Brigam Espanha e Portugal no sertão do Ceará
Ronaldo Correia de Brito*, em seu site www.ronaldocorreiadebrito.com.br
O historiador cearense Capistrano de Abreu sugere
um estudo mais aprofundado da colonização dos sertões brasileiros. Ressente-se
que a maior parte da nossa historiografia não vai além do litoral. Isto é
compreensível porque foi no litoral que cresceram as grandes cidades e escolas,
ficando os sertões num isolamento que só diminuiu com o avanço das estradas e
dos meios de comunicação. Esse desterro em que viveram populações inteiras
justifica a permanência de hábitos alimentares, narrativas orais, cantos e danças.
Jorge Luis Borges afirmava não ter encontrado o Oriente em Israel,
encontrando-o na Espanha. Da mesma forma podemos afirmar que é
possível encontrar um Portugal e uma Espanha que não existem mais, em sertões
nordestinos esquecidos no tempo, vivendo medievalmente à margem da história.
Três livros sem maior repercussão, nem mesmo nas
cidades onde foram criados, ilustram como vivemos à margem da nossa
história: O Clã dos Inhamuns, do cearense Nertan Macedo; O Tratado
Genealógico da Família Feitosa, do também cearense Leonardo Feitosa;
e Os Feitosa e o Sertão dos Inhamuns, do brasilianista Billy Jaynes
Chandler. Neles, conhecemos um pouco da colonização do Ceará, ocorrida a partir
do final do século dezessete, e constatamos o que afirma o poeta Mário Hélio,
que as histórias sertanejas em nada ficam a dever à épica e à tragédia gregas.
Duas famílias, Os Monte e os Feitosa, durante anos
guerreiam entre si, disputando terras e poder, nos sertões dos Inhamuns, Cariri
e Icó, aliadas às tribos indígenas locais. O território da guerra é maior que o
de muitos paises europeus. O curioso da narrativa é que um pedaço da história
de além-mar é transposto para o Nordeste. Os Montes eram cinco irmãos, dois
homens e três mulheres, de origem espanhola, que vieram da Europa, fugindo ao
rigor das perseguições da Inquisição. Dois deles, Geraldo do Monte e sua irmã
Isabel, internaram-se nos sertões de Pernambuco e vieram ter ao Ceará.
No engenho Currais de Sirinhaém, em Pernambuco,
residiam os Feitosa, de origem portuguesa, que se comprometeram gravemente no
levante dos Mascates do Recife. Para evitar a perseguição que se fez aos
brasileiros que entraram nesta sedição, fugiram para o interior do Ceará, onde
se fixaram nas proximidades de Icó. O relato é dos historiadores citados. O
destino faz com que essas duas famílias se encontrem e se cruzem. Isabel, irmã
viúva de Geraldo do Monte, casa com Francisco Feitosa, da família de Sirinhaém.
A trama está armada. Questões de honra e disputas
pela terra colocam os Monte e os Feitosa em palcos diferentes. A Ibéria se
transpõe para as terras secas dos sertões cearenses, a Espanha representada por
perjuros e Portugal por insurrectos. Guerras e rivalidades seculares podem se
continuar na paisagem de angicos, aroeiras, imbuzeiros, jucás e pereiros. E no
leito seco de rios que só correm no inverno.
Ao invés de castelos de ameias, casas de taipa de
cumeeiras altas, só mais tarde substituídas por casarões alpendrados de tijolo,
alguns com pedestais de mármore vindos da Itália. No lugar de armaduras e
brasões de metal reluzente, roupas de couro rude, dos rebanhos apascentados no
planalto. Os luxos de ouros e veludos só irão aparecer depois. No início, só
existem a dureza da terra, a lei bárbara, a solidão. Matanças infindáveis para
garantir o poder. A união proposta pelo casamento degenera em guerra. O velho
sangue ibérico, diluído em gerações, é sempre o de espanhóis e portugueses,
disputando pedaços de terra.
É também possível que a guerra entre Tróia e Grécia
tenha significado mais para Homero, que para os gregos. Homero escreveu o seu
poema, que fixa o idioma clássico, organiza a mitologia, arruma os deuses no
Olimpo. Os bravos aqueus ou morreram nos combates ou em casa, velhos e
nostálgicos. Sem Homero, eles não teriam existência, cobertos pela poeira do
esquecimento.
A guerra sertaneja entre Montes e Feitosa já rendeu
alguns livros. Poderá render muitos outros, pois sobram enredo e mistério.
Falta o olhar sobre a nossa história, para que não aconteça o que canta Gerardo
Melo Mourão: “Iam caindo: à esquerda e à direita iam caindo; … primeiro os que
já eram lenda na memória dos velhos, depois os avós de meus avós, porque antes
tombavam hierárquicos e cronológicos”.
Caindo todos no esquecimento da nossa pobre
história de Nação.
*Médico, dramaturgo, escritor
Nenhum comentário:
Postar um comentário