O Botafogo e o Inacreditável da Silva
Por mais que Nelson Rodrigues já dissesse, ninguém preveria a saga botafoguense
Juca Kfouri/Folha de S. Paulo
José Trajano tem 77 anos de idade, 60 de jornalismo e 70 de arquibancada. E diz que jamais viu nada parecido.
Modestamente, aos 73, 53 e 66, eu também não.
De Trajano, recebi o texto escrito pelo tricolor Nelson Rodrigues, em 1956: "Os outros comparecem na esperança de saborear como um chicabom o triunfo do seu clube. Mas o torcedor do Botafogo é diferente: — ele compra o seu ingresso como quem adquiriu o direito, que lhe parece sagrado e inalienável, de sofrer. Eis a verdade: — ele não vai a campo ver futebol. O futebol é um detalhe secundário e, mesmo, desprezível. Ele quer, acima de tudo, desgreganhar-se, esganiçar-se, enfurecer-se e rugir […]. No dia em que tirarem do torcedor alvinegro o inefável direito de sofrer e, sobretudo, o direito ainda mais inefável de descompor o seu técnico, ele ficará inconsolável, como um ser que perde, subitamente, a sua função e o seu destino".
Se assim falou um dos maiores dramaturgos da língua portuguesa, outro não menos imortal, o alvinegro Paulo Mendes Campos, cunhou a frase repetida à exaustão: "Há coisas que só acontecem ao Botafogo". E mais: "O Botafogo põe gravata e vai à macumba cuidar de seu destino". Ou, ainda: "O Botafogo é mais surpreendente do que consequente […], mais abstrato do que concreto". E, quase finalmente: "Às vezes, estranhamente, sai de uma derrota feia mais orgulhoso e mais botafogo do que se houvesse vencido".
Tanto um quanto outro, em suas respectivas genialidades, flagraram o DNA botafoguense em sua essência, o primeiro antes mesmo de o clube entrar para a história do futebol mundial com um dos melhores times de todos os tempos, com Nilton Santos, Didi e, sobretudo, Mané Garrincha, em 1957, campeões estaduais, sob o comando de João Saldanha.
Ou bicampeão carioca de 1961/62 e do Torneio Rio-São Paulo em 1962/64, já sem Didi, o Príncipe Etíope, mas com Nilton Santos, a Enciclopédia do Futebol, e Mané Garrincha, a Alegria do Povo.
Quem dera ter o talento de Rodrigues e Campos para descrever a atual via-crúcis do Botafogo de Futebol e Regatas. Quem dera!
Há 28 à espera de celebrar o título brasileiro, depois de terminar o primeiro turno invicto em seu estádio, não por acaso com o nome do melhor lateral esquerdo que o mundo viu, Nilton Santos, o time vê a ilusão se desfazer em pesadelo sem fim.
Se Nelson Rodrigues criou o Sobrenatural de Almeida, o fantasma que assombra o Fluminense, a Paulo Mendes Campos faltou inventar o Inacreditável da Silva.
Sim, é verdade. Antes de começar o Campeonato Brasileiro, temia-se por novo rebaixamento do Botafogo, incapaz até de disputar as finais do Carioquinha.
Sim, é verdade. Fora da curva foi a campanha do primeiro turno, inédita.
Sim, é verdade. Quedas de rendimento são comuns em trechos de maratonas como os campeonatos em pontos corridos.
Mas ninguém imaginou que pudesse ser possível perder 13 pontos de vantagem para o segundo colocado com a rapidez botafoguense.
Uma virada de 3 a 0 para 4 a 3, como contra o Palmeiras, é rara, mas não inédita.
Outra de 3 a 1, dois jogos depois, para 4 a 3, contra o Grêmio, também como mandante, assusta, mas tem jeito.
Permitir, novamente em casa, ao Santos empatar 1 a 1 no fim do clássico, é algo até comum, embora, no caso, mais que assustador.
Tão assustador como deixar o Bragantino empatar 2 a 2, nos acréscimos, e perder a liderança.
O assombroso mesmo se deu em Curitiba, contra o rebaixado Coritiba, em estádio com portões fechados.
Aos 97 minutos, pênalti convertido por Tiquinho Soares, o goleador que havia seis jogos não marcava um gol, dava a vitória ao Glorioso que o recolocaria vivíssimo na luta pela taça, a primeira depois de oito jogos.
Era para o jogo ter terminado ali. Como "há coisas que só acontecem com o Botafogo", a arbitragem concedeu mais tempo, sem nenhum motivo, e pronto: novo 1 a 1!
Você, rara leitora, você, raro leitor, que, como Trajano e eu, não são botafoguenses, ficaram perplexos, bem sei, incrédulos diante de tantas diabruras dos deuses dos estádios. Aliás, incrédulo é pouco para descrever a incredulidade, o espanto.
Pois saiba que Paulo Mendes Campo reagiria com a maior naturalidade, assim como os irmãos João e Walter Moreira Salles estão reagindo.
Porque aquilo que surpreende o não-botafoguense faz parte do dia a dia de quem só prevê a tempestade, jamais a bonança.
Foto: Os atletas do Botafogo, incrédulos com o gol do Coritiba - Rodolfo Buhrer
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