04 novembro 2023

Fernando Sabino, 100 anos

Encontro desmarcado com Fernando Sabino

Centenário de um dos grandes cronistas brasileiros é lembrado por um admirador de muitos anos
Marcelo Abreu/Revista Continente


No final dos anos 1970, o escritor Fernando Sabino assinava uma coluna dominical em vários jornais do país, entre eles o Diario de Pernambuco, intitulada Dito e feito. Eu lia e gostava tanto da coluna, que recortava o jornal e guardava os textos. Sabino era então um dos maiores vendedores de livros do Brasil. Era recomendado pelos professores de literatura do Ensino Médio como um dos ícones da crônica brasileira, junto com Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Rezende e Carlos Drummond de Andrade.

Em 1979, tornou-se best-seller com o romance O grande mentecapto. No início dos anos 1980, já na faculdade, comecei a ler seus livros. O primeiro foi A cidade vazia, coleção de crônicas que escreveu quando morou em Nova York nos anos 1940. E depois muitos outros: A inglesa deslumbrada, A companheira de viagens, Deixa o Alfredo falar etc. Por aquela época, Sabino esteve uma tarde no Centro de Artes da Universidade Federal de Pernambuco. Terminada a palestra, foi cercado por um grupo de estudantes e admiradores em busca de um autógrafo ou um contato mais próximo. Ao perceber o cerco, disse com seu usual bom humor: “Eu poderia ter sido apunhalado pelas costas, sem saber”.

Em 1989, ele esteve na então grande Livro Sete, lançando o livro de viagens De cabeça para baixo, numa noite memorável. A essa altura, eu já tinha lido o O grande mentecapto e o romance O encontro marcado, seu livro mais famoso, de 1956, e me deliciava com as histórias da Inglaterra, sobretudo. Alguns dos casos engraçados contados por Sabino, da época em que morou na ilha, fazem parte de um repertório que alegra o pensamento até hoje. É o caso de episódios impagáveis envolvendo as noites de chuva. Talvez a mais famosa seja a crônica intitulada A lua quadrada de Londres, reproduzida em várias coletâneas. Outro texto antológico é Basta saber Latim, sobre as confusões linguísticas em um congresso internacional do Pen Club.

Suas crônicas e histórias curtas representam também um belo panorama da vida intelectual carioca e brasileira dos anos 1950 e 1960, povoados por figuras como Jayme Ovalle, Vinícius de Moraes, Augusto Frederico Schmidt e o próprio companheiro de crônicas Rubem Braga.

Sabino nasceu em 1923, em Belo Horizonte, no dia 12 de outubro, apropriadamente no Dia da Criança. A infância, sempre esteve muito presente na obra dele, seja nas observações do cotidiano transformadas em crônicas, seja nas reminiscências processadas em textos como o romance O menino no espelho.

No inverno de 1991, eu estava morando em Nova York quando soube que Sabino se encontrava na cidade. Pensei imediatamente que seria uma pauta perfeita, o escritor já maduro revisitando a cidade onde morou na juventude e sobre a qual tanto escreveu. A informação chegou até mim através de Benito Romero, um pequeno empresário mineiro que vivia na cidade havia mais de 20 anos e “conhecia todo mundo”.

Vale a pena abrir um parêntese para explicar a figura. Benito se dizia amigo dos brasileiros famosos que circulavam em Nova York, a começar por ninguém menos do que Pelé, que na época mantinha um apartamento na cidade. A gente não acreditava muito nessas histórias. Mas algumas delas acabaram se confirmando: certa vez, deparei com ninguém menos do que Nelson Pereira dos Santos, ele mesmo, o grande pioneiro do Cinema Novo, na agência de viagens Benito, na Rua 45. Outra vez, lá chegou Cyro Baptista, renomado percussionista brasileiro, na época famoso por tocar na banda de Paul Simon, um dos maiores nomes do pop rock daquele momento, na turnê do disco The rhythm of the saints. Cauby Peixoto também apareceu por lá porque Benito promoveu shows dele em Miami e Nova York.

O próprio Pelé se casaria, em 1994, com uma cunhada de Benito. Portanto, nem tudo era conversa fiada. Então, quando Benito disse que era amigo do também mineiro Fernando Sabino e que o escritor estava na cidade, frequentando à noite uma casa noturna chamada Red Blazer, na Rua 45, tudo fazia sentido. Segundo se dizia, depois de alguns uísques, Sabino fazia questão de tocar bateria, acompanhando grupos de jazz (uma de suas paixões), sendo ele um admirador declarado do famoso baterista Gene Krupa.

Eu imediatamente pedi a Benito Romero que facilitasse um contato meu com o escritor, informando a ele que gostaria de fazer uma entrevista. Disperso entre os seus muitos negócios (uma pequena agência de viagens, uma pequena revista publicada em português, promoção de pequenos shows no próprio Red Blazer, comércio de produtos brasileiros etc.), Benito ia me levando com desculpas e não falava com Sabino. Umas duas semanas se passaram até que, temendo perder a oportunidade, saí cedo num domingo de manhã em direção a um hotel onde o escritor estava hospedado, pelo que me lembro também na área “brasileira” de Manhattan, talvez na Rua 50 (na época, tudo relacionado aos brasileiros se concentrava entre as ruas 45 e 50, no lado oeste). Apresentei-me na portaria e disse o nome de quem procurava. O recepcionista norte-americano o conhecia e disse: &ldq uo;Mister Sabino acabou de pegar um táxi para o aeroporto. Voltou para o Brasil com a mulher”. E assim, eu perdia a chance de fazer uma entrevista com Sabino num dos cenários mais sugestivos de sua trajetória como escritor.

Já nos anos 2000, como professor de um curso de Jornalismo, estimulava os alunos a lerem Fernando Sabino para observar as qualidades da prosa, clara, límpida, divertida, direta, grande inspiração para a modernização do texto jornalístico no Brasil, a partir dos anos 1950. O estímulo não despertava nenhum interesse aparente. Parecia que estava me referindo ao um nome obscuro do século XVIII. Teria a passagem de apenas algumas décadas levado o nome de Fernando Sabino ao caminho do esquecimento?

Seus livros não estão mais em destaque nas prateleiras, mas é verdade que isso não acontece somente com ele. De toda forma, uma nova edição de O encontro marcado, acaba de sair para comemorar o seu centenário de nascimento (o livro chegou à centésima edição em 2018). E as coletâneas das Melhores crônicas de Fernando Sabino, assim como os Melhores contos e Melhores histórias ainda estão disponíveis, excelentes introduções para quem quiser entrar no universo ao mesmo tempo divertido e poético do escritor mineiro.

Quando vou ao Rio de Janeiro, gosto de passar a pé pela pequena Rua Canning, que fica entre Copacabana e Ipanema. É lá que Fernando Sabino morava, num predinho estreito e antigo. Por algum motivo, o endereço saía em algumas edições de seus livros pela Record. Sempre fico pensando na injustiça de um dos maiores escritores brasileiros (em qualidade e em quantidade de vendas) passar décadas morando naquele prédio, enquanto milhares de profissionais liberais, sem o mesmo brilho, morarem em grandes apartamentos ali perto. Um testemunho da falta de valorização da vida intelectual no Brasil.

MARCELO ABREU, jornalista e autor de livros de viagens.

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