A
ambição global do Catar com a Copa do Mundo: 'país colocou a si próprio no
mapa'
Paula Adamo Idoeta, BBC Brasil
"Vamos a
novos territórios", disse Joseph Blatter, então presidente da Fifa, depois
de anunciar, em 2010, a surpreendente escolha do Catar para sediar a Copa do
Mundo masculina de futebol de 2022.
"O Oriente Médio estava esperando - e eu
diria que o mundo árabe estava esperando havia muito tempo para ter a Copa do
Mundo. Agora, vocês a têm."
A escolha chamou a atenção do mundo por muitos
motivos. Por que um país sem nenhuma tradição futebolística ou infraestrutura
esportiva seria escolhido para o evento global?
O Catar é um país com menos de 3 milhões de
habitantes e a metade do tamanho de Sergipe, o menor Estado brasileiro. Na
época do anúncio de Blatter, o Catar não tinha nenhum estádio apto a sediar a
Copa, nem infraestrutura suficiente para receber ou acomodar os visitantes do
evento.
Também enfrenta temperaturas escaldantes - e
perigosas - que comumente passam dos 40°C no verão (o que forçou a Copa a ser
jogada no inverno do Hemisfério Norte).
Desde 2010, o Catar tem estado sob escrutínio
intenso, tanto pelas denúncias de corrupção envolvendo a Fifa, quanto pelos
gastos bilionários com os preparativos, os abusos de direitos humanos e as
condições degradantes vividas pelos trabalhadores desta Copa de 2022 (mais detalhes a seguir).
No último mês, o próprio Blatter declarou à
imprensa que o Catar foi um "erro" e uma "má escolha", por
ser um país "muito pequeno, e a Copa do Mundo é muito grande".
Mesmo antes de começar, a Copa do Catar já está
sendo chamada de a "mais polêmica e politizada da história".
Mas o que, então, o Catar ganha em troca? O
prestígio trazido pela Copa do Mundo é suficiente para compensar a exposição
negativa e os gastos bilionários?
Analistas da geopolítica do Golfo Pérsico explicam
que, na verdade, o pequeno país concilia preocupações antigas com ambições de
longo prazo nos cenários regional e global.
País
que colocou a si próprio no mapa
É preciso enxergar a Copa do
Mundo como o ápice de um rápido - e ainda em curso - processo de reformas e
abertura do Catar, explica à BBC News Brasil Chris Doyle, diretor do Conselho
para Compreensão Árabe-Britânica (Caabu, na sigla em inglês).
Ele diz que o ponto-chave na história é 1995,
quando o xeique Hamad Ibn Khalifa Al-Thani tomou o poder do Catar de seu
próprio pai (e em 2013 abdicou em favor de seu filho, o atual emir Tamim Ibn
Hamad Al-Thani).
Naqueles meados dos anos 1990, diz Doyle, o Catar
era um país voltado para si, de população pesqueira e pobre, ainda incapaz de
explorar plenamente suas reservas de gás e petróleo.
"Não havia a infraestrutura que tem agora,
não se servia álcool em hotéis, não havia a Catar Airways, o aeroporto era
muito pequeno. Hamad expulsa seu pai e assume o poder e tem uma agenda. Avança
na infraestrutura do gás, e quer claramente tornar o Catar um destino para
eventos - algo que é relevante para entender a Copa do Mundo", explica
Doyle.
O resultado é que o Catar começou a construir
museus, abrigar torneios esportivos internacionais (como os Jogos Asiáticos de
2006) e atrair universidades ocidentais para parcerias. Também passou a sediar
a gigante midiática Al-Jazeera e uma base militar americana a partir de 1996,
como forma de proteção contra seus vizinhos.
Leia também: Capital do Qatar é uma selva de aço e vidro, sem fronteiras entre a miséria e a riqueza, porque os pobres são excluídos mesmo https://bit.ly/3hVTfB9
Com isso, o Catar colocou a si próprio no mapa, afirma Doyle.
"Políticos britânicos que sequer sabiam que o
Catar existia ou como pronunciar seu nome começaram a prestar atenção ao país.
(...) Grandes eventos começaram a acontecer. Então a Copa do Mundo, de muitas
formas, é o ápice desse processo. Não poderia ter acontecido sem todas essas
mudanças que aconteceram antes. E acho que isso foi a forma máxima de dizer: 'o
mundo vai vir a nós'. E isso, de certa forma, será o legado (do atual emir)."
O interesse do Catar em sediar a Copa foi
justamente o ponto de partida do documentário de rádio "Como
vencer a Copa do Mundo", da BBC Radio 4, apresentado pelo jornalista David Conn, do jornal The
Guardian e autor de The Fall of the House of Fifa (A Queda da Casa da Fifa, em tradução livre).
No documentário, Conn ouve especialistas que
explicam que o pequeno país nunca terá um Exército de tamanho suficiente para garantir
a própria segurança. Então, buscou outra estratégia na arena internacional.
"O Catar se vê seguindo um modelo
estabelecido no século 17 pelo próprio profeta Maomé, que criou em Medina um
lugar onde tribos que estivessem competindo entre si pudessem conviver em
sociedade, e disso nasceu o próprio islã", explica ao programa Allen
Fromherz, diretor de Estudos de Oriente Médio da Universidade do Estado da
Geórgia e autor de livros sobre a história do Catar.
"Então, o Catar vê seu papel como uma reflexão
de algo profundo não só da cultura árabe, mas do islã, de trazer a resolução de
conflitos na região, e em consequência obter uma recompensa para seu próprio
povo, que é a autoridade. É exatamente isso que o Catar tem tentado ser, um
fórum."
'Política
de proteção e projeção'
Nesse papel, diz Fromherz, o Catar conseguiu
simultaneamente abrigar a base militar americana e receber a visita de líderes
do grupo radical Talebã - um adversário de longa data dos EUA. Assim, se
cacifou para ajudar a mediar o conflito entre ambos e também outros, como o
conflito entre Etiópia e Eritreia, e disputas territoriais de países como o
Líbano ou o Chade, por exemplo.
Segundo Fromherz, é dessa perspectiva que deve ser
visto o interesse do Catar ao sediar a Copa do Mundo.
"A Copa do Mundo meio que representa
simbolicamente esse papel mais amplo em que o Catar se vê, de 'somos quem
negocia soluções, somos uma parte indispensável desta região e deste mundo, e
será muito ruim se formos engolidos por um vizinho, ou se formos ameaçados
apesar da nossa imensa riqueza'. Então é uma política de proteção, mas também
de projeção."
'Sportswashing'
e passado colonial
Mas o Catar também é acusado de
usar o evento para mascarar um histórico de desrespeito aos direitos humanos e
trabalhistas. É o que se chama de "sportswashing": usar o prestígio e
a positividade associados ao futebol para ofuscar aspectos negativos de um
governo ou sociedade.
No Catar, isso tem sido levantado sobretudo em
três pontos: exploração de imigrantes, direitos das mulheres e perseguição à
população LGBTQI+.
Para construir sua até então inexistente
infraestrutura e seus estádios, o Catar importou estimados 5 milhões de
trabalhadores migrantes vindos em sua maioria de países pobres do sul da Ásia,
como Nepal e Bangladesh.
Estima-se que milhares deles tenham morrido de
problemas de saúde relacionados ao trabalho intensivo sob o calor escaldante do
verão.
Por anos, esses trabalhadores foram trazidos por
meio de um esquema de vistos conhecido como Kafala, em que eles entravam no
país patrocinados por empregadores - e só podiam mudar de emprego ou mesmo sair
do país com autorização desses empregadores.
O sistema, que chegou a ser equiparado a uma
espécie de escravidão moderna, foi abolido em 2016 pelo governo catari, dando
mais flexibilidade e proteção aos trabalhadores.
O governo catari promoveu a mudança como parte do
processo de reformas pelo qual o país tem passado.
"As novas mudanças na legislação, combinadas
com fiscalização e compromisso a reformas sistêmicas, não só no Catar mas nos
países de origem (dos migrantes), vão garantir que os direitos dos
trabalhadores sejam respeitados", disse o governo na época.
Mas, na ocasião, a ONG Anistia Internacional
afirmou que a mera mudança legal era insuficiente para proteger os migrantes de
abusos sistemáticos.
Chamando o evento no Catar de "Copa do Mundo da
vergonha", a ONG afirma que os trabalhadores
migrantes viviam em condições sub-humanas, recebiam menos do que lhes fora
prometido e tinham sua liberdade de ir e vir restrita.
O Catar, além de promover mudanças, se justificou
jogando a culpa na herança colonial britânica: muitas leis trabalhistas
remetiam à época em que o país foi um protetorado do Reino Unido, entre 1916 e
1971 - período em que o governo britânico se comprometia a garantir a proteção
do
Catar em troca do controle sobre a política
externa catari.
Embora isso tenha feito com que a responsabilidade
histórica tenha se estendido também ao Reino Unido, críticos afirmam que isso
não serve para justificar as práticas atuais.
Leia também: Seleção brasileira precisa superar alguns mitos que surgiram em Copas passadas https://bit.ly/3V56KwI
"Devemos reconhecer essa história, mas
devemos pôr fim (a essas práticas), independentemente de quem as começou",
disse à BBC Radio 4 Rothna Begum, pesquisadora sênior de Oriente Médio e Norte
da África da organização Human Rights Watch.
Para Chris Doyle, é importante jogar luz nos
problemas enfrentados pelo Catar, mas de modo construtivo e sem
"arrogância", sob o risco de criar resistência a reformas mais
profundas no país.
"Tem havido uma cobertura hostil, nem sempre
merecidamente, sobre a Copa do Mundo. Sim, deve haver críticas quanto a
direitos trabalhistas e LGBT, mas já vi comparações com o regime do apartheid
na África do Sul, ou com os regimes de China e Rússia. Sendo que a situação no
Catar não é nem remotamente parecida com a desses países - nem com o que a
China faz com (a minoria étnica) uigur ou com a invasão russa do seu vizinho
(Ucrânia)", afirma Doyle à BBC News Brasil.
"Meu medo é que se crie um ressentimento e um
cansaço que impeça que mais reformas aconteçam. Por isso peço um diálogo
crítico, mas não boicotes. Acho que há muita arrogância na Europa - basta ver a
forma como muitos países tratam seus imigrantes. (...) Não temos o monopólio da
boa governança", agrega o britânico.
Diretos
de mulheres e homossexuais
E há, também, intensas críticas à
forma como mulheres e homossexuais são tratados no país.
A homossexualidade é proibida por lei no Catar, e
a punição varia de multas à pena de morte. Em declarações recém-publicadas pela
emissora alemã ZDF, um dos embaixadores da Copa catari, Khalid Salman, afirmou
que relações entre pessoas do mesmo sexo "são 'haram' (proibidas) porque
danificam a mente".
Ao mesmo tempo, diversas autoridades têm destacado
que o Catar está em processo de reformas e de abertura social e política, e que
"todos são bem-vindos" à Copa do Mundo. Dito isso, o executivo-chefe
da organização da Copa, Nasser al-Khater, declarou também que o governo não
pretende mudar as leis relacionadas à homossexualidade e pediu que visitantes
"respeitem nossa cultura".
Quanto às mulheres, o conservadorismo social e
religioso no país as força a serem submetidas a uma espécie de tutoria por
parte de homens - e só com a permissão masculina podem se matricular numa
universidade, por exemplo.
"É como ser menor de idade a vida
inteira", disse à BBC a catari Zeinab (nome fictício, para proteger sua
identidade), que hoje mora no Reino Unido.
"Para cada grande decisão de vida, você
precisa de autorização explícita por escrito de um guardião homem, geralmente o
seu pai, mas se ele não estiver vivo, então é o seu tio, irmão ou avô. Se você
não tiver autorização, não pode tomar nenhuma decisão - seja entrar na universidade,
estudar no exterior, viajar, se casar, se divorciar."
Aposta
milionária na candidatura
Por fim, na raiz de toda a
discussão está a própria escolha do Catar como sede da Copa por parte da Fifa,
em detrimento dos demais países candidatos (Japão, Austrália, Coreia do Sul e
Estados Unidos).
O Catar nega que tenha havido qualquer tipo de
corrupção na campanha do país perante a Fifa, e uma investigação interna do
comitê de ética da federação não identificou irregularidades.
Mas uma investigação do Departamento de Justiça
dos EUA tornada pública em 2020 acusou três membros do comitê executivo da Fifa
- entre eles o brasileiro Ricardo Teixeira - de terem recebido suborno para
votar tanto no Catar para a Copa de 2022 como na Rússia para o torneio de 2018.
Ricardo Teixeira negou as acusações na época, e
sua defesa afirmou que se tratava de uma retaliação americana por ele ter
votado no Catar, e não nos Estados Unidos, para sediar a Copa.
O jornalista David Conn lembra que, dos 24 membros
do comitê executivo da Fifa com voto em 2010, mais da metade foram indiciados
sob acusações diversas de corrupção ou banidos do futebol por quebra de conduta
ética. No entanto, Conn não acha que isso baste para explicar a escolha do
Catar para a Copa de 2022.
"É errado achar que a candidatura foi
vencedora por conta de envelopes cheios de dinheiro", ele explica no
programa da BBC Radio 4.
Conn e seus entrevistados argumentam que a
estratégia do Catar foi fazer uma campanha milionária em favor de sua
candidatura - incluindo o então presidente francês, Nicolas Sarkozy.
Seguindo Joseph Blatter, a pressão teria incluído
também o ex-jogador francês Michel Platini - então presidente da Uefa,
confederação do futebol europeu. Platini sempre negou a afirmação.
Não por coincidência, eles argumentam, o fundo de
investimentos Qatar Sports Investments posteriormente adquiriu o clube francês
Paris Saint-Germain.
O Catar também investiu na época em embaixadores
de peso para promoverem a candidatura do país, como o ex-jogador francês
Zinedine Zidane e o técnico Pep Guardiola. Há estimativas que indicam que o
Catar teria gasto mais com embaixadores do que todos os demais países gastaram
em todo o custeio de promoção da sua candidatura.
'Segurança
pela notoriedade'
Rebatendo
as críticas recebidas nos últimos anos, o emir do Catar, Tamim Ibn Hamad
Al-Thani, disse que "há décadas, o Oriente Médio sofre discriminação, e
descobri que essa discriminação vem em grande parte de pessoas que não nos
conhecem e, em alguns casos, se recusam a nos conhecer".
O emir afirmou estar "orgulhoso do
desenvolvimento, reforma e progresso" de seu país.
Mas, com tantas acusações, vai valer a pena para o
Catar ter ficado sob os holofotes?
Tanto Rússia como Brasil, sede dos dois torneios
anteriores, viram sua situação social, política e econômica ficar ainda mais
complexa depois da Copa do Mundo.
Chris Doyle diz que tudo dependerá de como
transcorrerá a Copa em si, mas ele lembra que o Catar já passa por um processo
enorme de mudanças, embora continue sendo uma sociedade bastante conservadora.
"Há muitos que acham que talvez a Copa tenha
vindo cedo demais para o Catar, que o país precisaria ter tido mais dez ou 20
anos de um processo de reformas graduais, debate sobre questões tabu como a
LGBT. (...) Mas também falta entendimento (internacional) da enorme jornada
pelo qual o país passou" em termos de abertura econômica, social e
política e de infraestrutura em poucas décadas, detalha Doyle.
"O Catar é irreconhecível de quando eu estive
lá pela primeira vez, nos anos 1990. As pessoas dizem que o ritmo de mudança é
tamanho que se você passar seis meses fora não saberá mais como o sistema
viário funciona quando você voltar."
É possível que alguns ganhos, inclusive, já tenham
ocorrido. O jornalista investigativo de esportes Tariq Panja lembrou, no
documentário da BBC Radio 4, a crise diplomática vivida em 2017 pelo Catar,
quando seus vizinhos Egito, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Bahrein
acusaram o governo catari de patrocinar terrorismo e impuseram um bloqueio comercial
que durou quatro anos.
Panja acha que a notoriedade dada pela Copa do
Mundo foi crucial para o Catar obter apoio internacional.
"Se ninguém tivesse ouvido falar desse lugar
(o Catar), a gente se importaria com o caso? Acho que não. Talvez (a Copa) dê
segurança pela notoriedade. Não é só o Catar, é 'o Catar, sede da Copa'. Algo
que carrega certo poder."
Leia também: Futebol: a tradição brasileira da combinação de
talentos entre atacantes https://bit.ly/3hJM6DK
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