01 julho 2025

Movimento estudantil

O que os estudantes têm a dizer sobre educação e o futuro do Brasil
Diante da ascensão da extrema-direita e da crise do ensino superior, o movimento estudantil propõe um projeto de nação baseado em democracia, desenvolvimento, justiça social e educação como eixo estratégico
Bianca Borges/Grabois 
 

Estamos vivenciando um momento crítico da história mundial. A ascensão da extrema-direita em diversas partes do mundo, com vitórias eleitorais, tem se dado sobre um terreno de crise econômica, insegurança social e desconfiança nas instituições democráticas. O neofascismo de nosso tempo se apresenta como antissistema, mas é, na prática, um projeto de destruição dos direitos sociais e democráticos. Nos Estados Unidos, o retorno de Trump à presidência é um impulso para a reoxigenação global desse projeto reacionário, que repercute diretamente na América Latina, especialmente no Brasil.

Extrema-direita no Brasil e a resposta estudantil

Aqui, esse processo assume características próprias. A extrema-direita brasileira não é cópia do que há lá fora: ela é alimentada por tradições autoritárias enraizadas em nossa história, como o racismo estrutural, o militarismo, a negação da política e a glorificação da violência. Foi sobre essa base que se articulou um bloco perigoso entre setores das Forças Armadas, do fundamentalismo religioso, de empresários ligados a esquemas criminosos e redes de desinformação. Trata-se de um projeto antidemocrático e de desmonte nacional.

Mesmo com a derrota eleitoral em 2022, a extrema-direita não foi derrotada socialmente. Continua presente, com capilaridade nas periferias urbanas, entre trabalhadores precarizados e parte da juventude. Faz trabalho de base, ocupando igrejas, explorando ressentimentos e pautando o moralismo entre a população.

Nesse cenário, cabe a nós construir uma maioria social em torno de outro projeto de país. E esse projeto precisa reconquistar a população, disputar a política econômica, o papel do Estado, o que se entende por desenvolvimento e ressignificar a política.

É nesse contexto que a União Nacional dos Estudantes (UNE) tem um papel decisivo. Nascida da luta contra o nazifascismo em 1937, carrega um legado histórico nas lutas democráticas, tendo, ao longo de seus quase 90 anos, provado seu potencial de mobilizar amplos setores em escala nacional.

O Plebiscito Popular que propomos, junto a dezenas de outras organizações do movimento social, é um importante instrumento para isso. Apresentar à população propostas como a taxação dos super-ricos, a isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil, a redução da jornada de trabalho e o fim da escala 6×1 é fundamental para fortalecer as bandeiras que afetam nossa vida cotidiana, devolver voz ao povo e evidenciar as contradições da extrema-direita, que finge representar os trabalhadores enquanto serve aos interesses do topo da pirâmide.

Educação no centro de um novo projeto de país

Além do embate contra a extrema-direita e em defesa da democracia, enfrentamos hoje uma crise profunda no ensino superior. O sonho de romper barreiras socioeconômicas com um diploma universitário se desfez com o avanço do desemprego. Os índices de evasão são alarmantes: 60% dos matriculados deixam as salas de aula — número que chega a 78% nas licenciaturas. O avanço desregulado do ensino a distância já responde por mais da metade das matrículas e tem derrubado a qualidade da formação. Os grupos privados, que concentram mais de 80% das matrículas, lucram com a educação como negócio, numa lógica de completa mercantilização.

É urgente apresentar uma nova agenda estratégica para o ensino superior, capaz de articular o presente com o futuro. A UNE deve liderar esse reposicionamento da universidade no centro de um projeto de desenvolvimento nacional: que conecte currículo, ciência, trabalho, cultura, soberania e justiça social. Para isso, defendemos uma reforma universitária viva, que dialogue com as lutas concretas: orçamento adequado, assistência estudantil, fim do vestibular excludente, estágios obrigatórios remunerados, regulamentação do ensino privado e proibição de capital estrangeiro no setor.

Para tanto, precisamos formular uma agenda para as eleições de 2026, afirmando a frente ampla com centralidade na questão democrática, mas tendo em seu cerne uma frente popular que desmascare a extrema-direita e impulsione uma agenda de direitos, com a educação no centro.

O novo Plano Nacional de Educação terá avançado menos de 10% em relação às metas do plano anterior. Precisamos disputar esse debate com uma proposta robusta, baseada no investimento público, na valorização das licenciaturas e na integração da universidade a um projeto de reindustrialização nacional. Hoje, o Brasil forma cada vez menos engenheiros, pesquisadores e professores, o que impacta diretamente a soberania do país.

Para tirar esse projeto de país soberano do papel, é preciso garantir financiamento público adequado. O Fundo Social do Pré-Sal é parte decisiva disso. A UNE liderou a campanha “50% do Fundo Social do Pré-Sal para a educação”, que resultou na Lei nº 12.858/2013 — uma vitória concreta do movimento estudantil.

Contra o arcabouço fiscal: sem teto para a educação

Nos governos Temer e Bolsonaro, essa conquista foi desfigurada. A Emenda Constitucional nº 109/2021 permitiu o uso do Fundo para amortizar a dívida pública. Entre 2021 e 2022, R$ 64 bilhões foram desviados para esse fim. O TCU foi claro: houve esvaziamento financeiro do Fundo e desvio de finalidade.

Esse desmonte está inserido em um processo mais amplo de institucionalização da austeridade. Desde o governo Dilma, com Joaquim Levy à frente da Fazenda, passando pelo teto de gastos de Temer, as reformas e, agora, o arcabouço fiscal, consolidou-se um consenso neoliberal que impôs a contenção permanente dos investimentos públicos. Esse ciclo reduziu drasticamente a capacidade de ação do Estado e subordinou a política econômica ao mercado financeiro.

Com a vitória de Lula e a abertura de um novo ciclo político, estivemos — e seguimos — ao lado do campo democrático na reconstrução do Brasil. Nesse ciclo, o movimento estudantil arrancou conquistas fundamentais nos últimos dois anos: a renovação da Lei de Cotas, a aprovação do PNAES, a retomada de obras nas universidades federais, a recomposição orçamentária e a sanção do novo marco do ensino a distância. Esses avanços são fruto de muita mobilização, enfrentamento político e capacidade de incidir sobre o governo que ajudamos a eleger. Mas precisamos ir além.

O arcabouço fiscal, ao institucionalizar o controle de gastos de forma rígida, compromete áreas essenciais como a educação. O recente Decreto nº 12.448/2025 escancarou esse risco ao colocar as universidades federais sob ameaça de corte. É impossível conceber um projeto de educação com o teto do arcabouço fiscal. A educação precisa estar fora do arcabouço! E não podemos perder de vista a luta pelo seu fim. Nenhum país se desenvolveu com austeridade permanente sobre setores estratégicos. Nosso desafio é enfrentar a arquitetura de um modelo de país que inviabiliza qualquer projeto de futuro.

Educação no centro, povo no poder

Nós, estudantes, precisamos recuperar o que é nosso. Os royalties do petróleo não podem continuar indo para emendas parlamentares e juros da dívida. O Pré-Sal tem que voltar a servir ao interesse nacional. A UNE deve reposicionar com força a pauta da retomada do caráter original do Fundo Social.

Se queremos derrotar a extrema-direita, não basta resistir — é preciso disputar projeto, narrativa e o futuro. A frente ampla continua sendo essencial diante da ameaça autoritária, mas não pode ser um fim em si mesma. É dentro dela que devemos afirmar, com firmeza, um campo popular enraizado no Brasil real.

Papel histórico da UNE e o futuro do Brasil

A UNE, que atravessou as grandes encruzilhadas da história brasileira, tem autoridade política e responsabilidade histórica para cumprir esse papel. Cabe a nós, que herdamos essa tradição, garantir que a UNE siga sendo vanguarda — não apenas da resistência, mas da formulação de um novo projeto de país. Um projeto que recoloque o povo no centro do poder e a educação no centro do desenvolvimento. Que não se intimide diante dos interesses do mercado, das chantagens do Congresso ou dos limites do arcabouço. Não há projeto de educação sob um teto.

Guiados por essas convicções, forjadas na luta por dias melhores, seguimos de pé, pois, como diz o nosso hino: a nossa mensagem de coragem é que traz um canto de esperança num Brasil em paz.

Bianca Borges é presidenta da União Estadual dos Estudantes de São Paulo (UEE/SP) e candidata à presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE) pelo movimento Canto de Coragem.

Leia também: Forças políticas ativas na frente ampla https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/04/minha-opiniao_27.html 

Enio Lins opina

Lula e Congresso Nacional: que esperar dessa contenda?
Enio Lins  

PULULAM POSICIONAMENTOS nas redes sobre a necessidade imperiosa de Lula partir pra cima do Congresso, uma vez que este o está emparedando, chantageando, sequestrando seu governo. Formulações combativas, aguerridas. De fato, o presidente da República está sendo emparedado, chantageado, e tendo seu governo sequestrado sem dó nem piedade pelo Congresso.

ENFRENTAR UM PARLAMENTO HOSTIL e desleal é gesto exigido para quem, democraticamente escolhido pelo povo como presidente da República, esteja sendo impedido de aplicar o programa de governo com o qual foi eleito. É isso aí! Mas o confronto direto é o caminho mais rápido para um impeachment. Foi essa a via trilhada por Fernando Collor e Dilma Rousseff – apesar do antagonismo político e ideológico entre ambos.

VAI DAR CARNE A GATO? Essa é a pergunta clássica da filosofia das ruas. Para escapar do sequestro e conseguir governar numa situação dessas, é-se necessário menos emoção e mais razão, zero empáfia e total malícia, mais capoeira e menos UFC. Lula peitar o parlamento como um todo é tudo o que a extrema-direita golpista mais deseja. E o Congresso que brotou nas urnas em 2022 é esse mesmo, extremamente desfavorável. É esse o barro disponível para o trabalho, é pegar ou largar.

USANDO A CÂMARA como referência para a relação entre situação x oposição, durante a presença petista no Planalto, entre 2003 e 2016, e de 2023 até hoje, nas 15 eleições para a presidência da Câmara Federal, a esquerda elegeu apenas três: João Paulo Cunha (2003), Aldo Rebelo (2005), e Arnaldo Chinaglia (2007). No mais, foram alianças mais ou menos desfavoráveis para Lula e para Dilma, montadas na base do dito fisiologismo, e não sob afinidades políticas-ideológicas. Isso não é produto da vontade pessoal, mas resulta da correlação de forças. Jamais houve uma sintonia partidária entre os resultados das eleições simultâneas para a presidência da República e para o Congresso Nacional nos períodos Lula e Dilma. Certamente, não aconteceu tal relação “redonda” desde a redemocratização, mas FHC e o inominável saíram das urnas em companhia de bancadas menos ariscas.

ESTE CONGRESSO QUE AÍ ESTÁ expressa maior proximidade com 51,57% dos votos em desfavor de Luiz Inácio no primeiro turno e não com os 50,90% que, no segundo turno, elegeram Lula. Com um agravante: em 2 de outubro de 2022, eclodiu uma grande bancada de extrema-direita raivosa e ofensiva como nunca dantes na história deste país. Das urnas proporcionais, minguaram partidos que, outrora, em sendo oposição à esquerda, dispunham alas com propensão ao diálogo democrático, como o PSDB, que encolheu 55% em relação à 2018, caindo de 29 para 13 cadeiras, quando já havia desabado 46%, de 54 para 29 vagas, na comparação entre 2014 e 2018. No caso tucano, ocorre um haraquiri político conduzido por um tresloucado Aecinho Neves, eternamente chapado pela derrota para Dilma. O fato é que Lula enfrenta o Parlamento mais desfavorável para um presidente da República desde a redemocratização.

LUTAR É PRECISO, óbvio. Ulula que, se baixar a cabeça, as forças adversárias assumem o comando total (já têm grande poder, real, via emendas pix); e, se pinotar de peito aberto, o impeachment está sempre à mão, independente de razões legais para tal, conforme a história recente comprova em duas ocasiões. Para preservar a Democracia, mantendo um crescimento econômico sustentável com compromissos social, Lula está cobrado a ultrapassar, mais uma vez, suas próprias marcas de sucesso no item “negociação em situação desfavorável”. E a vós, que lê essas maltraçadas linhas, caso deseje um Brasil com Democracia, compromisso social e crescimento econômico sustentável, está cobrado para um maior engajamento na luta por um Congresso Nacional menos à direita, menos fisiol ógico. E não se esqueça: 2026 já chegou.

[Se comentar, assine]

Leia: O busílis da questão https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/minha-opiniao_16.html 

Palavra de poeta

Ilusões 
Reginaldo Muniz 

A luz que ilumina a si mesma 
Não dissipa a treva.
 
O olhar com a retina invertida
Não distingue o horizonte.
 
O trajeto do caminho inacabado
Não conduz ao destino.
 
A sombra desvinculada do corpo
Não indica a origem.
 
A face destacada do rosto
Não demonstra o sentimento.
 
À superfície isolada do monte
Não revela a sua altura.
 
A parte excluída do todo
Não expressa o movimento.
 
[Ilustração: 
Vilhelm Hammershoi]

Paulo Mendes Campos: "O amor acaba" https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/03/uma-cronica-de-paulo-mendes-campos.html 

Data center & impacto ambiental

Data Centers: as big techs cobiçam o Nordeste
Brasil desponta como destino atrativo para instalação de gigantes servidores. Primeiro projeto no Ceará acende alerta. Dos impactos socioambientais ao neoextrativismo, Sul global arrisca-se como depósito de infraestrutura pesada que transfere lucros ao Vale do Silício
Lauro Accioly Filho/Le Monde Diplomatique 

Um debate em voga sobre os data centers e seus impactos ambientais suscita uma série de reflexões: a que custo desejamos manter e expandir esse aparato tecnológico? Uma rota desejável, contudo, não seria sua rejeição pura e simples, mas o planejamento mais adequado para reinventá-lo. Embora os artefatos tecnológicos sejam, em geral, concebidos por grupos e corporações que pouco consideram os olhares e as necessidades de regiões e populações periféricas, observa-se que a subversão criativa dessas tecnologias tem gerado mecanismos relevantes para repensar sua utilidade e aplicabilidade. Nesse sentido, uma proposta concreta seria ajustar a infraestrutura dos próprios data centers, integrando fontes de energia renovável — como painéis solares ou turbinas eólicas — a fim de reduzir sua pegada ecológica e torná-los mais sustentáveis. 

Contudo, essa não é a única problemática — nem sua única solução. Existe um aspecto menos visível, mas igualmente central, na materialidade da Inteligência Artificial: seu enraizamento em um extrativismo mineral intensivo, frequentemente ofuscado pela ênfase no extrativismo de dados. A infraestrutura que sustenta os sistemas de IA vai muito além da pilha técnica composta por algoritmos, hardware e redes: ela depende de uma cadeia global de suprimentos baseada na exploração de minerais críticos — como o lítio, o cobalto e as terras raras — essenciais para a produção de servidores, baterias e dispositivos computacionais. Assim, os data centers não são apenas “nuvens digitais”: são também territórios físicos ancorados em minas, trabalhadores explorados e ecossistemas ambientais degradados.  

Essa crescente demanda por minerais críticos também intensifica disputas geopolíticas já em curso, particularmente no contexto da rivalidade entre Estados Unidos e China. A dependência de Washington em relação a cadeias de suprimentos controladas por Pequim — especialmente no refino e processamento de elementos como lítio, cobalto e terras raras — tem gerado preocupações crescentes em torno da segurança energética e tecnológica. Nesse cenário, a transição energética global, embora urgente, tem sido mobilizada como justificativa para reconfigurar alianças estratégicas, ampliar acordos comerciais seletivos e reposicionar investimentos em mineração e infraestrutura tecnológica em países do Sul Global. Essa reconfiguração se insere em uma lógica de contenção e competição, refletida nas medidas adotadas durante a guerra tarifária entre EUA e China, e reforça o caráter instrumental da geopolítica dos dados e dos minerais na disputa por soberania tecnológica. 

O extrativismo por trás dos data centers: impactos “geolocais” e socioambientais 

A dimensão técnico-material e o ciclo de vida da inteligência artificial revela dinâmicas geopolíticas e “geolocais” profundamente entrelaçadas, marcadas por assimetrias de poder e dependência estrutural. Os minerais críticos — como o lítio, o cobalto, o neodímio, o disprósio e o germânio — são considerados “críticos” não apenas por sua importância estratégica, mas porque sua escassez ou interrupção no fornecimento comprometeria setores inteiros da economia, especialmente os vinculados à alta tecnologia, à defesa e à transição energética. Esses elementos são essenciais para o funcionamento de baterias de íons de lítio, motores de veículos elétricos, drones militares, sensores infravermelhos, torres de comunicação móvel, cabos de fibra óptica, satélites e chips que alimentam servidores e dispositivos inteligentes. Em resposta à dependência da China nesse setor, os EUA lançaram, em 2022, a Minerals Security Partnership, com países como UE, Japão, Canadá, Austrália, Coreia do Sul, Reino Unido, Noruega, França e Alemanha. O objetivo é garantir o suprimento de minerais estratégicos e reduzir a vulnerabilidade das cadeias dominadas por Pequim. 

No entanto, a extração e o refino desses recursos estão concentrados em um número limitado de países, muitos deles localizados no Sul Global — como a República Democrática do Congo. Um exemplo emblemático é a mina de cobre e cobalto, em Kolwezi, onde a Anistia Internacional documentou casos graves de despejos forçados e exploração de mão de obra para viabilizar a extração desses minerais. Esse caso evidencia uma realidade alarmante: embora o continente africano detenha cerca de 30% das reservas mundiais de minerais críticos — essenciais para a produção de dispositivos eletrônicos e infraestruturas de inteligência artificial — ele capta apenas 10% da receita global gerada por esses recursos. 

Esse desequilíbrio aprofunda uma divisão internacional do trabalho digital, em que os impactos sociais e ambientais recaem de forma desproporcional sobre populações periféricas, enquanto o valor agregado e o controle tecnológico permanecem concentrados em polos de poder como o Vale do Silício. Além de sustentar a base material da IA, essas cadeias de suprimento tornaram-se também instrumentos estratégicos de disputa geopolítica entre grandes potências, que competem pelo domínio de tecnologias emergentes e pela consolidação de sua soberania tecnológica. Em última instância, a inteligência artificial não é composta apenas por códigos e algoritmos: ela representa também uma ameaça concreta ao meio ambiente e as comunidades locais que são expostas aos riscos de saúde por essas atividades extrativistas

Sem sociedade, com mercado: os bastidores silenciosos da política nacional de data centers 

Outro elemento opaco desse cenário é a falta de escuta e participação pública nas consultas que precedem decisões com potencial de impactar profundamente a vida das pessoas. A postura do ministro Fernando Haddad, ao se reunir com representantes da Amazon e da Nvidia e sinalizar o envio de uma Medida Provisória com incentivos fiscais para viabilizar a Política Nacional de Data Centersevidencia um processo conduzido sem a devida transparência e sem debate democrático. Mais do que isso, a forma como grandes empresas de tecnologia é incorporadas à política — apresentadas como oportunidades incontestáveis de desenvolvimento — ignora a necessidade de discutir abertamente quem serão os verdadeiros beneficiados e quem arcará com os custos socioambientais desse projeto. 

O risco é claro: a concentração de lucros em empresas estrangeiras e o retorno à comunidade local tende a ser mínimo, senão nulo, diante da possibilidade concreta de degradação ambiental, exploração de recursos e aprofundamento das desigualdades. É urgente repensar o modelo proposto, garantindo participação pública, transparência e soberania na formulação de políticas que moldarão a infraestrutura tecnológica do país nas próximas décadas. 

O projeto anunciado por Haddad revela um processo discreto em curso desde o início do governo Lula. De acordo com o The Intercept Brasil, mais de 80 reuniões sobre data centers foram realizadas na Esplanada dos Ministérios, envolvendo cerca de 200 autoridades federais. Nenhuma contou com a participação do Ministério do Meio Ambiente — uma ausência alarmante, considerando o impacto ambiental dessas estruturas, especialmente no consumo intensivo de água e energia. 

A exclusão sorrateira do Ministério do Meio Ambiente acende um alerta preocupante, sobretudo porque, nos próprios países-sede das Big Techs, surgem iniciativas legislativas para restringir a expansão descontrolada de data centers. Nos Estados Unidos, por exemplo, projetos de lei em tramitação propõem regras mais rígidas para o setor — como exigências de zoneamento, avaliações obrigatórias de impacto ambiental e diretrizes para o uso de recursos hídricos. Em diversos estados, como Minnesota, comunidades locais têm resistido à instalação de novos empreendimentos, denunciando a sobrecarga das infraestruturas de energia e água. 

Hub ou depósito? A ocupação das Big Techs no Nordeste 

Nesse cenário, o Brasil desponta como destino mais atrativo para esses empreendimentos, justamente por oferecer um ambiente regulatório mais flexível. A deliberada ausência do Ministério do Meio Ambiente nas discussões federais indica uma estratégia de omissão institucional que facilita a proliferação de projetos com alto custo socioambiental — sob a justificativa da atração de investimentos. Outro ponto crítico na abstração da Inteligência Artificial e na formulação da Política Nacional de Data Centers é a baixa geração de empregos em nível nacional. 

A instalação de data centers de Big Techs já está em curso no Brasil, com os primeiros projetos concentrados no Nordeste, especialmente no complexo portuário de Pecém, no Ceará. A região recebeu autorização do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) para conectar essas estruturas à rede elétrica. A escolha do Nordeste tem sido justificada por suas vantagens comparativas: abundância de energia solar e eólica, além do acesso a cabos submarinos, o que reduz a latência e aumenta a estabilidade na transmissão de dados. Com isso, promove-se a ideia de transformar a região em um hub de inovação digital. No entanto, persiste a dúvida: o Nordeste será, de fato, um polo de inovação ou apenas um depósito de infraestrutura pesada com alto potencial de dano ambiental? Essa pergunta é fundamental, pois os data centers não são criações brasileiras — apenas serão alocados em território nacional. Trata-se, portanto, não de inovação local, mas do uso do discurso da inovação para justificar a instalação de empreendimentos que enfrentam crescente resistência nos próprios países de origem das Big Techs. Nos Estados Unidos, por exemplo, comunidades já se mobilizam contra esses projetos devido ao alto consumo de água e energia, à poluição e aos riscos à saúde de moradores vizinhos às instalações. 

Lauro Accioly Filho é doutorando no programa de Pós-Graduação Interinstitucional em Relações Internacionais – San Tiago Dantas e Pesquisador Visitante na American University (Washington, D.C.).

[Se comentar, assine]

Leia também: IA mais simples e politicamente mais letal https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/06/ia-mais-simples-e-mais-letal.html

Arte é vida

 

Júlio Pomar 


STF x big techs

Regras mais duras sobre 'big techs': 4 pontos para entender o que muda com decisão do STF
Mariana Schreiber/BBC 

Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou o julgamento que endurece a regulamentação das plataformas digitais no país.

A maioria da Corte decidiu que as empresas podem ser responsabilizadas por conteúdos criminosos postados por terceiros. Ou seja, as companhias poderão ser punidas se não atuarem para apagar esses conteúdos com agilidade.

O STF estabeleceu diferentes graus de responsabilidade: certos conteúdos criminosos deverão ser apagados após notificação dos usuários.

No entanto, conteúdos considerados mais graves — como mensagens antidemocráticas, postagens de instigação a suicídio, pornografia infantil, entre outras — deverão ser removidos ativamente pelas empresas, independentemente de notificações.

Da mesma forma, as empresas também deverão agir ativamente para inibir e apagar postagens criminosas no caso de conteúdos distribuídos por anúncios, impulsionamentos ou artificialmente por robôs. 

Por outro lado, a Corte estabeleceu que as novas regras não serão aplicadas sobre mensagens trocadas privadamente em provedores de serviços de mensagens instantâneas, como o WhatsApp.

Antes dessa decisão, o Marco Civil da Internet previa que as plataformas só eram obrigadas a deletar conteúdos após decisões judiciais. A única exceção ocorria nos casos de "pornografia de vingança" (divulgação de imagens de nudez sem autorização da pessoa fotografada/filmada). 

Oito ministros votaram pelo endurecimento das regras: Dias Toffoli, Luiz Fux, Luís Roberto Barroso, Flavio Dino, Cristiano Zanin, Gilmar Mendes, Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia.

Eles entendem que a previsão atual do Marco Civil da Internet "não confere proteção suficiente a bens jurídicos constitucionais de alta relevância (proteção de direitos fundamentais e da democracia)".

Por isso, declararam a lei parcialmente constitucional e estabeleceram as novas regras, prevendo que elas terão validade até que o Congresso aprove uma nova legislação. A decisão, inclusive, faz um apelo para que o Parlamento legisle.

O tema, porém, divide muito os congressistas, o que tem dificultado aprovação de uma lei.

Três ministros ficaram contra o endurecimento das regras pelo STF: André Mendonça, Edson Fachin e Nunes Marques. Eles consideraram que apenas o Legislativo poderia alterar as obrigações das plataformas.

Defensores de regras mais rígidas sobre o setor dizem que isso vai evitar a circulação de conteúdo criminoso, como mensagens que incentivem assassinatos em escolas ou ataques contra o sistema democrático.

Já os críticos consideram que as empresas vão acabar deletando conteúdos legítimos com medo de punições, afetando a liberdade de expressão.

Grandes plataformas como Google (dona do YouTube), Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp) e X (antigo Twitter) se opõem ao endurecimento das regras, que podem aumentar seus custos operacionais e o risco de punições, como multas elevadas, caso não cumpram regras novas.

A especialista em governança e regulação digital Bruna Santos considerou a decisão do STF "problemática".

"A gente volta para aquele estado meio de faroeste digital que existia antes da aprovação do Marco Civil, em que qualquer pessoa pode denunciar qualquer post e não existe uma base mínima de definição sobre isso", disse Santos, que atua na Witness, organização baseada nos EUA que promove o uso da tecnologia para defesa dos direitos humanos.

Já o professor da FGV Direito Rio Filipe Medon, especialista em Direito Digital, acredita que "a decisão traz um avanço muito grande" e aproxima as regras brasileiras daquelas aplicadas às plataformas na União Europeia.

"Chegou num ponto de insustentabilidade em que era preciso tomar uma atitude. A minha expectativa a partir de agora é que, como essa decisão foi um golpe duro para as empresas, as empresas vão pressionar o Congresso a legislar".

Entenda a seguir melhor quatro pontos da decisão do STF. 

1) Obrigação de apagar conteúdos criminosos por notificação

O STF estabeleceu que conteúdos criminosos deverão ser apagados a partir de notificação. Isso também valerá no caso de contas denunciadas como inautênticas (perfis falsos).

No entanto, foi estabelecida uma exceção: plataformas não serão obrigadas a apagar conteúdos com crimes contra a honra, como injúria e difamação.

Nesse caso, a empresa poderá deletar eventual conteúdo ofensivo se contrariar as regras da própria plataforma, mas não sofrerá punição se optar por manter no ar, a não ser que haja uma decisão judicial determinando a remoção.

O tema dividiu os ministros.

"A minha dúvida é como tratar [um conteúdo] assim: 'fulano enriqueceu dando golpes na praça'. Aí o sujeito se sente injuriado, é a plataforma que tem que decidir se isso vai ser removido ou não? Aí eu prefiro que seja uma briga privada entre o ofendido e o ofensor [na Justiça], e não a plataforma intervindo", argumentou o presidente do STF, Luiz Barroso, durante o julgamento. 

2) 'Dever de cuidado' contra circulação massiva de conteúdos graves

A Corte incorporou em sua decisão o "dever de cuidado", princípio previsto na legislação da União Europeia que obriga as plataformas a atuarem sistematicamente para evitar a circulação de conteúdos criminosos.

Segundo o STF, essa obrigação vai ser aplicada em caso de conteúdos considerados mais graves. A decisão lista quais são e aponta as leis que estabelecem esses crimes:

  • certas condutas e atos antidemocráticos previstos nos Código Penal;
  • crimes de terrorismo ou preparatórios de terrorismo tipificados em lei;
  • crimes de induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação previstos no Código penal;
  • incitação à discriminação em razão de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, sexualidade ou identidade de gênero (condutas homofóbicas e transfóbicas), passíveis de enquadramento na Lei do Racismo;
  • crimes praticados contra a mulher em razão da condição do sexo feminino, inclusive conteúdos que propagam ódio ou aversão às mulheres, conforme previstos em leis;
  • crimes sexuais contra pessoas vulneráveis, pornografia infantil e crimes graves contra crianças e adolescentes, nos termos do Código Penal e do Estatuto da Criança e do Adolescente;
  • tráfico de pessoas, conforme código penal.

A decisão esclarece que, nos casos acima, as empresas serão punidas caso se comprove falha sistêmica para coibir esses conteúdos. Dessa forma, eventuais casos pontuais, isolados, não devem gerar punição.

"Considera-se falha sistêmica, imputável ao provedor de aplicações de internet, deixar de adotar adequadas medidas de prevenção ou remoção dos conteúdos ilícitos anteriormente listados, configurando violação ao dever de atuar de forma responsável, transparente e cautelosa", estabeleceu a Corte.

O STF prevê ainda que uma pessoa que tenha seu conteúdo deletado poderá contestar a ação da plataforma judicialmente para que sua postagem volte ao ar.

"Ainda que o conteúdo seja restaurado por ordem judicial, não haverá imposição de indenização ao provedor", ressalvou a decisão.

3) Quem vai fiscalizar e punir as empresas que descumprirem as novas regras?

O STF não esclareceu objetivamente em sua decisão como as empresas serão fiscalizadas.

Ao longo do julgamento, ministros sugeririam algumas opções, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) ou a Procuradoria-Geral da República. A falta de uma decisão indica que não houve consenso.

Para Filipe Medon, da FGV, a decisão abre a possibilidade de que diferentes instituições possam atuar denunciando as plataformas. A mais óbvia seria o Ministério Público.

"O Ministério Público vai poder entrar com uma ação dizendo: 'Justiça, está acontecendo aqui uma violação sistêmica, a empresa não está fazendo nada, responsabilize essa empresa'", exemplifica.

Na sua visão, as novas regras entram em vigor com a publicação no Diário Oficial da Justiça.

"Mas obviamente as empresas vão correr com isso, porque, se elas perderem tempo, pode ser tarde demais". 

4) Canais para contestar remoções

A decisão estabelece ainda que cada plataforma tenha sua autorregularão, prevendo "sistema de notificações, devido processo e relatórios anuais de transparência em relação a notificações extrajudiciais, anúncios e impulsionamentos".

Segundo Filipe Medon, o "devido processo" previsto pela Corte é a obrigação de as empresas oferecerem canais para que pessoas possam contestar eventuais remoções de seus conteúdos.

"Tanto quanto possível, [plataformas deverão] oportunizar que as pessoas afetadas pela decisão de excluir o conteúdo sejam ouvidas e se defendam, por exemplo, para dizer que o conteúdo é lícito e não deveria ser removido", explica.

A decisão do STF estabelece ainda que as empresas deverão disponibilizar a usuários e não usuários "canais específicos de atendimento, preferencialmente eletrônicos, que sejam acessíveis e amplamente divulgados nas respectivas plataformas de maneira permanente."

Além disso, toda empresa com atuação no país deverá manter sede e representante legal no país, com identificação e informações para contato facilmente acessíveis.

O que dizem as plataformas?

Procuradas pela BBC News Brasil, empresas do setor manifestam preocupação com o julgamento do STF.

A Câmara Brasileira da Economia Digital (camara-e.net) — que representa empresas de serviços digitais e comércio eletrônico, incluindo Google, Meta e TikTok — disse, em nota, que a formação de maioria no STF "a favor da responsabilização de plataformas digitais por conteúdos publicados por terceiros, mesmo sem decisão judicial, representa um retrocesso preocupante para o ecossistema da internet brasileira".

Na visão da organização, "a tese que se desenha rompe com o equilíbrio estabelecido pelo Marco Civil da Internet e pode abrir precedentes para insegurança jurídica, judicialização em massa, aumento de barreiras à inovação e exclusão preventiva de conteúdos legítimos".

Em nota enviada à reportagem antes do término do julgamento, o Google disse que já remove "centenas de milhões de conteúdos" que violam suas regras e defendeu o atual modelo, em que a Justiça é quem determina a retirada de outros conteúdos.

"Boas práticas de moderação de conteúdo por empresas privadas são incapazes de lidar com todos os conteúdos controversos, na variedade e profundidade com que eles se apresentam na internet, refletindo a complexidade da própria sociedade."

"A atuação judicial nesses casos é um dos pontos mais importantes do Marco Civil da Internet, que reconhece a atribuição do Poder Judiciário para atuar nessas situações e traçar a fronteira entre discursos ilícitos e críticas legítimas".

Procurada, a Meta enviou à reportagem manifestação da empresa de dezembro, quando o STF iniciou o julgamento.

"Temos uma longa história de diálogo e colaboração com as autoridades no Brasil, incluindo o Judiciário. Mas nenhuma grande democracia no mundo jamais tentou implementar um regime de responsabilidade para plataformas digitais semelhante ao que foi sugerido até aqui no julgamento no STF".

"Não é o caso do regime previsto na Lei dos Serviços Digitais (DSA, na sigla em inglês) na União Europeia, nem no NetzDG na Alemanha ou na Seção 230 do Communications Decency Act (CDA) nos Estados Unidos".

A empresa disse esperar "que seja alcançada uma solução balanceada sobre o regime de responsabilidade das plataformas digitais no Brasil à medida que o julgamento sobre a constitucionalidade do Artigo 19 do Marco Civil da Internet avança".

[Se comentar, assine]

Leia também: A inteligência artificial e a espiral do caos https://lucianosiqueira.blogspot.com/2023/04/inteligencia-artificial-e-suas.html

Postei nas redes

Fluminense, o "primo pobre" dos quatro times brasileiros na Copa, tem vitória histórica por 2 X 0 sobre a Inter de Milão. Tática simples e objetiva também vence. 

Leia: Futebol hoje é ciência e arte https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/02/futebol-ciencia-arte.html