27 março 2022

Crônica do domingo

O Cristo oculto
Luciano Siqueira

 

Quem já ouviu falar numa "mansão popular"?

A qualificação é precisa quando se descreve a casa da amiga Carmencita Solidale— companheira de muitas lutas, desde o século passado —, no tradicional bairro das Laranjeiras, Rio de Janeiro.

Não é uma morada de dimensões exageradas, antes relativamente reduzidas.

Porém de um bom gosto capaz de encantar a vista de todo aquele ou aquela que tenha olhos e sensibilidade para se embevecer com a arte popular e clássica de várias gerações e estilos.

A cada passo você tropeça numa peça rara, seja relíquia de fazenda de tradicional família mineira, seja objeto remanescente da Casa Real de Orleans e Bragança, de Petrópolis ou da realeza europeia.

Há até uma tela do barroco italiano, dizem as más línguas, presente de uma figura proeminente na Cúria Romana, que certa vez se permitiu um laivo de incontrolável paixão pela mineira-acariocada.

Móveis selecionados pelo olhar sensível de Carmencita unem conforto e beleza.

Mas tinha algo que agora não tem mais: pela janela da frente, onde acomodados em duas cadeiras em torno de uma mesinha — conhecidas como Ponto de Reconciliação — era possível contemplar à distância, porém visível, a estátua do Cristo Redentor.

À noite, luzes apagadas na sala, uma imagem comovente: o Cristo parecia debruçado sobre a cidade a anunciar a presença, entre quase 7 milhões de viventes, da irrequieta, generosa e exuberante Madame Carmencita.

A especulação imobiliária, essa praga incontrolável em nossas metrópoles, levou à edificação de modernoso edifício residencial justo numa posição entre a janela da mansão das Laranjeiras e o imponente Cristo.

Hospedar-se aqui segue motivo de prazer e glória. Porém agora diante do Cristo oculto.

Quem sabe a revolução brasileira, num futuro não tão longínquo, venha a corrigir essa terrível e indevida intromissão imobiliária.

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