Para onde avança a modernidade tecnológica
Por trás do brilho das inovações, mundo digital sob métricas privadas influencia eleições, reforça preconceitos, mantém desigualdades e evita rupturas estruturais
Carolina Maria Ruy/Portal Grabois www.grabois.org.br
A relação entre o ser humano e a tecnologia é existencial e sempre esteve presente. Mas, nas últimas duas décadas, tornou-se corriqueira a ideia de que a tecnologia tem provocado transformações profundas na sociedade.
É verdade que o tema requer atenção, dada sua projeção cada vez maior nas esferas social, política e econômica. Questiono, entretanto, a natureza das mudanças envolvidas nesse processo. Considero-as mais superficiais — em forma e intensidade — do que profundas, capazes de atingir as bases estruturais.
Proponho, nesse sentido, uma reflexão sobre como a tecnologia, mesmo oferecendo ferramentas magníficas, tem contribuído para aprofundar uma situação estabelecida de desigualdade e para tornar o mundo mais violento e, paradoxalmente, mais desumano.
Um recorte útil para entendermos a atualidade do tema é o surgimento dos smartphones e das redes sociais. O Facebook foi lançado em 2004, o Twitter em 2006 e, em 2007, o iPhone popularizou o conceito de smartphone.
Esses computadores de bolso — os chamados “telefones inteligentes” — são máquinas extraordinárias, que conferem ao cidadão um poder nunca antes visto: com eles é possível pesquisar, conversar, se divertir, fazer transações bancárias, estudar e realizar inúmeras outras atividades. As redes sociais também são irresistíveis. Por meio delas, organizamos debates, campanhas políticas, negócios e ações coletivas, além de nos aproximarmos de amigos, familiares e até de desconhecidos em torno de interesses em comum. É um verdadeiro “admirável mundo novo”.
Mas, assim como previu Aldous Huxley em sua obra de 1932, tais maravilhas cobram um alto preço. Isso porque tanto os aparelhos quanto os aplicativos são produzidos e controlados por um pequeno grupo de empresas que monopolizam vastos impérios da informação e da comunicação.
E elas têm contribuído para a ascensão de uma extrema direita que antes se mantinha envergonhada, ao mesmo tempo em que partidos de esquerda, movimentos sociais e sindicatos perdem espaço.
Manifestações organizadas em redes sociais
As megamanifestações que marcaram a chamada “Primavera Árabe” ilustram bem esse cenário. A onda de protestos que varreu o Oriente Médio e o Norte da África entre dezembro de 2010 e 2012 foi amplificada por plataformas como Facebook, Twitter e YouTube.
Um relatório da Dubai School of Government1 demonstrou o peso das redes sociais na disseminação e consolidação dos protestos. De acordo com o estudo, o número de usuários do Facebook no mundo árabe saltou de 14,8 milhões para 27,7 milhões em apenas um ano, entre fevereiro de 2010 e 2011. Foi um padrão que se repetiu em países como a Ucrânia (2014) e o Brasil (2013).
Essas plataformas ajudaram a fortalecer ou enfraquecer movimentos, segundo interesses privados ou de governo. Elas também esvaziaram organizações políticas tradicionais e passaram por cima de instituições democráticas, moldando o debate público segundo os padrões de “sucesso” forjados por seus criadores e operadores.
No livro Quando o Google encontrou o Wikileaks2, o jornalista e ativista Julian Assange deixa claro como as redes sociais, articuladas com o governo dos Estados Unidos, manipularam aqueles protestos por meio de operações técnicas.
Ele diz, por exemplo, que o então funcionário do Departamento de Estado dos EUA, Jared Cohen, teria mandado um e-mail para o CEO do Twitter pedindo que adiasse a manutenção do sistema para ajudar uma onda de protestos no Irã, em 2009.
No Brasil, em 2013, ainda sob o primeiro governo Dilma Rousseff, os ataques ao governo foram orquestrados por organizações privadas e partidos de direita, por meio do uso intensivo das novas tecnologias.
As manifestações de junho, que a princípio pareciam populares, com o tempo revelaram seu caráter antipolítico e antissistema. Elas fomentaram o crescimento de uma direita reacionária que impulsionou a Operação Lava Jato, o impeachment — golpe contra o governo Dilma —, a ascensão do governo de Michel Temer e suas reformas liberais, a reforma trabalhista (que atacou duramente os sindicatos e os trabalhadores) e, por fim, o bolsonarismo golpista e antidemocrático.
Manipulação política nas redes sociais
Outro fenômeno importante é o uso político das redes sociais em conluio entre seus proprietários e chefes de Estado.
Sobre o assunto, vale conferir o documentário Privacidade Hackeada (Karim Amer, Jehane Noujaim, 2019, disponível na Netflix). O filme revela que dados de pelo menos 87 milhões de usuários do Facebook foram usados ilegalmente em campanhas políticas, como o referendo do Brexit (Reino Unido, 2016), a eleição de Donald Trump (EUA, 2016) e a eleição de Jair Bolsonaro (Brasil, 2018).
O tema também é abordado no livro A máquina do ódio3, no qual a autora, Patrícia Campos Mello, demonstra como eleitores são induzidos pelas redes sociais a valorizar políticos extremistas em detrimento dos moderados. Segundo ela:
“Só políticos com ideias polarizadoras têm usado as mídias sociais de forma eficiente para manipular eleições.”
Além disso, as imagens dos donos das Big Techs na posse do segundo governo de Donald Trump, em 2025, bem como a aliança entre o presidente dos EUA e Elon Musk — que comprou o Twitter e o transformou em “X” — revelam a articulação direta entre o poder econômico das plataformas e o governo estadunidense.
Tecnologia, racismo e exclusão
Também é importante refletir sobre a capacidade da tecnologia de promover discriminação e repressão, já que, como toda obra humana, ela carrega códigos, visões de mundo e os filtros de quem a desenvolve — não é neutra.
Para falar sobre este ponto, recorro ao documentário Coded Bias, dirigido pela cineasta e ativista americana Shalini Kantayya (lançado em 2020, também na Netflix). O filme parte de uma situação inusitada: Joy Buolamwini, estudante de doutorado em Computação no MIT, uma garota negra, não conseguia passar por um sistema de reconhecimento facial. Ela só obtinha resposta do “sistema” quando usava uma máscara branca. Com isso, o filme demonstra que os algoritmos envolvidos privilegiavam homens brancos, pois foram criados com base nesses padrões de dados.
Além disso, mostra que empresas como a Amazon já utilizaram inteligência artificial para selecionar currículos, excluindo automaticamente certos perfis raciais ou de gênero.
Acrescento a esse ponto a velha questão da substituição do trabalho humano por máquinas, que também se agrava com o avanço tecnológico. Sem políticas públicas de inclusão, a automação tende a gerar desemprego e aprofundar o desequilíbrio econômico.
Modernidade que gira em círculos
A modernidade tecnológica avança. Para onde? Ela caminha no sentido da emancipação humana, da justiça social e da preservação ambiental? Ou no sentido de aprofundar a desigualdade, o extremismo, a alienação e a degradação?
Não existem respostas fáceis. Estamos imersos num ambiente digital que reorganiza o mundo. A ideia de conectividade que domina nosso tempo, contudo, está subordinada ao controle de megacorporações.
São gigantes que sequestraram a inovação, fazendo-a girar em círculos viciantes e repetitivos. E o verniz “disruptivo” da extrema direita, que se vale dessas gigantes para se manter em evidência — como vemos em Trump e Bolsonaro —, visa à manutenção violenta dos privilégios e à destruição de qualquer projeto de justiça social.
Mas este não é o fim da história. A ferramenta não é o problema. Pelo contrário. O avanço tecnológico é expressão da evolução humana. O problema é seu mau uso político.
Por isso tudo, penso que temos que ter cuidado com a ideia de que há uma transformação profunda em curso. Para uma esquerda progressista e revolucionária, a transformação disruptiva é aquela que recompõe as bases estruturais da sociedade. E a verdadeira ruptura deve apontar não para a discriminação, a alienação ou os privilégios de classe, mas para a valorização da vida, do conhecimento e para a emancipação dos povos.
Carolina Maria Ruy é jornalista e pesquisadora, coordenadora do Centro de Memória Sindical, editora do Rádio Peão Brasil e membro do Conselho Consultivo da Fundação Maurício Grabois.
Notas
1 O relatório foi citado no artigo “Temporalidades emaranhadas”: desafios metodológicos da dinâmica dos protestos em rede de 2013 no Brasil*, de 2018, escrito por Regina Helena Alves da Silva e Paula Ziviani.
2 ASSANGE, Julian. Quando o Google encontrou o Wikileaks. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Boitempo, 2015.
3 CAMPOS MELLO, Patrícia. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
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