Velhas versões mentirosas de combate ao crime organizado
Enio Lins
SEGUIMOS NO TEMA da insegurança pública carioca, pois os acontecidos no eixo Rio-São Paulo tendem a se espalhar Brasil afora. Seja para o bem, seja para o mal, as lições fornecidas pelas duas mais importantes metrópoles brasileiras se esparramam pelo resto do país como fogo morro acima ou água morro abaixo. Os maus exemplos cariocas e paulistas contaminam todo tecido social brasileiro com rapidez e virulência. CV, PCC e outras siglas, hoje, são males nacionais – assim como se multiplicam as milícias, as mais perigosas dentre todas as facções criminosas, por infiltradas nas polícias, praticando crimes e sabotando o combate à criminalidade.
REPETIREMOS DADOS aqui já publicados. Nem peço desculpas por isso, pois bater na mesma tecla é essencial para combater mitologias tão falsas quanto persistentes. E nada como a História para tirar dúvidas, especialmente num momento em que velhas fórmulas fracassadas são apresentadas como novidades, do tipo “agora vai!”. Nada no atual cenário carioca é novidade. E modalidades criminosas tornadas famosas lá sempre se espalharam pelo Brasil, como a máfia do Jogo do Bicho, há mais de 100 anos. Entretanto, alterações significativas no mundo do crime organizado foram operadas a partir da segunda metade do século XX, orquestradas pela ditadura militar, entre 1964 e 1985.
UMA DAS MEDIDAS adotadas pela ditadura, fora das quatro linhas da política, foi o “desmantelamento do Jogo do Bicho”. Mereceu apenas notinhas na imprensa, quando das prisões dos bicheiros, por volta de 1968, e não se falou mais nisso. Nunca se investigou o que estava por trás daquela operação, e a contravenção do Jogo do Bicho só fez crescer e se fortalecer durante o período militar. Os velhos bicheiros foram soltos logo, mas cedendo espaços para novos chefões. O caso mais emblemático é o de Natal. Negro, semialfabetizado, sem um braço, Natalino José do Nascimento (1905/1975), o Natal da Portela, até ser emparedado pelos militares golpistas, controlava a contravenção em boa parte do Rio de Janeiro. Teria pelo menos um homicídio no currículo. Era genuinamente popular e, comparado aos bicheiros posteriores, seria um pacifista, um beato. Em seu lugar surgiu uma nova geração, branca, chique, extremamente perigosa, e o jogo do bicho passou a ser associado, com mais força, a outras atividades criminosas. Um dos novos chefões veio dos porões do Exército.
CAPITÃO GUIMARÃES era da linha de frente da repressão. Ailton Guimarães Jorge foi diplomado pela Academia Militar das Agulhas Negras em 1962. Se destacou, a partir de 1968, como torturador. Se apresentava como “Doutor Roberto”. Não usava máscara, sendo reconhecido por suas vítimas sobreviventes. Sobre ele, diz a Wikipédia: “Na primeira metade da década de 1970, o capitão Guimarães passou a atuar no roubo de contrabando no Rio de Janeiro, especialmente de bebidas e mercadorias de contrabandistas, com o apoio de outros membros da Polícia do Exército”. Em 1974, como suas ações estariam passando dos limites tolerados pelos comandantes, foi alvo de IPM (Inquérito Policial Militar) e afastado das funções. Mas o Superior Tribunal Militar recusou as provas e o absolveu. Reintegrado ao Exército, recebeu todos os sold os atrasados. Em 1981, solicitou transferência para a reserva, e assumiu seu papel de relevância na delinquência carioca. Lidera até hoje, livre, leve e solto, aos 85 anos incompletos, acumulando processos que prescrevem ou dos quais é absolvido. É o maior dos exemplos de como as coisas acontecem, de fato, no mundo real fora-da-lei. Destaque-se que o Capitão Guimarães segue atuando sem máscara. Talvez como Natal da Portela, no passado, possa até ser considerado um bom samaritano se comparado a alguns capitães dos nossos dias.
Insistiremos na temática. Aguardem cartas.
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