Touro de ouro e Geografia da
fome
Cícero Belmar*
Sinto muito, Josué de Castro, suas denúncias continuam sem serem
ouvidas. Olha o resultado: neste 2021, quando faz 75 anos da publicação de um
dos livros dos mais fenomenais já escrito neste País, “Geografia da Fome”, de
sua autoria, a fome atinge cerca de 20 milhões de brasileiros.
Sim, eu sei que esta pandemia de covid-19, que se arrasa há
praticamente dois anos, contribuiu. A população de rua aumentou e as
estatísticas nos constrangem com tantas pessoas na extrema miséria. Ela também
agravou os dramas sociais, as desigualdades, as diferenças profundas.
Mas você alertou, com a seriedade do cientista que foi: “A
perspectiva dos próximos anos, se não se processar uma mudança radical na
política alimentar do mundo, é bem mais alarmante”.
Cientistas são os profetas de nossos dias. No mês passado uma
mulher foi presa roubando uns pacotinhos de tang e outros de macarrão
instantâneo, num supermercado de São Paulo. Era para matar a fome dos cinco
filhos. “Eu só queria ser gente”, disse a mulher, aos jornalistas.
Na mesma São Paulo, há duas semanas, colocaram a estátua de um
touro de ouro, imitação cafona de Nova York, na frente do prédio da Bolsa de
Valores brasileira. Disseram que simbolizava a prosperidade. Diante das
críticas, tiraram o monumento da alienação de lá. Essa conta não fecha.
Geografia da Fome escandalizou o mundo há 75 anos ao provar que
esse flagelo não era resultante só da escassez de alimentos. Mas, primeiro, da
insuficiência calórica dos tipos de alimentos consumidos. Tipo macarrão
instantâneo e tang, que não suprem necessidades vitamínicas.
E o principal motivo, o que fez a terra tremer, com a Geografia da
Fome: o livro denunciou que ela existia, existe e existirá por ausência de
políticas públicas. Por falta de vontade de gestores que não querem acabar com
a fome. A miséria interessa a políticos escrotos, genocidas e congêneres.
O livro foi escrito em 1946 e se tornou um sucesso retumbante na
Europa arrasada pela guerra. Josué de Castro se tornou o brasileiro mais
conhecido no mundo, na década de 1950. Gilberto Freyre era seu rival. Ficaram
famosas as polêmicas dos dois intelectuais, no Recife.
(Pausa para os comerciais. Escrevi um romance chamado “Rossellini
amou a pensão de dona Bombom”, que narra a vinda do diretor de cinema, o papa
do neorrealismo italiano para o Recife, em 1958, para filmar Geografia da Fome.
No romance, evidencio os desencontros de Gilberto e Josué. Agora que vendi o
meu peixe, voltemos ao ponto).
Homem de esquerda, deputado federal pelo PTB, Josué de Castro
virou celebridade e autor de best-seller. Num dos seus livros, criou o mito do
homem caranguejo. Como recifense, conheceu as palafitas em comunidades pobres.
O homem caranguejo seria o que vivia em palafitas, se assemelhando em tudo aos
crustáceos, arrastando-se na lama pegajosa. Aquele que, dos mangues, tira o
sustento da família.
Josué, você tinha razão: estamos todos cada vez mais atolados
nessa lama, caminhando para trás, como fazem os caranguejos. A situação piorou
muito. Está explosiva.
Há um livro com escritos de Josué, reunidos e organizado por Anna
Maria de Castro, que se chama “Fome: um tema proibido”. Nele, uma citação
adaptada a partir de um pensamento de Einstein, diz: “O homem só poderá
sobreviver a esta época mudando radicalmente a maneira de pensar, com uma nova
consciência política, à base de uma nova experiência existencial”. Recado dado.
* Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.
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