Fim de vida digno
Debate sobre eutanásia ganha força após aprovação no Uruguai e reacende discussões no Brasil sobre dignidade, autonomia e limites da medicina no fim da vida.
Abraham B. Sicsu/Vermelho
Qualidade de vida é fundamental. Louvemos os avanços que a ciência e a medicina conseguiram. A expectativa de vida aumentou em muito. No entanto, sejamos sábios, procuremos ter dignidade em nossos anos de existência, sem excesso de dor, de sofrimento, de angústia pela falta de compreensão de nossa finitude.
Acabo de ler no jornal. O Senado uruguaio aprovou a chamada “Lei da Morte Digna”. Em outras palavras, a Eutanásia, procedimentos que permitem que um paciente, por vontade própria, provoque sem sofrimento maior, sua morte. No Mundo, poucos países como Canadá, Espanha, Nova Zelândia e Países Baixos, permitem. Na América Latina, a Colômbia descriminalizou a eutanásia em 1997 e o Equador no ano passado, ambos por via judicial. O Uruguai é o primeiro através do Parlamento.
O tema está em discussão. Repercute no Brasil desde que o poeta e filósofo brasileiro Antonio Cícero foi para a Suíça para realizar o procedimento, em outubro de 2024, tendo sido diagnosticado com Alzheimer e não suportando que os entes queridos sofressem com isso. O procedimento é ainda proibido no Brasil.
O tema me impressiona por experiências vividas. No fim dos anos 1970 e início dos 80, tinha entrado na Universidade como aluno de mestrado e, logo em seguida como professor.
Tivemos um professor de sociologia brilhante. Uma grande figura humana. Diagnosticado com câncer, àquela época com tratamento caríssimo e pouquíssimas chances de prolongar a vida por muito tempo, passa por um drama pessoal seríssimo.
Como todo professor, bem sabemos, suas reservas financeiras eram diminutas. Vê serem esvaídas rapidamente. Acompanha o sofrimento que começa a causar à família, com remédios a preços estratosféricos e necessidade de idas ao exterior, incompatível com sua real situação financeira. Só encontra dor e sofrimento, com reduzidíssima probabilidade de se manter vivo por período razoável. Resolve se sacrificar, tira sua vida.
A reação social foi imensa. Enquanto lamentávamos o ocorrido, embora entendêssemos a situação real que vivia, vemos a execração pública. Movimentos religiosos e fanáticos ensandecidos, o acusavam de covarde e de irresponsável. Argumentos que o colocavam como quase um criminoso que deveria entender que a vida pertencia a Deus, a única força que poderia tomar tal atitude.
Triste, eu o via como um ser mais que corajoso, pessoa ciente do que causava aos que o cercavam e da responsabilidade e amor que tinha para os seus filhos e esposa.
Um amigo muito querido. Político e lutador pelas causas sociais. Tinha verdadeiro pavor da velhice. Não por ele, mas pela dor que causaria aos outros. Planejou tudo, inclusive deixando documentos para facilitar a vida de filhos e colaboradores. Completou 60 anos, drama mental o invade. Resolve terminar a vida. Desse fiquei com raiva, gostava muito dele. Mas, era um desejo seu, tive que respeitar.
Mais recentemente, já nos anos dois mil, vi uma senhora que ficou com vida vegetativa, por vários anos, sobre uma cama. Acompanhei o sofrimento de uma família que foi se desestruturando e perdendo o sentido de viver bem. Tudo girava ao redor daquela cama, daquele dia a dia de sofrimento, sem perspectiva de mudança. Apenas as máquinas funcionando e o fim triste de alguém muito querida, fim que nunca chegava. Não conseguiam reduzir o tempo desse período tão difícil.
No Brasil, embora a eutanásia seja proibida, pela regulamentação do Conselho Federal de Medicina, existe a possibilidade da Ortotanásia. Ela não provoca a morte através de medicamentos, por exemplo, apenas deixa que ela ocorra naturalmente em casos como pacientes com doenças terminais graves.
Entendida como a suspensão ou limitação de procedimentos que prolongam a vida dos pacientes em casos terminais, pacientes sem chance de cura clara, suspensão de procedimentos que prolongam a existência terrestre de modo artificial ou mecânico. Evidentemente, desde que o paciente manifeste anteriormente esse desejo.
Acompanhando relatos de amigos e conhecidos que vêm seus entes queridos em situações muito difíceis, vemos como isso pode ser muito relevante. Sempre a decisão é posta nos ombros dos familiares, decisões muito complicadas que se assentam em critérios muito subjetivos.
Nessas ocasiões, pressões várias são feitas, inclusive por interesses mercantis dos estabelecimentos de saúde, ou mesmo, por chantagens emocionais, muitas vezes baseadas em preceitos religiosos e em falsas esperanças advindas do “além”. A carga emocional é grande e difícil de suportar.
No sentido de minorar esses impasses, um documento pode ser registrado. Chama-se Testamento Vital, também chamado de Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV).
Uma pessoa lúcida, através dele, deixa registrado, antecipadamente, seus desejos sobre tratamentos médicos e procedimentos ambulatoriais aos quais não deseja se submeter no futuro. É uma orientação para médicos e familiares sobre os procedimentos a serem seguidos em situações de doença terminal, estado vegetativo, coma, ou acidentes graves. É facultado explicitar a recusa a tratamentos para prolongar a vida de forma artificial.
Tendo o tema como relevante para meus caminhos, solicitamos a uma amiga ajuda para elaborá-lo. Ela nos mandou três modelos, em todos os três uma frase é bastante auto-explicativa e a qual aqui reproduzo:
“Reconheço que o final da vida, a morte, é um processo natural e, portanto, recuso qualquer processo que prolongue uma vida sem dignidade, sem vida ativa e participativa.”
Dois caminhos a serem seguidos.
Aproveitemos a dádiva de termos uma vida e os avanços que possamos dar com o apoio da medicina e da ciência, sem, contudo, perdermos a razão de reconhecermos nossas limitações como mortais que sempre seremos. Ajudemos nossos familiares em momentos de muita pressão e angústia.
Como Nação, coloquemos em pauta a discussão da Eutanásia como caminho de respeito à vontade e dignidade dos humanos. Sem preconceito, sem falso moralismo.
[Ilustração: Edvard Munch]
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Leia também: "A invenção de um modo", poema de Adélia Prado https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/palavra-de-poeta_3.html
Um comentário:
Bom artigo! Em meu próximo romance, narro casos do suicídio na ditadura.
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