Infernal: índices na saúde
A padronização de índices transforma saúde em números absolutos, reduz o prazer de viver e favorece a lógica mercantil em detrimento do bem-estar humano
Abraham B. Sicsú/Vermelho
Evitar o sofrimento passa, necessariamente, pela busca do avanço no conhecimento. Isso fez, ainda faz, com que a humanidade aumentasse, em muito, a expectativa de vida. Mundos previsíveis, mundo controlável, assim pensam os profissionais da área.
Lembro da minha infância, quando uma pessoa de 60, ou mesmo 50 anos, era considerado um velho, quase um fenômeno da natureza. Hoje, muitos passam dos cem, verdade que não se pode negar. A questão que fica é saber com que qualidade de vida.
Os ensinamentos antigos nos mostram que as pessoas, todas, procuram, como indispensáveis para uma vida digna, duas coisas: segurança que permita não viverem em sobressaltos, não viverem sempre com medo; e prazer que dê sentido a existência, que nos permita procurar alcançar a felicidade. Qualidade de vida, obrigatoriamente, tem como requisitos esses dois aspectos, não se deve esquecer.
Nesse contexto, surge a sociedade atual, sociedade dos especialistas, das soluções rápidas, com profissionais que não têm “dúvidas”. Saúde vira números, vira índices que não podem ser refutados.
Saudades da época dos médicos da família, que conheciam a vida dos pacientes, a de seus familiares, que ponderavam com sabedoria os sinais que porventura aparecessem. Saudades do clínico geral, quase em extinção, que dedicava horas para lhe escutar, para saber detalhes que eram importantes para um bom diagnóstico de suas dores, de seus sofrimentos.
Hoje tudo tem que ser muito rápido, a mercantilização da saúde exige rotatividade, não se pode perder tempo. Nada melhor que indicadores que se tornam verdades absolutas. Saúde virou “matemática”, inquestionável em um mundo do exato.
Meu pai era diabético. Numa época em que existiam poucos e muito caros produtos dietéticos. Em que se tomava, diariamente, injeção de insulina na barriga. Vida sacrificada, difícil. Naquela época o índice de glicose para ser considerado doente era de 126. A indústria, de produtos dietéticos e também a farmacêutica, evoluiu muito, melhorou significativamente as condições para os pacientes.
Começa o processo. Passa-se o índice para 113, depois para 100 e agora 99. O que isso significa?
Grande parte da população é estigmatizada com a pexa de diabéticos. Cortam-se os doces, os açúcares, exige-se que se façam exercício, em geral exercícios em excesso, evitem o sedentarismo.
Inclui-se um contingente populacional enorme no consumo de produtos diet, as fitness se tornam o setor mais lucrativo da vida urbana, a indústria farmacêutica agradece.
Pelo menos temos os salgadinhos. Ledo engano. Lembro de nosso mais famoso cardiologista, anos atrás, declarar que para os idosos a pressão arterial 15 por 9 não seria um grande mal. Lembro quando se era parabenizado por ter uma pressão 13 por 9 ou 12 por 8. Você era exemplo de ser saudável.
Agora, isso passa a ser um indicador de possível grande problema. O índice estabelecido, este mês, para ser pré hipertenso é 12 por 8. Corte-se o sal, mais exercícios para diminuir o peso, evitem-se as bebidas alcoólicas e os tira gosto que dão sentido às tardes de sábado. Evidentemente, mais uns remedinhos, umas pilulazinhas para onerar seu bolso e para aumentar os já estratosféricos lucros das farmacêuticas.
Fica a boa comida, os pratos gostosos, as lingüiças e os cozidos com algumas especiarias e carnes especiais, as feijoadas e as dobradinhas, as costelinhas de porco e os ensopados de frutos do mar. Qual nada. Leio nos jornais. Mexeram no índice do colesterol dito ruim. Para arrochar um pouco mais. Pratos gordurosos e muito temperados proibidos. Alimentação só a dita saudável, saladas insossas e pratos veganos. Uma tristeza. Não há saída.
Hoje, vejo todos os idosos com suas caixinhas de remédios. Preparadas pelos filhos, esposas, cuidadores carrascos, para nada esquecer. Com subdivisões para os dias da semana, para os almoços e jantares. Não podem falhar. A cada refeição um número significativo de produtos que as farmacêuticas inventam e os médicos ratificam.
Onde fica o prazer? Sem dúvida, viveremos mais, mas, em que situação? Aumentam as angústias, aumenta os problemas mentais, ansiedade e depressão são corriqueiras no mundo de hoje. E, o pior, aceitamos passivamente e ainda agradecemos.
Os sábios nos ensinavam, segurança e prazer são fundamentais. Aprendamos o que sempre soubemos. Não somos eternos. Teremos um fim, obrigatoriamente. Tomemos cuidados claro, sem, contudo, deixar de dar sentido aos momentos de alegria. Transgridamos um pouco, não viremos reféns de um mundo governado por números. Retornemos ao humanismo na saúde. Saúde só faz sentido na busca da felicidade.
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