12 novembro 2021

Crônica da sexta-feira

À flor da pele

Cícero Belmar*

 

Há frases bem humoradas e até irônicas, ainda assim, reveladoras de nossos sentimentos. Como esta da canção de Zeca Baleiro: “Qualquer beijo de novela me faz chorar”. Minha amiga estava bem assim, não porque se derretesse em lágrimas vendo as telenovelas. Andava de fato emotiva, chorando por bobagem. Desmanchava-se até diante de um pastelão de lanchonete. E se fosse de palmito com requeijão, nem se fala.

Final de tarde de um dia de setembro de 2021. A minha amiga Mack Douglas, que é charmosa porque o mundo quis assim, encontrava-se num café de shopping Center, no Recife. Já levava a xícara à boca quando viu a balconista cortando o pastelão, para servir outro cliente. Não resistiu diante de cena tão forte e foi aos prantos. As lágrimas amargas, que inicialmente eram disfarçadas, não se limitaram ao choro discreto. Chegou ao soluço. Tudo isso por causa de uma fatia de pastelão.

Sabe aquele minuto em que o mundo parece ter paralisado? Todas as pessoas que estavam do café voltaram-se, quase que ao mesmo tempo, na direção da mesa onde a elegante jornalista ocupava uma mesinha. Mack é bela. Alta, magra, mais parece uma artista da televisão. Tem amiga maravilhosa quem pode. E chorona, também.

Consequências da pandemia de covid-19. Antes, Mack não era assim. Mas, esse período foi muito punk, cada um de nós teve que viver o período do seu jeito. Mergulhamos fundo em sentimentos. De ansiedade, medo, insegurança. As ausências nos destruíram. Nós nos descobrimos desprotegidos, impotentes. Ficou difícil gerenciar tanta emoção. E escondê-las, também.

Mack Douglas sempre teve um estilo de vida legal, com muitas amigas. Mas, desde o ano passado, quando começaram as restrições, ela foi ficando com medo de sair de casa. Veio a flexibilização, mas o simples fato de pensar em sair de casa já lhe deixava em estado de alerta. Assim como milhares, ela tinha medo do invisível, de ser contaminada.

Foi na analista. É aquela história: os malucos veem gnomos e os psicólogos querem capturá-los. A profissional a recomendou vencer o medo. Aos poucos, Mack começou a sair de casa para passeios como esse ao café do shopping center. A bolsa lotada de álcool em gel e máscaras.

No café, viu a moça cortando o pastelão. Logo de palmito com requeijão! Diante do choro soluçante, uma senhora, que estava ao lado, quis manifestar solidariedade, ainda que não soubesse o real motivo do choro:

– Eu entendo o quanto é difícil para você.

Entregou um guardanapo.

– Vou ficar com você enquanto você estiver triste, ok?

Outras pessoas também se aproximaram para saber o que houve. Quando se conteve, Mack Douglas contou, a voz cortada:

– … É que eu me lembrei de minha avó.

A avó morreu em 2019, um ano antes da pandemia. Adorava pastelão de palmito com requeijão. Mack a amava. A mulher que lhe entregou o guardanapo ficou um tanto decepcionada, esperava um relato que tivesse a ver com a covid-19. Não tinha.

As outras que vieram à mesa, também. Sem saber como lidar com um momento que nem ela mesma esperava protagonizar, Mack encontrou uma saída: “Trazer” a avó para a conversa. Deu um jeito de contar coisas engraçadas, pois em vida a avó foi muito bem humorada. Contou esta:

– Certa vez, minha avó, que passou a vida fazendo regime, pediu uma fatia de pastelão.

“Minha avó adorava um pastelão, mas para ela era um sacrilégio comer massa. Achava que engordava só de pensar. Vaidosa, queria sempre queimar uma gordurinha. Mas, resolveu sair do regime. Quando foi levar o pedaço à boca, ele escorregou do garfo e caiu no chão. Desolada, mas sem perder a piada, minha avó disse: Graças a Deus, em dois segundos, perdi 100 calorias”.

Todas as que se reuniram em torno de Mack, riram com a história. E cada uma, que também tinham tristezas acumuladas, lembrou de uma história de regime para contar. Quem não engordou nessa pandemia, né?

Cada história mais risível que a outra. Os risos substituíram os corações despedaçados, as dores, as saudades. E todas terminaram, assim, com risadas, substituindo as lembranças por um toque de alegria e um curioso sentimento gratidão por estarem vivas.

*Cícero Belmar  é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras. 

[Ilustração: Ana Razumovskaya]

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