“Quanto menos entendemos, mais julgamos.”
Mia
Couto, transcrito da revista Pazes
As armadilhas
de dentro
A nossa
tentação é quase sempre maniqueísta. A visão simples que separa os “bons” dos
“maus” é sempre a mais imediata. Quanto menos entendemos, mais julgamos.
A cilada
maior é acreditarmos que as armadilhas estão sempre fora de nós, num mundo que
temos por cruel e desumano. Ora, por muito que nos custe,
nós somos também esse mundo. E as armadilhas que pensávamos exteriores residem
profundamente dentro de nós. Quebrar as armadilhas do mundo é, antes de mais,
quebrar o mundo de armadilhas em que se converteu o nosso próprio olhar.
Precisamos de passar um programa antivírus pelo nosso hardware mental. Escolhi
falar dessas ratoeiras interiores que nos convertem em nómadas deambulando
entre ecos e sombras.
A armadilha da
realidade
Uma das
primeiras armadilhas interiores é aquilo que chamamos de “realidade”. Falo, é
claro, da ideia de realidade que actua como a grande fiscalizadora do nosso pensamento. O maior desafio é sermos capazes de não ficar aprisionados nesse
recinto que uns chamam de “razão”, outros de “bom-senso”. A realidade é uma construção social e é, frequentemente, demasiado
real para ser verdadeira. Nós
não temos sempre que a levar tão
a sério.
Quando Ho
Chi Minh saiu da prisão e lhe perguntaram como conseguiu escrever versos tão
cheios de ternura numa prisão tão desumana ele respondeu: “Eu desvalorizei as
paredes”. Essa lição se converteu num lema da minha conduta. Ho Chi Minh
ensinou a si próprio a ler para além dos muros da prisão. Ensinar a ler é
sempre ensinar a transpor o imediato. É ensinar a escolher entre sentidos
visíveis e invisíveis. É ensinar a pensar no sentido original da palavra
“pensar” que significava “curar” ou “tratar” um ferimento. Temos de repensar o
mundo no sentido terapêutico de o salvar de doenças de que padece. Uma das prescrições
médicas é mantermos a habilidade da transcendência, recusando ficar pelo que é
imediatamente perceptível. Isso implica a aplicação de um medicamento chamado
inquietação crítica. Significa fazermos com a nossa vida quotidiana aquilo que
fizemos neste congresso que é deixar
entrar a luz da poesia na casa do pensamento.
A armadilha da
identidade
A mais
perigosa armadilha é aquela que possui a aparência de uma ferramenta de emancipação. Uma dessas ciladas é a ideia de que nós, seres humanos, possuímos uma
identidade essencial: somos o que somos porque estamos geneticamente
programados. Ser-se mulher, homem, branco, negro, velho ou criança, ser-se
doente ou infeliz, tudo isso surge como condição inscrita no ADN. Essas
categorias parecem provir apenas da Natureza. A nossa existência resultaria,
assim, apenas de uma leitura de um código de bases e nucleótidos.
Esta biologização da identidade é uma capciosa armadilha. Simone de Beauvoir disse: a verdadeira
natureza humana é não ter natureza nenhuma. Com isso ela combatia a ideia estereotipada da identidade. Aquilo que somos não é o simples cumprir de um destino programado nos
cromossomas, mas a realização de um ser que se constrói em trocas com os outros
e com a realidade envolvente.
A questão não é apenas do domínio de
técnicas de decifração do alfabeto. Tratase, sim, de possuirmos instrumentos
para sermos felizes. E o segredo é estar disponível para que outras lógicas nos
habitem, é visitarmos e sermos visitados por outras sensibilidades. É fácil
sermos tolerantes com os que são diferentes. É um pouco mais difícil sermos
solidários com os outros. Difícil é sermos outros, difícil
mesmo é sermos os outros.
A armadilha da hegemonia da escrita
Uma terceira
armadilha é pensar que a sabedoria tem residência exclusiva no universo da
escrita. É olhar a oralidade como um sinal de menoridade. Com alguma
condescendência, é usual pensar a oralidade como património tradicional que
deve ser preservado. O culto de uma sabedoria livresca pode contrariar o
propósito da cultura e do livro que é o da descoberta da alteridade.
Certa vez,
um menino de rua em Maputo veio-me devolver um livro que ele vira nas mãos de
uma estudante à saída da escola. Notando a minha fotografia na capa, esse
menino acreditou que a estudante me tinha roubado o livro. Me comoveu esse
menino que atravessou a cidade para me devolver algo que, no entender dele, me
pertencia. Mas o que ele me entregava era mais do que um objecto. Ele me
entregava a inquietação profunda, a interrogação: a quem pertence realmente um
livro? Ele é nosso porque o adquirimos, sim. O livro deve ser objecto e
mercadoria para chegar às nossas mãos. Mas só somos donos desse objecto quando
ele deixa de ser objecto e deixa de ser mercadoria. O livro só cumpre o seu
destino quando transitamos de leitores para produtores do texto, quando tomamos
posse dele como seus co-autores.
A mais importante linha divisória em
Moçambique não é tanto a fronteira que separa analfabetos e alfabetizados, mas
a fronteira entre a lógica da escrita e a lógica da oralidade. A absoluta
maioria dos 20 milhões de moçambicanos vive e funciona num tipo de
racionalidade que tem pouco a ver com o universo urbano. Mas em Moçambique,
como no resto do mundo, a lógica da escrita instalou-se com absoluta hegemonia.
Nesses casos, pressupostos filosóficos do mundo rural correm o risco de ser
excluídos e extintos. Algumas das ideias que venho defendendo nesta comunicação
estão claramente presentes na epistemologia da ruralidade africana. A concepção
relacional da identidade, inscrita no provérbio: “Eu sou os outros”; a ideia de
que a felicidade se alcança não por domínio mas por harmonias; a ideia de um
tempo circular; o sentimento de gerir o mundo em diálogo com os mortos: todos
estes conceitos constam da rica cosmogonia rural africana. É evidente que não
se pode romantizar esse mundo não urbanizado. Ele necessita de enfrentar o
confronto com a modernidade. O desafio seria alfabetizar sem que a riqueza da
oralidade fosse eliminada. O desafio seria ensinar a escrita a conversar com a
oralidade.
Não são só os livros que se lêem
Falamos em
ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos
emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos
o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de
descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não lêem livros. Mas
o deficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando
o acto de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos
tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje,
contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece
reinar apenas silêncio?
Lembrei aqui
o episódio do menino de rua porque tudo começa aí, na infância. A infância não
é um tempo, não é uma idade, uma colecção de memórias. A infância é quando
ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos
surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo
em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo.
A verdade é
que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma
falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a
maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós.
Recordo-me
de que a guerra tinha deflagrado no meu país e o meu pai me levava a passear
por antigas vias-férreas à procura de minérios brilhantes que tombavam dos comboios.
Em redor, havia um mundo que se desmoronava mas ali estava um homem ensinando o
seu filho a catar brilhos entre as poeiras do chão. Essa foi uma primeira lição
de poesia. Uma lição de leitura do chão que todos os dias pisava. Meu pai me
sugeria uma espécie de intimidade entre o chão e o olhar. E ali estava uma cura
para uma ferida que eu não saberei nunca localizar em mim, uma espécie de
memória de alguém que viveu em mim e fechou atrás de si um cortinado de brumas.
Pois eu vivo
praticando a lição de leitura do meu pai que promove o chão em página. E estou
aplicando o ensinamento de Ho Chi Minh que despromove a prisão em possibilidade
de página. Deste modo aprendendo algo que sei que nunca chegarei a saber.
Enquanto escrevia o meu romance O último voo do flamingo viajei pelo litoral do
sul de Moçambique à procura de mitos e lendas sobre o mar. Mas tal não
aconteceu. Dificilmente havia histórias ou lendas. O imaginário destes povos
pertencia invariavelmente à terra firme. Apesar de habitarem o litoral, os seus
sonhos moravam longe do oceano.
Aos poucos
fui entendendo — aquelas zonas costeiras eram habitadas por gente que chegou
recentemente à beira-mar. São agricultores-pastores que foram sendo empurrados
para o litoral. A sua cultura é a da imensidão da savana interior. Em suas
línguas não existem palavras próprias para designar barco. O pequeno barquinho
toma o nome a partir do inglês — bôte. O navio grande é chamado de xitimela xa
mati (literalmente, “o comboio da água”). O próprio oceano é chamado de “lugar
grande”. Pescar diz-se “matar o peixe”. Deitar a rede é “peneirar a água”.
As
armadilhas de pesca são construídas à semelhança daquelas usadas na caça. Os
territórios de colecta de mariscos na praia são parcelados e sujeitos a pousio,
exactamente como se faz nos terrenos agrícolas. Ao contrário do que sucede no
centro e no norte de Moçambique, estes povos pescam sem serem pescadores. São
lavradores que também colhem no mar. O seu assunto continua sendo a semente e
o fruto. Os seus sonhos moram em terra e os deuses viajam
pela chuva.
Nós estamos
todos como esses povos que desconheciam a relação com o mar. O chamado
“progresso” nos empurrou para uma fronteira que é recente, e olhamos o
horizonte como se fosse um abismo sem fim. Não sabemos dar nome às coisas e não
sabemos sonhar neste tempo que nos cabe como nosso. Os nossos deuses
dificilmente têm moradia no actual mundo.
Mas é exactamente nesse espaço de fronteira que estamos
aprendendo a ser criaturas de fronteira, costureiros de diferenças e viajantes de caminhos que atravessam
não outras terras mas outras gentes. A poesia de Gullar deu mote a este
encontro. O poeta Gullar defende que a poesia tem por missão desafiar o
impossível e dizer o indizível. O que o poeta faz é mais do que dar nome às
coisas. O que ele faz é converter as coisas em aparência pura. O que o poeta
faz é iluminar as coisas. Como nos versos com que encerro:
Toda coisa tem peso:
uma
noite em seu centro.
O
poema é uma coisa
que
não tem nada dentro,
a
não ser o ressoar
de
uma imprecisa voz
que
não quer se apagar
—
essa voz somos nós.
.
Veja também: Fragmentos da história militante https://bit.ly/3xl6jTU
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