05 fevereiro 2024

Literatura proletária

Os estilos de trabalho
Recontar a condição operária de dentro para fora parece estar despertando ultimamente um renovado interesse
François Albera/Le Monde Diplomatique

Depois de À la ligne [Na linha], de Joseph Pontus, trabalhador temporário em uma fábrica de conservas de peixe e em um matadouro, que ganhou, entre outros, o prêmio Eugène Dabit de romance popular em 2019, o maquinista Mattia Filice, no romance Mécano [Mecânico], relata sua experiência como condutor de trem. Podemos pensar que estamos renovando as relações com a literatura proletária dos anos 1920? Se manifestaria assim, com décadas de distância, uma resposta às incitações feitas aos trabalhadores para darem testemunho de suas condições em narrativas chamadas, segundo a região, de n arrativas “de reportagem” ou “factuais”? Na década de 1920, o jornal L’Humanité consagrou uma página aos correspondentes operários e camponeses: “Notre Citron” [Nosso limão], por exemplo, redigido pelos correspondentes das usinas Citroën, contava como eram as condições de trabalho, da racionalização e de seu correlato, a diminuição do preço das peças pago aos trabalhadores, e relatava a exploração das mulheres e o autoritarismo dos chefes. No entanto, com Pontus e Filice, estamos diante de projetos literários, e não é tão corrente que uma obra romanesca ou poética tratando do mundo do trabalho emane de um de seus agentes, e não de um observador – esteja ele preocupado em restituir até os detalhes do meio descrito (Émile Zola em Germinal ou Roger Vailland em 325.000 francos). No início do “realismo socialista” francês, Roger Garaudy se aventurou em seu romance Le Huitième jour de la création [O oitavo dia da criação] (Hier et Aujourd’hui, 1946), a evocar a atividade de um tipógrafo em um estilo que foi zombado por Roland Barthes por sua submissão ao “realismo burguês” (Le Degré zéro de l’écriture [O grau zero da escrita], Seuil, 1953). Os escritores proletários – de Henry Poulaille a André Stil –, frequentemente de origem operária, tinham conhecido, em alguns casos, a experiência do trabalho na fábrica, nas minas ou nas ferrovias: mas era raro que seus livros fossem escritos durante esse período.

O sujeito, o projeto, parecia ter saído de moda. Há alguns anos, no entanto, assistimos a um retorno do interesse pela experiência operária ou da exploração do trabalho, que são o tema de diversas reconstituições de jornalistas que entram “na pele” dos trabalhadores (Olivia Mokiejewski, Florence Aubenas, Geoffrey Le Guilcher).1 Eco atual dos procedimentos de alguns intelectuais de outros tempos, como Simone Weil nos anos 1930, e Robert Linhart, que escolheu trabalhar numa fábrica no outono de 1968 – aqueles que chamamos de établis.2 Agora essas histórias encontram quase sempre uma continuidade nas adaptações. L’Établi, de Robert Linhart (Minuit, 1978), já adaptado ao teatro (2018), foi recentemente transposto ao cinema por Mathias Gokalp. Aubenas foi adaptado para o teatro em 2018 e para o cinema em 2021, por Emmanuel Carrère; À la ligne, coroado com diversos prêmios, foi levado a cena e também musicado em 2019-2020 (Michel Cloup e Pascal Bouaziz). Como Pontus antes, Filice encontrou um grande sucesso de público e crítica. Parece que o desejo do leitor não está mais voltado apenas para a investigação jornalística, o estudo sociológico ou a ficção – rara, inclusive. Ele prefere as experiências que chamamos de “imersivas”, que dão prova de veracidade. No entanto… “se alguém, vindo de fora, penetra em uma dessas ilhas e se submete voluntariamente à infelicidade, por um tempo limitado mas longo o suficiente para ser penetrado por ela, e depois conta o que sente, pode-se facilmente contestar o valor de seu testemunho. Vão dizer que ele experimentou algo diferente daquilo que vivem os que estão ali de maneira permanente. Terão razão se ele se entregou somente à introspecção; e também se ele somente observou” (Simone Weil, “Expérience de la vie d’usine” [Experiência da vida na fábrica], em La Condition ouvrière [A condição operária], Gallimard, Paris).

De fato, qualquer que seja o grau de “imersão”, surge o problema do ponto de vista adotado para apresentar o que foi vivido em relação àqueles que o vivem e não têm o desejo ou os meios de dar testemunho – o que acontece por meio do trabalho de escrita. O que Pontus e Filice atingem, por meio do estilo, é uma verdade – que alimenta a passagem pelo imaginário, os afetos, a memória. Joseph Pontus se distinguiu dos outros escritores com uma narrativa sem pontuação, em “versos livres”. Encontramos essa passagem “à la ligne” em Mattia Filice, que, antes de ser condutor ferroviário, foi projecionista de cinema (daí vêm os lampejos de lanterna mágica de Stalker Shining, que iluminam seu texto aqui e ali). Sua escrita é ao mesmo tempo entrecortada e lírica (“a catenária é um instrumento de música de uma corda só e o trem é seu arco”), desamarrada e sincopada, documentária e onírica, ritmada pelas viagens, primeiro de frete, depois de passageiros, com interpolações em outras línguas, interpelações e um diálogo imaginário constante com as duas avós do narrador, a calabresa e a bretã. No máximo de sua proximidade com a locomotiva, o mecânico se torna máquina (um desencanto amoroso é “como quebrar o eixo”, tem “parafusos” num olhar), mas principalmente o ouvimos monologar, cantar, sonhar; entramos no caleidoscópio multilíngua de sua “viagem” controlada, dilacerado entre a angústia (a de perder o semáforo vermelho?) e a diversão (lembranças de seus encontros com os “manos” Ach, Kamal, Yann…).

Esse romance provém exclusivamente da experimentação real do trabalho e do que precede seu exercício: a formação, os testes, o simulador, os exames. O autor concebeu seu texto num modo iniciático, até mesmo cavaleiresco (“A aprendizagem do cavaleiro sem armadura nem espada, nem cavalo”: o cavaleiro é o Mecânico, a figura que sintetiza todos os mecânicos). É preciso dizer que, de doze, os candidatos ao trabalho serão apenas quatro, depois de um ano de testes. Mas a iniciação não apenas é uma técnica, ela permite também a entrada na comunidade dos mecânicos, invisível para os passageiros. Ela é feita de horários atrasados, esperas inúteis, noites fora de casa num depósito de terminal até o dia seguinte, quando se encontram os colegas, às vezes rapidamente, numa plataforma, quando se vai b uscar sua “folha”, onde, no entanto, se tece essa comunidade e suas solidariedades.

Publicado no início de 2023, em um período de lutas sociais e de greve, principalmente na SNCF (Companhia Nacional das Ferrovias), Mécano é então dotado de uma grande atualidade: o blá-blá-blá ministerial e presidencial sobre as mudanças nas condições de trabalho que não justificam mais os “regimes especiais” – que se tornaram “privilégios” – é pulverizado ao longo da leitura. Justamente, um isolador defeituoso, “empilhamento de pratos ou de vidro temperado”, estoura em plena velocidade, atravessa a janela frontal da cabine e fere o mecânico na cabeça. Felizmente, um colega tinha entrado com ele e iria pegar o serviço mais tarde na linha. Ele dá o alerta, fazendo que os agentes de socorro ganhem preciosos minutos. “O pedal do homem morto não substitui um segundo agente”&helli p; Contudo, o chefe não entende assim. Já em 1911, em Le Rail [O trilho], Pierre Hamp mostrava o cinismo da hierarquia no papel dos “executadores”.3 A Companhia Nacional das Ferrovias da época tem sempre razão; os acidentes só podem ser erros – de um manobrista, de um mecânico – e não poderiam ser imputados às condições de trabalho, ao estado do material, às ordens para respeitar os horários, mesmo que para isso se desrespeitem as regras de segurança… Vimos recentemente na Índia e na Grécia, depois em Brétigny-sur-Orge: “falha humana”. O discurso técnico que resolve tudo está nos livros, segundo o narrador. Não é assim que acontece na vida, onde o mecânico tem de lidar com circunstâncias, com materiais, com pesos. Na vida acontecem panes que não est&ati lde;o no manual: é preciso então que o mecânico inove, invente. É na relação física e até mesmo passional do mecânico com sua máquina que Filice nos faz entrar. Encontramos às vezes a Lison de Lantier – o apelido de sua locomotiva – em A besta humana, e não é o menor dos méritos desse livro, a despeito da passagem do vapor à eletricidade (via diesel), o de reforçar todo o peso, por vezes a sensualidade, da máquina com a qual o mecânico forma um casal, da qual ele conhece as engrenagens e os engasgos, o peso e, por consequência, a inércia quando é preciso parar de maneira inesperada (alguém nos trilhos, um bando de javalis, um pássaro preso no pantógrafo), mostrando-nos de que modo é preciso ajeitar para parar um vazamento de ar no compressor… Como trabalhava antes, na narrativa de Lin hardt, Demarcy, o velho operário que arrumava portas, em sua mesa de marceneiro, um verdadeiro instrumento com o qual ele fazia um só “corpo”, que ele tinha “ajeitado, ele mesmo, confeccionado, modificado, transformado, completado”. Um operário-artesão, ao contrário do operário na cadeia de produção submetido à máquina e aos gestos repetitivos (“Uma ajudinha, uma borracha, uma ajudinha, uma borracha, ajuda, borracha, ajuda, borracha, uma cadeira pronta. Mais uma, quadro vazio”). Quando o Escritório dos Métodos aparece na oficina e decide “racionalizar”, eliminar essa mesa de marceneiro atípica, pessoal, ele desorganiza o trabalho até então irrepreensível do operário, humilhado por esses senhores que não têm tempo a perder para escutá-lo. A humilhação é um dos elementos principai s que Simone Weil notou da “servidão operária”, enquanto “a fábrica poderia preencher a alma pelo poderoso sentimento de vida coletiva” (A condição operária).

É esse tipo de alegria que aparece às vezes no filme La Roue [A roda], de Abel Gance (1923), recentemente restaurado, recuperando sua grandeza original. Ele subjuga Ezra Pound e Fernand Léger porque o mundo dos sinais, dos pistões e dos manômetros chegava à representação. O espectador sentia a velocidade e o perigo. Gance, porém, também encenava uma tragédia, a de Sisif, mecânico de uma locomotiva Compound – com a qual ele tentaria se matar e cuja agonia ele acompanha antes de ser, semicego, relegado ao trem de montanha de Saint-Gervais. Ele morre diante do Mont Blanc, com a miniatura de sua locomotiva entre as mãos. O cineasta se inspirou no romance de Hamp, mas se distanciou muito, pois Hamp se esforçava para retratar um coletivo cujos agentes eram apenas momentaneamente individualizados. Gance reencontra Zola. Filice – sem a grandiloquência gan ciana, mas com seu próprio senso de grandeza, engraçada, distanciada, sincopada – partilha sua visão cósmica, mitológica, épica, dando vida, para além da simples veracidade, a uma verdade que se abre para o “poderoso sentimento da vida coletiva”. 

*François Albera é historiador do cinema. 

1 Olivia Mokiejewski, Le peuple des abattoirs [O povo dos matadouros], Grasset, Paris, 2017; Florence Aubenas, Le Quai de Ouistreham [O cais de Ouistreham], L’Olivier, Paris, 2010; e Geoffrey Le Guilcher, Steak Machine [Máquina de bife], Éditions Goutte d’Or, Paris, 2017.

2 Établis é uma mesa de marceneiro ou um conjunto de instrumentos de artesãos, mas neste caso é o nome que se deu aos intelectuais que se engajaram na causa operária. [N.T.]

3 Pierre Hamp, Le Rail [O trilho], reedição virtual, como o conjunto de La Peine des hommes [A pena dos homens], do qual ele é um dos volumes.


[Ilustração: Caio Gomez]

Poema de Pablo Neruda com ilustração de Di Cavalcanti http://tinyurl.com/bdddtb8j

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