínio do dólar está ameaçado e que “o processo de perda de relevância do dólar no cenário comercial e financeiro mundial já está relativamente avançado”i. Normalmente, este é um processo descrito como fim da hegemonia do dólar, que seria suplantado ou passaria a dividir com outras moedas o palco principal.

Assim, o termo desdolarização tem sido utilizado para caracterizar uma ruptura no atual padrão monetário baseado no dólar. Porém, como veremos neste artigo, existem alguns exageros e imprecisões neste debate.

Dollar Weaponization

Desde os anos 1980, o déficit em transações correntes do balanço de pagamentos e a dívida pública dos Estados Unidos são comumente descritos como fatores responsáveis por uma suposta fragilidade do dólar que inevitavelmente levaria ao seu declínio como moeda padrão do sistema monetário internacional (SMI)ii. Atualmente, entretanto, o argumento principal é de que o governo tem usado o dólar como arma contra seus adversários, como a revista britânica “The Economist” denominou de “ultimate weapon of mass disruption”, algo que ficou mais perceptível após as sanções econômicas contra a Rússia. Isto é, os Estados Unidos vêm utilizando sua posição excl usiva e assimétrica no SMI, aplicando restrições ao uso do dólar e aos sistemas de pagamentos como forma de punição.

Antes das sanções à Rússia, já se discutia o uso do dólar como instrumento geopolítico. A ação mais radical até então tinha sido contra o Irã, grande exportador de petróleo e país com considerável importância regional. Em março de 2012, os bancos irani anos foram excluídos do sistema de mensagens financeiras internacional, o Worldwide Interbank Financial Telecommunication (Swift), dificultando muito a venda do seu petróleo no mercado internacional. Em 2016, após um acordo sobre seu programa nuclear, o país recuperou seu acesso para, em novembro de 2018, ser novamente cortado da rede de mensagens. Ainda hoje, o Irã sofre restrições relacionadas ao Swift.

Todavia, o caso mais emblemático, sem dúvidas, é o da Rússia. Em março de 2022, os bancos russos foram excluídos da rede Swift e o país teve quase metade de suas reservas congeladas. Com isso, aproximadamente US$ 300 bilhões dos seus US$ 630 bilhões em reservas não puderam mais ser acessados pelo ba nco central russo, sendo a maior parte de ativos denominados em euros – medida tão excepcional, que teria surpreendido as autoridades russas, segundo o chanceler da Rússia, Serguei Lavroviii. Uma ação sem precedentes, levando-se em conta que a Rússia é a 11ª economia do mundo.

Assim, a redução do uso do dólar pela Rússia não ocorre exatamente por uma escolha das suas autoridades, mas de uma necessidade imposta pelo Ocidente por meio destas sanções econômicas, iniciadas desde a anexação da Crimeia em março de 2014. As sanções econômicas intensific adas em 2022, e sem prazo de duração definido expuseram mais uma vez o uso do dólar como instrumento para promoção dos interesses geopolíticos norte-americanos, ampliando as reivindicações por uma reforma do SMI.

Funcionamento do SMI

O atual padrão monetário internacional, o padrão dólar-flexível, não é fruto de uma reforma planejada ou de qualquer acordo internacional entre as grandes potências. Não existe uma lei internacional que discipline o uso das moedas entre os países. O padrão dólar-flexível nasce de uma decisão unilateral por parte de Washington que, em 1971, pôs fim ao sistema anterior, o padrão ouro-dólar, em que o dólar já era dominante. O dólar tem o predomínio na liquidação das transações comerciais e financeiras, mas outras moedas também cumprem esta função em escala mais restrita, como o iene japonês no espaço asiático. Logo, nenhum país está obrigado a usar o dólar em suas relações econômicas internacionais, ainda que isso possa acarretar  custos econômicos.

Assim, é preciso destacar, pois nem sempre está claro no debate, que o SMI convive com algumas moedas soberanas aceitas fora das fronteiras dos seus países emissores e utilizadas como meio de pagamento e reservas dos bancos centrais. Este é o caso do euro, do iene, da libra esterlina e, mais recentemente, do renminbi (yuan). Estas sã o as moedas mais importantes e ainda possuem a característica de constituírem a cesta de moedas dos direitos especiais de saque (SDR) do Fundo Monetário Internacional (FMI). Ainda há outras moedas, como o dólar canadense, dólar australiano e o franco suíço, que compõem as reservas de alguns bancos centrais, embora em uma parcela significativamente reduzida.

Portanto, há um conjunto de moedas que podemos classificar de moedas internacionalizadas; porém, uma única desempenha a função de moeda-chave do sistema, definindo o padrão monetário. Neste caso, temos evidentemente o dólar americano como essa moeda.< /span>

Ampliação do SMI por meio de novos acordos monetários

A tese de uma ruptura no SMI não é original: algumas moedas já foram apontadas como candidatas a substituir o dólar, como o marco alemão e o iene japonês nos anos 1980-1990, o euro nos anos 2000, e agora a escolhida parece ser o renminbi da China ou até mesmo o ouro em um curioso retorno ao padrão-ouro do sé ;culo XIX. Outra possibilidade debatida seria a criação de um SMI multimonetário com o dólar dividindo sua liderança com outras moedas.

Uma das evidências apontadas de que o mundo estaria caminhando para a ruptura do SMI seria a emergência de acordos sobre moedas locais. Vale lembrar que tais acordos também não são novidade. Diversos acordos comerciais com a utilização de moedas locais já foram e continuam sendo realizados. Alguns com algum sucesso e outros que, na prática, mal saíram do papel. Atualmente temos a iniciativa dos países que formam os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) sobre o uso de moedas locais, tendo a Rússia a principal interessada por conta das sanções. No âmbito do bloco, também se discute a criação de uma nova moeda – R5 é o nome sugerido para a moeda – também no intuito de facilitar o comércio sem o uso direto do dólar.

Na esfera da América do Sul, há o Sistema de Pagamentos em Moeda Local (SML) iniciado em 2008, entre Brasil e Argentina, que permite que o comércio entre os dois países seja liquidado em suas respectivas moedas. Mais tarde o SML passou a contar com a participação de Paraguai e Uruguai. Conforme o Grupo de Monitoramento Macroeconômico do Mercosul (GMM), apenas 5% do volume de exportações intra-bloco passavam pelo SML e somente o Brasil responderia por 50%iv. Em 2009, a Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA) criou o sucre, moeda cujo objetivo declarado era se livrar da “ditadura do dólar”, promovendo a integração das economias do bloco. Inicialmente, o sucre parecia ter um caminho promissor; hoje, na prática, está extinto.

O descontentamento com a forma que os Estados Unidos usam seu privilégio exorbitante sobre o SMI atinge inclusive seus aliados mais próximos. Em janeiro de 2019, para contornar as sanções de Washington ao Irã, Reino Unido, França e Alemanha anunciaram a instituição do Instrument in Support of Trade Exchanges (INSTEX), funcionando como uma câmara de compensação para comercializar com o Irã sem utilizar o dólar. Posteriormente, outros sete países europeus se juntaram à iniciativa (Bélgica, Finlândia, Dinamarca, Holanda, Noruega, Espanha e Suécia). Entretanto, o INSTEX foi extinto em março de 2023 e, durante o período em que esteve ativo, foi utilizado somente uma vez, em março de 2020, para exportação de remédios da Europa para o Irã. Tudo isso revela a dificuldade de se criar mecanismos de compensação mais amplos e com menos custos.

Rumo a um novo padrão monetário?

Acordos monetários são complexos e, uma vez firmados entre países, as empresas privadas somente farão uso do acordo se perceberem vantagens econômicas. Independente disso, tais acordos podem reduzir o uso do dólar como meio de pagamento – e aqui o termo desdolarização faria sentido, mas não significam por si só uma mudança do padrão monetário. Há de fato uma ampliação das iniciativas de acordos monetários, porém todas elas ocorrem dentro do padrão monetário vigente, isto é, dentro do padrão dólar-flexível inaugurado em 1971. Para os Estados Unidos, não importa se o comércio entre Rússia e China é negociado em renminbi, se a Arábia Saudita irá vender petróleo em euro para a União Europeia ou se o Mercosul está usando o SML. O que importa é se suas importações continuam sendo liquidadas em dólar. É esta a vantagem extraordinária da qual os Estados Unidos jamais abrirão mão: o de ser o único país sem qualquer restrição em seu balanço de pagamentos.

Ademais, o dólar, sob qualquer indicador objetivo que se utilize, confirma seu amplo domínio no sistema monetário e financeiro internacional. Um indicador que normalmente tem sido ressaltado de forma exagerada são as reservas denominadas em dólar dos bancos centrais. Em 1995, no auge do imperialismo norte-americano, a parcela de d&oa cute;lares alocados nas reservas internacionais dos países era de 58,6%; no segundo quadrimestre de 2025 estava em 56,3%. Na verdade, trata-se de uma variação modesta que em parte está ligada à desvalorização do dólar ocorrida neste ano.

Outro indicador interessante é a taxa de turnover cambial, que o Banco Internacional de Compensações (BIS) disponibiliza a cada três anos.

turnover representa a atividade nos mercados cambiais, sendo um bom indicador do uso global de uma moeda. Um mercado que, atualmente, movimenta diariamente US$ 9,6 trilhões, o que significa um aumento de 28%, comparado aos US$ 7,5 trilhões do último levantamento. Vale observar que, como sempre há duas moedas em cada transação, a soma das percentagens totaliza 200%.

Como podemos observar no quadro abaixo, o dólar é amplamente dominante, e ainda teve um ligeiro crescimento comparado ao último triênio. Vale destacar o renminbi que, em 2007, praticamente não participava dos mercados cambiais e agora tem um turnover de 8,8%.

Taxa de Turnover (principais moedas)

Moedas

2007

2010

2013

2016

2019

2022

2025

USD

86,0%

84,9%

87%

87,6%

88,3%

88,5%

89,2%

EUR

37,0%

39%

33,4%

31,4%

32,3%

30,5%

28,9%

JPY

17,0%

19%

23%

21,6%

16,8%

16,7%

16,8%

GBP

15,0%

12,9%

11,8%

12,8%

12,8%

12,9%

10,2%

CNY

0,0%

0,9%

2,2%

4%

4,3%

7,0%

8,5%

Fonte: Banco Internacional de Compensações (BIS)


Na literatura, é bastante mencionado que a moeda que cumpre o papel de moeda chave do SMI precisa ser tratada como um bem público global pelo país emissor, não como uma ferramenta de promoção de seus interesses nacionais.

A questão aqui é que os Estados Unidos usam reiteradamente o dólar segundo seus próprios interesses. Apenas para citar um exemplo, a política do quantitative easing conduzida pelo Fed (banco central dos Estados Unidos) e iniciada em novembro de 2008, um experimento que expandiu a base monetária americana em torno de 700%, obrigando vários governos no mundo a adotarem medidas para tentar controlar a excessiva entrada de dólares e a valorização das suas moedas. Nesse contexto, o então ministro da Fazenda Guido Mantega denunciou que uma “guerra cambial” estava em curso.v O uso do dólar para atender a certos interesses nacionais não deveria surpreender, afinal, com um instrumento tão poderoso, por que os Estados Unidos não utilizariam?

O descontentamento e a demanda por uma reforma no SMI são evidentes. A questão que se coloca é como fazê-la.

Marcelo Fernandes é doutor em Economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ). Professor Associado IV do Departamento de Economia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro ( UFRRJ), onde também atua no Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Inovação em Agropecuária (PPGCTIA). É professor do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI) da UFRJ. Atualmente, está cedido ao Instituto Pereira Passos, na Coordenadoria de Projetos Especiais, e realiza estágio pós-doutoral na UFRJ com pesquisa sobre a internacionalização do renminbi. É membro do Grupo de Pesquisa Desenvolvimento Nacional e Socialismo (GP1) da Fundação Maurício Grabois.

Notas

i RESENDE, André Lara. “A dominância do dólar, os bancos centrais e o mundo pós-Bretton Wood”. CEBRI-Journal, ano 4, no. 15, Jul-Set, 2025.
ii Atualmente tem havido uma ênfase maior sobre a dívida pública americana em relação ao déficit em transações correntes em razão da política fiscal do atual governo Trump, o “Big, Beautiful Bill”, projeto de lei tributária de gastos que dever&aacut e; elevar ainda mais a relação dívida/PIB dos Estados Unidos.
iii JACK, Victor. “Sergey Lavrov admits Russia was surprised by scal e of Western sanctions”, Politico, March 23, 2022. 
iv “GMM avança na criação de propostas para melhorar o Sistema de Pagamentos de Moedas Locais do Mercosul”, 31 de outubro, 2023.
v FERNANDES, Marcelo Pereira. “Notas sobre a conturbada economia norte-americana”. Fundação Maurício Grabois, 2014.

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Leia também: O crepúsculo do império norte-americano https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/eua-em-decadencia.html

21 novembro 2025

Palavra de poeta

Destino
Mia Couto  

à ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganos
 
vou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escasso
 
conheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer disperso
 
agora
que mais
me poderei vencer?

[Ilustração: Diego Rivera]

Leia: "O agente secreto", uma opinião crítica https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/o-agente-secreto-critica.html 

Cláudio Carraly opina

O fim da democracia liberal dos Estados Unidos
Cláudio Carraly* 


A democracia americana, por mais de dois séculos, apesar de profundas falhas, serviu como farol de aspirações democráticas globais, porém atravessa hoje uma crise existencial que ameaça sua própria natureza. O que testemunhamos não é um colapso súbito, mas uma erosão sistemática e deliberada das instituições que sustentaram o experimento democrático mais antigo do mundo moderno. Esta transformação segue padrões reconhecíveis de deriva autoritária, ecoando experiências contemporâneas desde a Hungria de Orbán até El Salvador de Bukele, passando pela Polônia de Kaczynski e os primeiros anos do Brasil de Jair Bolsonaro.

Arquitetura da Autocracia: Quando a Democracia se Devora

O processo em curso nos Estados Unidos replica um roteiro familiar aos estudiosos do autoritarismo competitivo, teorizado por Steven Levitsky e Lucan Way. Diferentemente dos golpes dramáticos do século XX, essa transformação utiliza as próprias instituições democráticas para desmontá-las por dentro. Viktor Orbán, na Hungria, forneceu o modelo mais refinado: manter as aparências eleitorais enquanto esvazia sistematicamente o conteúdo democrático das instituições por meio do que Bálint Magyar denomina "captura de Estado mafioso".

Esse mesmo manual foi adaptado com sucesso em contextos diversos. Em El Salvador, Nayib Bukele consolidou poder através de popularidade genuína combinada com intimidação sistemática das instituições. Quando invadiu o Congresso salvadorenho em 2020 com militares armados para pressionar por aprovação de empréstimos, testou os limites da resistência institucional exatamente como Trump faria em 6 de janeiro de 2021. A diferença crucial é que Bukele teve sucesso onde Trump inicialmente falhou, mas isso mudou com seu retorno triunfal em 2025.

A cronologia da implementação americana revela aceleração preocupante. A primeira administração Trump (2017-2021) estabeleceu precedentes com o "Muslim Ban" e ataques sistemáticos à imprensa, testando a resistência institucional. O período Biden (2021-2025) proporcionou uma leve estabilização, mas também permitiu que as forças trumpistas se reorganizassem e aprendessem com seus erros iniciais. O retorno de Trump em janeiro de 2025 marca uma nova fase, caracterizada por poderes executivos expandidos e resistência institucional enfraquecida e enfraquecendo.

Entre 20 de janeiro e 28 de janeiro de 2025, uma ordem executiva removeu proteções legais contra demissões políticas para funcionários federais. Em fevereiro, mais de 75.000 funcionários públicos aceitaram acordos de "renúncia adiada", enquanto 107.000 postos foram eliminados do próximo orçamento fiscal. Tribunais federais declararam essas medidas ilegais, mas a implementação de fato continua durante os processos judiciais, uma tática aprendida diretamente do manual de Orbán, que ignora decisões judiciais inconvenientes enquanto apela e reorganiza o judiciário.

Defensores da administração apresentam narrativa alternativa, argumentando que essas medidas visam aumentar a eficiência governamental e eliminar o que chamam de "Estado administrativo" não eleito. Esses extremistas no poder defendem que a reforma do funcionalismo é necessária para restaurar a responsabilidade democrática. Esta interpretação, embora minoritária entre cientistas políticos, ecoa justificativas similares oferecidas por todos os regimes autoritários contemporâneos: eficiência contra corrupção, vontade popular contra elites entrincheiradas, uma suposta ordem contra caos burocrático.
 

O Novo Macartismo

O paralelo com o macartismo dos anos 1950 é estruturalmente preciso. Joseph McCarthy perseguia supostos comunistas alegando defender a democracia americana; o novo macartismo segue nessa mesma trilha, persegue democratas, acadêmicos e jornalistas em nome de uma visão autoritária de poder ultranacionalista. A diferença metodológica é crucial: enquanto McCarthy operava através de comissões congressionais com alguma supervisão judicial, o novo sistema utiliza poderes executivos expandidos e agências federais, criando menos pontos de controle institucional, ou seja, é muito mais perigoso que o original.

Os mecanismos específicos de coerção em 2025 são impressionantemente abrangentes. Cinquenta e três universidades estão sob investigação federal por violações de programas DEI - Diversidade, Equidade e Inclusão, com ameaças de corte de 400 milhões de dólares em financiamento federal. Sistemas de vigilância de redes sociais monitoram estudantes internacionais, buscando identificar posições “pseudo-antissemitas". O uso de leis de emergência contra opositores políticos se intensifica, incluindo tarifas políticas punitivas como as de 50% contra o Brasil em fevereiro de 2025, uma escalada que ecoa as sanções arbitrárias de regimes autoritários contra países que os desafiam.

Esse padrão de perseguição ampla encontra paralelos inquietantes em outros contextos. Bukele em El Salvador utilizou a guerra contra gangues para justificar estado de emergência que já dura mais de dois anos, permitindo prisões em massa e suspensão de direitos constitucionais. Embora inicialmente popular devido à redução dramática da violência, o modelo salvadorenho demonstra como crises reais podem ser instrumentalizadas para consolidação autoritária. Trump aprende dessa experiência, usando múltiplas "emergências" simultâneas - imigração, "wokismo", "marxismo cultural", para justificar poderes extraordinários.

Apoiadores dessas medidas apresentam contra-argumentos que merecem consideração séria. Grupos como a Foundation for Individual Rights in Education apresentam dados mostrando que 79% dos estudantes conservadores relatam autocensura em campus universitários, argumentando que as medidas restauram "equilíbrio ideológico". Essa narrativa de opressão conservadora em universidades, embora contestada por evidências mais amplas, ressoa com experiências genuínas de estudantes e professores conservadores em certos ambientes acadêmicos. O problema não é a inexistência desses fenômenos, mas sua instrumentalização para justificar medidas autoritárias desproporcionais.

Militarização Silenciosa das Instituições

O Estado de direito enfraquece através de táticas que testam sistematicamente os limites constitucionais. Esta estratégia, denominada de "legalismo autocrático", mantém aparências de legalidade enquanto subverte a substância democrática. O modelo é aplicado com precisão cirúrgica, cada medida individual pode parecer defensável, mas o conjunto produz transformação qualitativa e exponencial do regime.

O uso do chamado tarifaço contra o Brasil exemplifica essa dinâmica. Tradicionalmente reservado para ameaças genuínas à segurança nacional, o International Emergency Economic Powers Act - IEEPA é agora aplicado contra aliados históricos por divergências políticas menores. Tentativas de influenciar nomeações judiciais através de pressão política direta se intensificam, enquanto a transformação do aparelho de Estado em instrumentos de perseguição política interna e externa avança sistematicamente.

Particularmente reveladora é a coerção midiática via Comissão Federal de Comunicações, que pressiona redes de TV através de aprovações de fusões bilionárias. A suspensão do talk show de Jimmy Kimmel pela ABC em setembro de 2025, após críticas persistentes ao trumpismo, e o cancelamento de Stephen Colbert na CBS demonstram como agências regulatórias são instrumentalizadas para silenciar vozes dissidentes através de pressão econômica direta e indireta. O padrão nem é mais sutil e, diante disso, redes de TV "voluntariamente" silenciam críticos para proteger interesses comerciais multibilionários sob análise governamental.

Essa tática ecoa métodos utilizados por Orbán na Hungria, onde oligarcas aliados compraram ou estrangularam economicamente veículos de mídia independentes. Bukele em El Salvador emprega variação similar, usando auditorias fiscais seletivas e pressão publicitária estatal para disciplinar jornais críticos. O modelo americano é mais sofisticado porque utiliza o próprio mercado como mecanismo de censura, mantendo aparências de liberdade empresarial.

Tribunais federais demonstram capacidade de resistência, com decisões contrárias à administração em 67% dos casos contestados até março de 2025. O sistema judiciário federal, com seus juízes vitalícios, representa o principal obstáculo institucional ao autoritarismo. Mas essa resistência enfrenta pressão crescente através de nomeações estratégicas e campanhas de deslegitimação. O cenário futuro depende da velocidade dessa captura judicial, resistência bem-sucedida pode frear a deriva autoritária, mas nomeações judiciais futuras podem alterar irreversivelmente o equilíbrio de poder.

EUA como Catalisador da Extrema-Direita Global

A dimensão internacional representa talvez a transformação mais revolucionária e subestimada. Os Estados Unidos abandonaram o papel de promotor da chamada democracia liberal para se tornarem ativamente um catalisador global do autoritarismo. Essa inversão histórica produz ondas sísmicas através de todo o sistema internacional.

A interferência eleitoral americana agora rivaliza com práticas de regimes autocráticos. O bilionário Elon Musk promove abertamente o AfD alemão (partido de orientação neonazista) antes das eleições de março de 2025, enquanto a Conferência "Make Europe Great Again" em Madrid coordena estratégias entre Trump, Orbán, Meloni e o partido Vox espanhol. O vice-presidente JD Vance critica "erosões democráticas" europeias na Conferência de Munique, invertendo completamente a retórica tradicional americana sobre direitos humanos e democracia, ou seja, estamos vendo uma verdadeira "Internacional Fascista" em pleno funcionamento.

Institutos de pesquisa europeus registram aumento de 23% na aprovação de partidos de extrema-direita após endossos americanos explícitos. O fenômeno representa inversão completa da abordagem tradicional estadunidense, que historicamente favorecia forças democráticas-liberais. Agora os Estados Unidos exportam autoritarismo com a mesma eficácia que antes exportavam seu modelo de democracia.

Essa coordenação internacional autoritária encontra paralelos históricos inquietantes. Assim como regimes fascistas dos anos 1930 se inspiravam e coordenavam mutuamente, a nova extrema-direita desenvolve solidariedade transnacional baseada em valores compartilhados: nacionalismo étnico, autoritarismo populista, racismo, misoginia, desprezo por instituições multilaterais e democráticas e perseguição à diversidade sexual. Bukele participa dessa rede através de relacionamento próximo com Javier Milei na Argentina e apoio explícito a Trump, criando eixo autoritário que busca contaminar as Américas.

Realistas da política externa apresentam interpretação alternativa, argumentando que essa reorientação reflete declínio hegemônico natural dos EUA e busca por novos aliados em mundo multipolar. Alguns analistas veem essa mudança como adaptação estratégica, e não travessia ideológica. Essa perspectiva tem mérito analítico, mas subestima o componente sistêmico e genuíno da transformação trumpista e sua capacidade de inspirar movimentos similares globalmente.

Autocensura como Arma: O Silenciamento da Sociedade

A chamada "erosão executiva" é considerada mais perigosa que golpes dramáticos, porque produz desengajamento cívico através de intimidação psicológica. A autocensura se torna arma mais eficaz que a censura direta, pois cria aparência de liberdade enquanto produz conformidade real e cria seguidores que replicam a ideologia dominante. Pesquisas quantitativas documentam esse fenômeno com precisão alarmante. Nessas pesquisas, professores universitários relatam modificar currículos por medo de represálias, enquanto jornalistas admitem evitar temas considerados "sensíveis", e grandes corporações de mídia autocensuram conteúdo crítico ao governo, criando um sistema interno de coerção que mantém aparências de liberdade editorial.

O humor político emergiu paradoxalmente como forma mais eficaz de resistência democrática. Comediantes tornaram-se mais efetivos que a oposição política tradicional na denúncia de contradições do poder, precisamente porque o humor fura bolhas ideológicas e expõe absurdos de forma acessível. Não coincidentemente, esses enfrentaram pressões sistemáticas: o comediante Jimmy Kimmel foi suspenso em setembro de 2025 após críticas persistentes ao trumpismo, enquanto Stephen Colbert teve seu programa cancelado quando a CBS decidiu resolver "questões pessoais" com Trump. O padrão revela como o humor político, por sua capacidade de mobilizar através do riso, representa ameaça particular ao autoritarismo.

Movimentos de resistência organizada mostram resiliência impressionante. A Federal Employee Unions Coalition e Scholars at Risk organizaram redes de proteção mútua, enquanto mais de 200 universidades criaram fundos legais para defesa de professores. Esta mobilização sugere capacidade resiliente das instituições da sociedade civil norte-americana, mas enfrenta os enormes recursos e organização estatal crescentes.

Veredito Científico: Consenso sobre o Declínio

O consenso acadêmico sobre a natureza da transformação americana é extraordinário em sua convergência. Estudo conduzido pelo Instituto V-Dem com 527 cientistas políticos americanos em janeiro de 2025 revela que 89% classificam o regime atual como "autoritarismo competitivo" ou "democracia defectiva". Steven Levitsky, da Universidade de Harvard e autoridade mundial em transições autoritárias, é categórico: "Não estamos mais vivendo em um regime democrático".

As métricas internacionais confirmam essa avaliação. A Freedom House rebaixou os EUA de 83 para 71 pontos entre 2017 e 2025, enquanto o Polity IV reduziu a classificação de +8 para +5 na escala democrática. O V-Dem Democracy Index coloca os Estados Unidos em 29º lugar global, abaixo de países como Uruguai e Costa Rica - uma humilhação histórica para o suposto e autonomeado "líder do mundo livre".

A comparação internacional torna o declínio estadunidense ainda mais evidente. Enquanto os Estados Unidos retrocedem, países como a própria Polônia demonstraram capacidade de reverter deriva autoritária através de mobilização eleitoral massiva em 2023. A diferença crucial é que a Polônia contava com pressão externa da União Europeia, enquanto os Estados Unidos, como potência hegemônica, não enfrentam constrangimentos externos equivalentes. Logicamente que vozes dissidentes existem, mas são cada vez mais minoritárias. As instituições dos EUA ainda mantêm alguma robustez capaz de reverter o declínio democrático, embora a velocidade e sofisticação dos processos de captura institucional abalem profundamente esse muro institucional ainda de pé.

Cenários Futuros: Entre Colapso e Consolidação

A análise prospectiva identifica três cenários principais, cada um com probabilidades estimadas baseadas em modelos comparativos de transições autoritárias. O primeiro e mais provável cenário aponta para consolidação autoritária plena, esse cenário envolve captura completa do judiciário federal através de nomeações estratégicas, federalização da segurança eleitoral para eliminar controles estaduais e controle crescente da mídia através de pressão econômica sistemática. O precedente histórico é a Hungria entre 2010 e 2018, onde Viktor Orbán consolidou hegemonia através de métodos similares, transformando uma democracia europeia em autocracia estável.

O segundo cenário prevê estabilização em modelo de autoritarismo competitivo. Eleições continuam ocorrendo, mas com vantagens sistemáticas para incumbentes, enquanto a oposição é tolerada, mas constrangida através de múltiplos mecanismos legais e extralegais. Este modelo pode persistir por décadas, como demonstram casos na Hungria, Rússia e Venezuela, criando aparência de pluralismo político enquanto elimina possibilidade real de alternância.

O terceiro cenário envolve a restauração democrática através de mobilização eleitoral massiva nas eleições subsequentes, resistência judicial bem-sucedida, pressão internacional coordenada ou divisões na coalizão autoritária. Precedentes sugerem possibilidade de reversão, mas requerem condições específicas e um nível de mobilização interna e apoio externo que podem não se materializar nos Estados Unidos de hoje.

Resistência e Resiliência

Diferentemente de muitos casos de transição autoritária, os Estados Unidos mantêm recursos institucionais significativos para resistência. A estrutura federal permite que estados democratas como Califórnia e Nova York utilizem recursos econômicos e legais substanciais para resistir à centralização federal. O federalismo americano, ironicamente criado para proteger o regime escravocrata, pode agora proteger a democracia através de múltiplos centros de poder que complicam a captura autoritária total pelo poder central.

O poder judicial federal, com seus juízes vitalícios nomeados em administrações anteriores, mantém independência relativa que frustra sistematicamente iniciativas autoritárias. Decisões contrárias à administração em casos de comércio, imigração, meio ambiente e direitos civis demonstram capacidade de resistência institucional que diferencia os Estados Unidos de muitos outros casos de deriva autoritária.

A sociedade civil americana permanece robusta, com organizações expandindo recursos e capacidade de litígio para níveis históricos. Financiamento privado para defesa de direitos civis atingiu volumes sem precedentes, criando infraestrutura de resistência que pode sustentar uma oposição prolongada. A mídia independente, apesar da pressão crescente através de agências regulatórias federais, mantém capacidade investigativa significativa. Meios como o New York Times possuem recursos financeiros e reputação global que complicam tentativas de silenciamento direto. Plataformas digitais descentralizadas ainda dificultam controle total da informação, embora as chamadas big techs estejam abertamente apoiando o governo de Donald Trump e apoiando a crescente desestruturação democrática.

Lições do Autoritarismo Contemporâneo

A experiência húngara, nascida em 2010 e presente até hoje, oferece lições cruciais sobre consolidação autoritária através de controle midiático sistemático, reforma judiciária estratégica e instrumentalização de fundos europeus para cooptação política. A lição central é que recursos externos, incluindo ajuda internacional, podem ser capturados e pervertidos por regimes autoritários para fortalecer seu próprio poder.

A Polônia, entre 2015 e 2023, demonstra dinâmica diferente, em que tentativas de captura judicial foram bloqueadas por resistência sustentada da sociedade civil e pressão da União Europeia, culminando em restauração parcial da democracia em 2023. A lição crucial é que mobilização sustentada pode reverter deriva autoritária, mas requer coordenação entre sociedade civil, oposição política e pressão externa.

El Salvador sob Bukele desde 2019 exemplifica como popularidade genuína pode ser instrumentalizada para consolidação autoritária. Bukele mantém aprovação superior a 80% enquanto desmonta sistematicamente controles institucionais, demonstrando que autoritarismo competitivo pode ser profundamente popular, especialmente quando produz resultados tangíveis como redução da criminalidade.
O Fim da Era Liberal?

A transformação dos Estados Unidos transcende fronteiras nacionais com implicações sísmicas para a ordem internacional. Como potência global desde 1945, estruturaram o sistema internacional liberal através de instituições multilaterais, alianças econômicas e promoção dos seus valores internos. Sua conversão aberta ao autoritarismo produz efeitos sistêmicos que redefinem a própria natureza das relações internacionais.

O efeito dominó é mensurável e acelerado. Regimes autoritários globalmente sentem-se legitimados e empoderados pela transformação americana, enquanto índices de democracia global registram declínio acelerado desde 2017. A total inversão do já limitado soft power americano agora favorece movimentos autoritários ao invés dos regimes liberais-democráticos, representando uma mudança histórica comparável ao fim da hegemonia do Império Britânico no século XX.

Alianças tradicionais como NATO e OCDE enfrentam crise existencial sem liderança democrática americana consistente. Instituições multilaterais perdem capacidade de coordenação e enfrentamento, criando um vácuo complexo de analisarmos no curto prazo, mas que surgirão como alternativas ao liberalismo americano decadente. Paradoxalmente, a crise norte-americana pode catalisar democratização em outras regiões. Europa, América Latina e Ásia podem assumir liderança democrática global, desenvolvendo modelos alternativos de governança liberal que não dependam de hegemonia americana. Essa transição, embora potencialmente positiva a longo prazo, envolve um período de instabilidade e incertezas significativas.

Entre Colapso e Renovação: O Veredito

O que testemunhamos nos Estados Unidos representa momento de inflexão histórica cujo resultado permanece genuinamente indeterminado. As forças de erosão democrática são poderosas, sistemáticas e seguem padrões reconhecíveis de transição autoritária observados em múltiplos contextos contemporâneos. Simultaneamente, recursos de resistência institucionais, sociais e federais mantêm capacidade significativa de resposta que diferencia o caso americano de muitas outras transições autoritárias.

A questão central não é se a democracia dos EUA enfrenta ameaça existencial - o consenso acadêmico confirma inequivocamente que enfrenta - mas se possui recursos suficientes para superá-la. A resposta determinará não apenas o futuro deste país, mas o destino da própria ideia democrática no século XXI, pois a falência da democracia liberal em seu berço histórico representaria golpe devastador para essas aspirações de forma global.

Para o mundo, isso representa simultaneamente o fim de uma era e o início de outra. Se a democracia liberal pode morrer onde nasceu e floresceu por mais de dois séculos, que esperança resta para sua sobrevivência em contextos menos favoráveis? Alternativamente, se pode ser renovada e fortalecida através desta crise existencial, que lições oferece para democratização e resistência autoritária mundial? Que tal uma nova democracia baseada verdadeiramente na inclusão, igualdade, fraternidade, solidariedade, humanismo e internacionalismo?

A história permanece aberta. O autoritarismo americano não é inevitável, assim como seu modelo de democracia não é eterno. O que emerge desta crise dependerá da capacidade de mobilização coletiva dos próximos anos críticos. Neste sentido, o diagnóstico sombrio deste texto não constitui profecia fatalista, mas alerta para ação urgente e sustentada em defesa das instituições democráticas, ainda que imperfeitas, enquanto ainda é possível salvá-las. O tempo está se esgotando, mas não se esgotou. A democracia norte-americana pode morrer ou pode renascer ainda mais forte em novos parâmetros, quem sabe, mais inclusiva e socialmente mais justa.


*advogado, ex-secretário executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

[Qual a sua opinião?]

Leia também: O crepúsculo do império norte-americano https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/11/eua-em-decadencia.html

Arte é vida

 

Mabel Frances Layng

As corporações querem professores-robôs https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/ensino-ad-precarizacao.html 

Minha opinião

A peteca e o livro*
Luciano Siqueira
instagram.com/lucianosiqueira65  

Artesã de profissão, de parcos recursos e muita curiosidade literária, trazia à mão uma peteca e disse alguma coisa a princípio incompreensível. E, num gesto surpreendente e ao mesmo tempo simples como o desabrochar de uma rosa, ofereceu uma peteca em troca do exemplar do livro de crônicas que estávamos lançando, Como o lírio que brotou no telhado, coletânea de textos originariamente publicados na minha coluna no portal Vermelho.

- Folheei o livro, tem coisas bonitas, fala de experiências de luta, tenho interesse em ler, mas o dinheiro está curto... O senhor aceita trocar um exemplar por essa peteca?

- Claro, minha querida! Será um prazer, acredite.

Na dedicatória, escrevemos “um afetuoso abraço e a crença sempre renovada na força e na arte do nosso povo”, como uma homenagem àquela inesperada e comovente leitora.

E a troca estava consumada. Uma espécie de escambo cultural.

O sorriso tímido deu lugar ao espanto quando soube que o autor do livro, vice-prefeito da cidade, ao sair da cadeia e retornar ao Recife, no final da década de setenta, sobreviveu dois anos e meio como artesão de bolsas de couro, que vendia aos domingos, na feirinha de Boa Viagem, enquanto dava sequência ao curso médico na Universidade Federal de Pernambuco (arbitrariamente interrompido em 1969, por determinação do regime militar).

Faltou dizer que o artesão-estudante de medicina muitas vezes chegou à enfermaria do Hospital das Clínicas Dom Pedro II com as unhas tingidas de matizes escuros, porque virara a madruga cortando, costurando e pintando e mal dera tempo para a remoção da tinta Enigma.

Nem deu para comentar que o estudante de medicina sentia orgulho do seu ofício, tanto que no registro de nascimento da primeira filha, Neguinha, consta exatamente artesão como profissão do pai.

Também não foi possível dizer que justo no ponto de vendas da feirinha típica de Boa Viagem foi possível reaglutinar companheiros e amigos dispersos e retomar a estruturação do PCdoB em Pernambuco, desarticulado pelas prisões ocorridas no início de 1974.

Depois o artesão se converteu em jornalista, assumindo a chefia da sucursal do semanário Movimento, que fazia oposição à ditadura, a convite de Raimundo Rodrigues Pereira, função que tocou até concluir o curso na Faculdade e iniciar o exercício da nova profissão.

Da experiência de sobreviver do artesanato ficou a clara percepção do valor do trabalho criativo que o artesão realiza sobre a matéria bruta. Por isso não cabia verificar se a peteca e o livro têm o mesmo valor, quando ela teve a gentileza de comentar:

- Não sei se essa peteca vale o livro, mas é o que tenho para trocar.

Claro que têm o mesmo valor, pois semelhantes são as mãos que fazem a peteca e as muitas mãos que constroem a História, objeto das crônicas contidas no livro.

Crônica publicada no portal Vermelho www.vermelho.org.br em junho de 2006

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Veja: Chico Pinheiro entrevista Cida Pedrosa https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/10/chico-pinheiro-entrevista-cida-pedrosa.html 

Humor de resistência

 

Gelvar

Leia: Vitória da civilização brasileira https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/09/urariano-mota-opina.html 

'O Agente Secretto' pelo seu diretor

“O texto de O Agente Secreto me deu prazeres e libertou de alguns sentimentos ruins”
As ideias que influenciaram o novo filme de Kleber Mendonça Filho/
Revista 'Piauí'
O texto a seguir, escrito por Kleber Mendonça Filho e intitulado A história na ordem errada, é o prefácio do livro O Agente Secreto
: um roteiro de Kleber Mendonça Filho, que será publicado pela Amarcord, da editora Record, no fim deste mês. 

Agente Secreto foi o título de um filme que eu tentei escrever anos atrás, mas não consegui. Foi a primeira vez que isso aconteceu, uma boa ideia que não virou roteiro ou conto. Um texto interrompido. Eu espero voltar a essa ideia um dia, com outro nome. Terminei trabalhando num novo roteiro, ambientado no Recife de 1977, e aquele título original foi reaproveitado. As duas ideias tinham em comum a vontade de fazer um filme com Wagner Moura. Antes de escrever o filme que hoje existe, eu estava saindo de um outro projeto chamado The Crew (A tripulação), uma parceria com o produtor francês Saïd Ben Saïd (nosso coprodutor em Aquarius Bacurau). O projeto original iniciara na década de 1970, com um roteiro escrito pelo britânico Mark Peploe e pelo italiano Michelangelo Antonioni, logo depois de colaborarem e O passageiro: profis são repórter (The Passenger, 1975). 

Durante muitos anos, The Crew foi considerado um dos grandes roteiros nunca filmados. A história tensa de um motim num iate de luxo em alto-mar me foi confiada depois que Mark viu O som ao redor no Festival de Locarno, em 2012. Eu parti para escrever e realizar Aquarius (2016) e Bacurau (2019), coescrito e codirigido por Juliano Dornelles, enquanto discuti durante anos com Mark e Saïd a possibilidade de fazer The Crew. O roteiro foi vendido ao estúdio Miramax nos anos 1990, mas questões contratuais envolvendo direitos autorais acabaram gerando uma longa e complicada história burocrática – da qual, por gentileza, pouparei vocês.

Me dediquei a The Crew durante a primeira parte mais assustadora da pandemia de 2020, quando não existiam ainda vacinas e Bolsonaro adernava como presidente. No ritmo do isolamento com família, e durante sete meses, reescrevi, acrescentei cenas e revisei esse roteiro. É delicado alterar o texto dos outros. É como querer morar numa casa alugada e propor uma reforma, respeitando a planta original e a sua história (Peploe/Antonioni). De todo jeito, a ideia era fazer da casa o meu espaço, fazer de The Crew o meu filme. A conclusão é que o projeto não avançou por falta de viabilidade financeira. Também não era o tipo de filme que permitisse cortes no roteiro apenas para se encaixar em um orçamento arbitrário. Do meu envolvimento com o roteiro, ficaram algumas aulas em tensão narrativa de corte inglês. O texto me lembrava Harold Pinter, as situ ações tinham algo de Polanski, Joseph Losey e Patricia Highsmith. Ao fim e ao cabo, The Crew era de fato Peploe e Antonioni, uma peça de tom masculino vinda de um outro tempo. Ficou uma amizade entre Mark e eu. Neste ano de 2025, perdemos Mark, um homem fascinante.

Foi a decepção com The Crew que me deu ganas de escrever um roteiro meu, situado no Recife e no Brasil, em português, numa escala que me parecesse viável. Eu já sentia esse novo filme como um pensamento aconchegante, um ninho de ideias em que eu faria o que quisesse, do jeito que desejasse. A minha casa própria. Durante a continuação do isolamento na pandemia, e vendo diariamente o Brasil sob a versão mais bovina do bolsonarismo, O Agente Secreto começou a ficar de pé. Eu lembro que, a certa altura, esse texto foi se escrevendo só, fenômeno que – quando acontece – me dá uma sensação de alegria e muita malícia. É uma sensação mesmo de safadeza. Com anotações de ideias a serem desenvolvidas, mas sem nenhum planejamento para a evolução da história, eu suspeitava que a trama se encaminharia do Recife para o sertão. Finalmente, foi o próprio roteiro que me negou o prazer de uma reaproximação com a região do Seridó, onde rodamos Bacurau. Era uma memória muscular que se manifestava, mas o roteiro mostrou que não seria o caso.

O texto de O Agente Secreto me deu outros prazeres e me libertou de alguns sentimentos ruins. Por exemplo: eu pensava ingenuamente que esse filme novo estrelado por Wagner Moura teria um disfarce natural de Brasil ao situar a história cinquenta anos atrás, sob o manto do “filme de época”. Seria distante do país contemporâneo. Por que eu queria esse disfarce? Eu me sentia ressabiado dos ataques políticos pessoais que sofri de tanta gente reaça nos lançamentos brasileiros de Aquarius e de Bacurau. Não ajudou muito o fato de que cada filme teve uma sintonia espantosa com o clima do Brasil, cada um do seu jeito. Nos lançamentos, me vi na mídia respondendo a perguntas sobre o que eu achava que estava acontecendo no país. Depois da première mundial de Aquarius no Festival de Cannes, eu chamei golpe de golpe. Não muito tempo depois, chamávamos fascista de fascista. Na mídia-veneno brasileira, contrariar uma versão oficial é receita certa para ser chamado de “polêmico”. Um dia, quero ser xingado de sensato. Nas redes sociais e na grande imprensa apareceu uma praga de ódio contra a figura do artista, fruto de um coquetel tóxico de mídia com mentiras criadas em laboratório. A mais preguiçosa de todas gira em torno do boitatá que assombra a direita de madrugada, que é a Lei Rouanet.

Era uma primavera reacionária com tons fascistas acontecendo na frente de todos, e interagir com gente estranha deixa o sujeito mais sóbrio. Essa interação quebra suposições ingênuas sobre o mundo e as narrativas. A ingenuidade, admito, era toda minha. Descobri nesse período de Aquarius & Bacurau que, por exemplo, não devemos temer o maniqueísmo ao criarmos, num roteiro, um “vilão”. Vilões existem na vida real, têm mão pesada, fazem live streams, caçam clicks e agem em bandos. Nunca começo com a intenção de “escrever um vilão”; o que realmente define esses personagens, tanto para os leitores do roteiro quanto para os espectadores do filme, são suas ações. Que quantidade insana de crápulas e filhos da puta da vida real ocupam pequenas e grandes pos ições de poder! Muitos dos perfis públicos que os representam nas redes digitais mostram em imagem e palavra um temor a Deus, um amor à família e uma honra à pátria. Muitos negam isso em crimes registrados por câmeras de segurança ou por eles mesmos. São conservadores, incels ou niilistas que nem conhecem o termo. Foi um laboratório fascinante de baixo astral poder escrever O Agente Secreto numa época em que tantos criminosos se orgulham de serem criminosos. De gente com tempo livre o suficiente para inventar acusações e fazer ligações. Alguns trabalhavam em jornais e blogs, borrando ou escondendo informações para um mal maior. Isso deve explicar o papel que a imprensa tem em O Agente Secreto.

Ainda sobre vilões, esses personagens que eu adorei construir, vale comentar que chegaram naturalmente. Repito, não os via como vilões, mas como agentes do caos. Euclides, Augusto, Arlindo, Sérgio, Ghirotti e Bobbi, ou ainda os dois policiais da Polícia Rodoviária Federal… Grandes atores brasileiros interpretam esses homens, Robério Diógenes, Roney Villela, Ítalo Martins, Igor Araújo e Gabriel Leone: Albert Tenório e Márcio de Paula. Eles sabiam de coração que seus personagens são parte da realidade no país. Para alguns, nos ensaios, lembrei do ditado “nenhuma boa ação ficará sem punição”. 

Wagner, também como artista brasileiro, atraiu um outro enxame de reaças com Marighella, filme que escreveu, produziu e dirigiu. Marighella foi calado durante quase três anos como produto cultural brasileiro sob o clima geral da Era Bolsonaro. O filme teve première mundial no Festival de Berlim em fevereiro de 2019 (um mês depois de o então presidente tomar posse) e só chegou aos cinemas comerciais do Brasil em novembro de 2021. Conversei muitas vezes com Wagner sobre Marighella e sobre essa macharada tão pilantra. Me pergunto o quanto dessas conversas não acrescentaram energia à minha escrita de O Agente Secreto e à relação de Wagner com o roteiro. Nós terminávamos rindo, pois eram muitas as almas sebosas. Dois amigos tentando trabalhar e entender a malandragem de vilões brasileiros verdadeiros. A verdade é que o distanciamento do presente que eu esperava sentir no ar histórico de O Agente Secreto nunca existiu. Meus poucos leitores iniciais não viram disfarce algum no roteiro. Wagner também não. De fato, a lógica histórica do Brasil permanece intacta em vários níveis da nossa vida nacional, e não são cinquenta anos que vão nos distanciar de um país tão íntimo de nós mesmos.

Foi escrevendo o roteiro que eu percebi como o conservadorismo do Brasil no século XXI era uma versão nostalgia-cor-de-rosa da ditadura civil-militar do século XX. Não só a ditadura retardou o desenvolvimento da sociedade brasileira em pelo menos trinta anos, como deixou milhões de brasileiros confusos sobre o que significa viver num país moral e democrático. Com o agravamento da crise moral em 2018, marcado pela eleição de Jair Bolsonaro, o Brasil também retirou do almoxarifado ideias que haviam sido apresentadas durante os quarenta anos de redemocratização que antecederam esse retrocesso. É como se a geração da “meia/melhor idade” quisesse reviver a sua juventude dos anos 1960 e 1970. Eu via isso e imaginava um shopping center moderno, as lojas falidas e a fonte de água ainda ligada. Na praça de alimentação, um estranho baile de debutantes, a música de Ray Conniff e da Jovem Guarda tocando numa caixa bluetooth com luzes irritantes. Kombis, Jipes e Rurais do exército estacionados na entrada. Os figurantes com cabelo de laquê e brilhantina fantasiados com roupas cheirando a naftalina.

Era esse o clima do país pós-golpe da era Temer/Bolsonaro. Frases e palavras – peças históricas orais do país – voltaram de um jeito que eu nem sabia que seriam ainda pronunciáveis: “Pau de arara”, “ditabranda”, “subversivo”, “torturador” e talvez a mais insólita, considerando a história e o estado do mundo: “comunista.” A xenofobia interna do Brasil, na relação “Norte-Sul” e “Nordeste-Sudeste”, nunca saiu de moda, é fato, mas parecia ter melhorado de alguma forma, pelo menos como discurso na mídia. Talvez eu não tenha nem mais certeza disso, mas fiz uma anotação durante a reeleição de Dilma Rousseff, em 2012. “Nas redes sociais, o Nordeste já é o responsável pela reeleição de Dilma e a permanência do PT no poder. Pelo que estou vendo, isso não seria uma coisa boa, acho que não aceitam que o PT de Lula continue liderando o Brasil com voto democrático desde 2002. Uma região inteira acusada de não saber votar. Seríamos responsáveis por toda a pobreza e desinformação da nação, a desgraça do Brasil, acho que é essa a acusação. Folklore.” Anotei.

Essas ideias todas foram azedando e apodrecendo ao longo de anos, e em praça pública. O país estava com uma catinga horrorosa e tudo era incentivado e divulgado sem pensamento crítico na grande mídia. Era pirraça. Eu não queria escrever um filme podre e pustulento, muito embora só agora eu entenda – ao escrever estas linhas – a verdadeira origem da sequência de abertura no posto de gasolina. Foi a primeira sequência que escrevi para O Agente Secreto.

A parte mais produtiva da escrita de O Agente Secreto aconteceu, ironicamente, longe do Recife, em Bordeaux, na França. Na fase final da pandemia e do governo Bolsonaro, nossa família morou durante um ano na cidade de Emilie, minha esposa. Foi um processo de despedida do pai de Emilie, Robert. Em Bordeaux, eu tive a sorte de utilizar uma salinha no topo da torre do que um dia foi a Igreja de Saint-Siméon, atualmente o Cinema Utopia, com cinco salas. O Utopia já havia exibido meus filmes e agora eu estava lá escrevendo um novo. A Igreja de Saint-Siméon havia sido desativada durante a Revolução Francesa. Virou depósito de sal e pólvora, depois foi uma escola naval, uma garagem, um estacionamento e, desde 1999, o Cinema Utopia. Muitos fantasmas transitavam por ali, até onde sei, todos e todas boa gente.

Essa minha escrita aqui agora não tem linearidade, mas me dou conta de estar narrando toda essa história numa ordem emocional errada. Esse panorama de um Brasil contemporâneo e como vivi esse momento pode ser interessante para entender O Agente Secreto, mas eu não teria escrito o filme se não existisse no início de tudo uma base emotiva encontrada nas histórias pessoais. É o terreno sobre o qual construí a casa e, francamente, vejo ali um enorme buraco de tatu no chão. Uma fenda para um poço de memória que continua numa caverna profunda.

Como ponto de partida, O Agente Secreto não teria nunca nenhuma relação com uma “história real”. Eu sempre quis reconstruir uma atmosfera histórica que fosse verídica, mas cuja trama fosse ficcional e fantasiosa. A lógica, o sabor e o cheiro do Brasil – num momento histórico brasileiro – seriam verdadeiros. O Recife como espaço de vida e de fantasia, o cenário. E eu teria que aceitar outra vez conviver diariamente com fantasmas. Eu havia passado os anos anteriores à pandemia manuseando papéis, fotografias, negativos, fitas de áudio e vídeo. Comprei equipamentos de digitalização, scanners de fotografia. Fazem parte do meu escritório e estão a não mais do que um braço esticado de distância de onde sento. Eu não queria enviar arquivo tão pessoal para longe, não queria que me devo lvessem um “material digitalizado” friamente. Minha vontade era mexer nas minhas imagens e entrar no material do filme que viria a ser Retratos fantasmas. Não existiria, portanto, O Agente Secreto sem Retratos fantasmas.

As coisas ficam ainda mais complexas quando me dou conta de que aquele manuseio de documentos me lembrava o trabalho de Joselice Jucá, minha mãe, historiadora. Ela defendeu durante toda a sua carreira como professora, acadêmica e pesquisadora a técnica da história oral. Defendeu também a pesquisa e a análise de documentos. Adoro esse trecho de uma entrevista com Joselice Jucá no Diário de Pernambuco, em 21 de dezembro de 1980. O título da entrevista é Memória regional será reconstruída. É a minha mãe.

Diário de Pernambuco: Somos nós, os nordestinos, desmemoriados?

Josélia Jucá: Lamentavelmente, somos, brasileiros em geral, desmotivados em relação às nossas fontes históricas. Memória existe, o que não é marcante é o interesse científico, a valorização da pesquisa documental, e isso é tanto mais grave quando constatamos a dicotomia entre o estudante de ciências sociais – particularmente o estudante de história – e o estímulo ao acesso à pesquisa documental. Por formação ou desinformação… Até mesmo o cientista social não parece muito ligado às fontes históricas. É interessante, por outro lado, constatar o sentido de preservação da memória regional entre as pessoas mais idosas que facilmente se dispõem a doar seus acervos objetivando preservar a memória nacional.

Diário de Pernambuco: O que significa para você a história? Como explica o valor dos documentos velhos?

Josélia Jucá: E se eu começasse falando dos historiadores? É que não se pode deixar de registrar, em tom de lamento, certo tipo de história que tem sido feita no país, onde os historiadores mais parecem espécie de porta-vozes da história oficial, ou como variante, se colocam na difícil posição de ora alimentar o mito, ora derrubá-lo. Entendo a história, contudo, dentro de outra colocação, coincidentemente esta com os objetivos propostos pelo Cehibra (Centro de História Brasileira), cuja linha ideológica propõe pesquisar sobre os acontecimentos ligados também à gente, ao povo, à massa tantas vezes anônima e que de igual modo pode contribuir de maneira significativa para o entendimento histórico global, através das correlações históricas inter-regionais e até mesmo internacionais. Quanto à indagação sobre o que chamou de “documentos velhos”, considerando-os como arquivos históricos, vejo-os impregnados de vida ao veicularem para o presente o conhecimento do passado. Os arquivos têm alma, por assim dizer, são organismos vivos porque são parte dos seus donos. Seus segredos, confidências, interesses, anseios, sua produção intelectual, enfim, a alma do homem está toda ela entranhada e facilmente retratada nos seus escritos arquivados. Através deles – em papéis velhos – descobrimos o homem e sua época como um todo: as filigranas de sua personalidade são desvendadas como que sob o efeito de lentes de aumento; o juízo que ele fez de si próprio, a maneira como foi visto por seus contemporâneos e a interpretação a ser dada pelos pesquisadores do futuro são análises propiciadas pelo estudo de arqu ivos particulares. Enfim, é a sua memória, “aquilo que serve de lembrança”.

Eu só vim conhecer essa entrevista de Joselice no Diário de Pernambuco por causa de uma homenagem à minha mãe como historiadora neste mês de agosto, e passados trinta anos da sua morte. Eu estava já concluindo esta minha introdução quando ouvi a entrevista, lida em voz alta pela historiadora Cibele Barbosa, que hoje ocupa posição semelhante à de Joselice na Fundação Joaquim Nabuco. As palavras de Joselice explicam muita coisa. Cibele nasceu em 1980. Com o passar dos anos, eu já havia conquistado uma compreensão mais profunda do trabalho de Joselice em vida, muito tempo depois da sua morte, em 1995. Nesses trinta anos, as ramificações que isso tem em mim são impossíveis de entender totalmente. Durante mais de um ano escrevendo o roteiro, a personagem Flávia – a jovem estudante e pesquisadora estagiária do futuro int erpretada por Laura Lufési – chamava-se “Joselice”. Com o lançamento de Retratos fantasmas – e com a presença marcante de Joselice naquele filme –, alterei o nome. Eu já me vi tentando entender questões de perda, luto e memória. Não é exatamente um sentimento inédito, e ver ideias que atravessam filmes tão diferentes entre si, ao longo de tantos anos, de forma tão recorrente, é algo que me impressiona. De toda forma, é um dos elementos que tenho para oferecer de forma honesta.

Destaco uma sensação que me fortaleceu nesses filmes ao me sentir espelhado no trabalho constante e obsessivo que meu amigo e cineasta Leonardo Lacca fez com seu pai/avô no seu belo filme Seu Cavalcanti. Traços de vida e de morte motivando o cinema como uma busca incessante. Não deve ser coincidência que Lacca é um colaborador constante desde O som ao redor, atuando como consigliere, diretor assistente. Um dos momentos mais fortes dos anos de trabalho dedicados a Retratos fantasmas foi a redescoberta das horas de gravações em vídeo VHS que eu fiz com Alexandre Moura, o Seu Alexandre, operador de projeção do Cinema Art-Palácio na Rua da Palma, Centro do Recife. Esse material foi registrado por mim entre 1989 e 1992 no próprio Art-Palácio.

Joselice defendia essa justa compreensão da história pelos trabalhadores e o que têm a dizer. Em um registro tradicional sobre uma sala de cinema, por exemplo, o proprietário, o gerente seriam personagens principais, não o projecionista, isolado lá no alto da cabine. Ocorre que eu instintivamente registrei horas de conversas e interações com Seu Alexandre, uma pessoa de fascínio sem fim e um grande ser humano. Passei meses com Seu Alexandre durante a pesquisa e montagem de Retratos fantasmas, vendo e ouvindo ele falar, conversando comigo, eu me vendo trinta anos mais jovem e 20-23 anos depois da morte dele.

Depois que O Agente Secreto começou a ser visto publicamente, a pergunta sobre o personagem de Seu Alexandre (interpretado por Carlos Francisco) ser uma “homenagem” a Alexandre de Retratos fantasmas é recorrente. E é engraçada a forma como referem-se a “Seu Alexandre de Retratos Fantasmas”, como se o filme – um ensaio, um documentário – fizesse dele um personagem da ficção. Eu nunca pensei nos termos de uma “homenagem” e volto à ideia de que o roteiro se escreveu sozinho. No texto, surgiu “Seu Alexandre”, personagem da ficção que escrevi impulsionado pela saudade de um amigo, a lembrança de uma grande pessoa. E uma pessoa de cinema, da vida e num cinema. Na verdade, tudo ficou ainda mais complexo sobre “Seu Alexandre”: Carlos Francisco, Rita Azevedo (figurinista) e Marisa Amenta (caracteri zação), talvez impactados pelo “Seu Alexandre de Retratos fantasmas”, deram ao “Seu Alexandre” da ficção em O Agente Secreto um verniz realista, dos gestos às roupas, aos óculos e ao rosto. Ironicamente, Carlos, Rita e Marisa nunca discutiram isso comigo, fizeram por intuição, desejo ou respeito. Talvez tocado com a imagem de Carlos pronto, vestido e penteado como Seu Alexandre, deixei de estar. O trabalho de (re)construção de lembranças feito em Retratos fantasmas me mostrou em termos práticos que temos memórias que também pertencem aos que nos acompanham desde cedo. Quando Seu Alexandre me falava dos anos 1940 e 1950, eu conseguia ver e andar nesse tempo. Mesmo tendo nascido em 1968, o que lembro dos anos 1960 é real, lembranças implantadas pelos meus pais. Meus tios José Jr. e Ronaldo (do lado da minha mãe) e tia Marluce do lado do meu pai. Todos professores, meus dois pais e os três tios e tia. Falavam naturalmente, descreviam em detalhes o que viveram antes de eu nascer. Meu tio José Jr., exímio contador de histórias, em especial, me falou muito sobre a lógica do Brasil ao narrar incidentes do passado que poderiam ter acontecido hoje. Vejo tudo como implantes de memória, como em Philip K. Dick.

Um dia, nos preparativos para filmar O Agente Secreto, eu fui parar no departamento de figurinos, na base de produção. Na parede da sala de Rita, um vasto quadro com duas centenas de fotografias. Não eram recortes de revistas de moda da época, mas fotos de famílias. Pais, mães, tios, tias, primos e primas, festas de aniversário, carnaval, escola, universidade, lojas e ruas. Um álbum vasto sobre a vida no Recife dos anos 1970. Rita não era nascida nessa época, mas ela pegou as lembranças emprestadas para depois devolver.

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