21 novembro 2021

Crônica do domingo

Se ligue, meu irmão!

Cícero Belmar*

Qualquer produção de artista brasileiro consciente, de 2016 para cá, tende a ser engajada. Não porque vivemos em tempos de polarização política. Mas, por uma questão lógica: é impossível que alguém que tenha a sensibilidade como condutora da expressão artística não proponha esse diálogo da arte com a realidade. Simples assim.

Com três semanas em cartaz, Marighella é um filme engajado. Ele estreou no Brasil no dia quatro deste mês, aniversário da morte de Carlos Marighella. Havia dois anos foi aplaudido de pé no Festival de Berlin, enquanto que, no Brasil, com a Gerência das Milícias, enfrentou uns perrengues. Veio a fase mais aguda da pandemia e ele ficou sem espaço para estrear.

O longa foi rodado em 2016. Quem não viu, procure assistir a esse filmaço. Desconheço quem saiu da sala do cinema apontando um defeito. Dirigido pelo também ator Wagner Moura, conta a história dos últimos anos de vida de uma das grandes lideranças da luta armada contra a ditadura militar brasileira, nos anos 1960.

Ao dirigir o filme, Wagner Moura, do seu modo, protesta contra o que ele acha que estava (está) errado. Por isso, é uma arte engajada. É um protesto e é uma denúncia de um tempo histórico, alinhavados pelo fazer artístico do diretor. Fala do passado, mas a sensação que dá é de que está falando dos dias atuais.

A arte engajada não quer dizer que seja didática do ponto de vista “formativo”. De fazer a cabeça. Também não significa que ela proponha obrigatoriamente uma intervenção na realidade. Mas, ela faz sim um diálogo com o mundo real e nos propõe uma reflexão sobre a verdade.

Fazer pensar é transgressor. Qualquer arte, engajada ou não, redimensiona o nosso olhar. Mas, o resultado dessa reflexão não é da responsabilidade do artista.

Citei 2016 logo no comecinho desse texto porque foi o ano do impeachment da presidenta Dilma. O sentimento de injustiça foi grande e o artista que viveu o clima e se sentiu atingido naquele instante (e a partir dali), com certeza transferiu esta emoção para o seu trabalho.

Por exemplo, o filme Bacurau. Ele tem a ver com essa emoção, com essa revolta. Claro que o diretor Kleber Mendonça Filho não mostrou no seu filme que um grupo de políticos extremamente corruptos se uniu para afastar uma presidenta honesta, a pretexto de “combater a corrupção”. Mas o diretor expressou sua indignação de outro jeito, na ficção.

Esse mesmo compromisso com a realidade levará os artistas a falarem da pandemia da covid-19 em tudo o que foi escrito, filmado, pintado, elaborado artisticamente de 2020 para cá. E onde entra o engajamento desse tempo? Na citação dos desastres políticos e da má gestão da saúde, que agravaram ainda mais o nosso sofrimento.

Arte engajada não é nada mais do que falar do nosso sofrimento político e social dentro de um contexto histórico. Há umas pessoas que a condenam, dizem que ela é datada, efêmera etc e tal. São as mesmas pessoas que afirmam que arte é arte e realidade é realidade.

De minha parte, acho que não existe arte sem conexão com a realidade. O que justifica a arte, no meu entendimento, é a experiência humana. E é assim na literatura, no cinema, no teatro, na moda. Sem essa consciência da realidade social, não há arte. Podem me apedrejar.

Nesses tempos bicudos, a arte engajada vira tendência. Nas décadas de 1960 e 1970 havia uma literatura engajada no Brasil, de alto nível. A exemplo de Ferreira Gullar, Ignácio de Loyola Brandão, Antônio Callado. Em ditaduras passadas, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha e Jorge Amado.

Na moda dos anos 1970, a estilista Zuzu Angel dirigiu um desfile, nas passarelas cariocas, para protestar contra o regime militar. O teatro do Oprimido, de Augusto Boal, era de protesto. Engajadíssimo. Chico Buarque e Vandré fizeram grandes música de quê?

A arte engajada é cúmplice da construção da memória. Obras como o filme Marighella são uma necessidade para a gente não deixar “o futuro repetir o passado”. Com talento e criatividade, esse estilo de arte alerta: “Se ligue, meu irmão, sobre o que está acontecendo ao seu redor!”.

*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros paroesia em suas múlta crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.  

Veja: A poesia em suas múltiplas faces https://bit.ly/3BKdwhd

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