A voz que a ciência brasileira deve ter no mundo
Insurgências
do Norte global, como o Scientist Rebellion, são importantes, mas não rompem
com as hierarquias e epistemologias coloniais. No Brasil, diversas instituições
e iniciativas impulsionam uma ciência democrática e pluralista
Eleonora Albano/Outras palavras
Este
ensaio é o segundo de uma série intitulada “Um lugar para o Brasil na
democratização da ciência?”. Persegue desdobramentos do argumento introduzido
no primeiro texto. A
série aborda a questão da descolonização da ciência do ponto de vista do Sul
global, e avalia as chances de o Brasil protagonizar esse processo, uma vez
eleito um governo democrático e restabelecidas as condições mínimas para o
funcionamento do Estado de direito.
A
argumentação desta etapa consiste em contrapor a fraqueza da organização
política das comunidades científicas do Norte global à força da nossa, tal como
representada pelos setores mais engajados das nossas associações científicas e
entidades de classe –, cuja tradição de defesa da democracia vem respondendo
firme e prontamente às reiteradas ameaças dos últimos anos.
De início, pretendo analisar três exemplos de movimentos de protesto
deslanchados por cientistas dos EUA e da União Europeia que se fundam em
análises políticas superficiais ou mesmo equivocadas, apesar de terem suscitado
um grau crescente de mobilização – o que, como veremos, é muito positivo.
O primeiro é uma reação ao produtivismo acadêmico denominada Slow
Science, que teve duas versões distintas na Europa na década de 2010. O
segundo é um movimento conhecido como The Cost of Knowledge,
surgido entre os EUA e a UE em 2010. A sua proposta era boicotar a mais
poderosa dentre as gigantes da publicação científica, a editora Elsevier. O
terceiro e mais vigoroso deles é uma sequela acadêmica do Extinction
Rebellion, movimento de protesto contra o colapso climático que surgiu no
Reino Unido e se alastrou pelo mundo em 2018. Sob o nome de Scientist
Rebellion, o grupo, composto de estudiosos do clima, está em campanha
permanente para conscientizar os governos e a opinião pública sobre a
emergência climática.
Em
seguida, pretendo discutir alguns exemplos de iniciativas significativas das
nossas entidades de classe e associações científicas em fomentar o debate atual
sobre o papel da ciência e da tecnologia frente à conjuntura política do Brasil
e do mundo. As análises produzidas por essas instituições, ainda que divirjam
em detalhe, convergem em considerar as relações da produção científica com o
modelo econômico, o colonialismo e a distribuição desigual de riqueza no mundo.
Já, no Norte global, a tarefa de pensar a ciência e a tecnologia é deixada aos
filósofos e historiadores da ciência, cujo horizonte político tende a se
restringir à academia. Da mesma forma, as entidades de classe e associações
científicas desses países tendem a se limitar à defesa de interesses
corporativos.
O
exame dessas diferenças entre os nossos acadêmicos e os do Norte preparará o
terreno para discutirmos, nos próximos ensaios, alguns caminhos para
descolonizar a ciência e a tecnologia no Brasil – e quiçá no mundo –, com base
na experiência bem-sucedida de inclusão e referenciamento social das nossas
universidades públicas.
O crescimento do ativismo na ciência global
Todos
os movimentos em questão preconizam uma democracia científica idealizada e
denunciam a mercantilização da ciência na “sociedade do conhecimento”. Entretanto,
apenas a “rebelião” contra a degradação do clima tematiza as desigualdades
entre o Norte e o Sul globais.
Não
obstante, os “rebeldes” estão longe de questionar o desprezo dos países
hegemônicos por quaisquer alternativas à sua epistemologia, ética ou estética.
Na verdade, invocam as mesmas velhas noções de justiça, esclarecimento e
universalidade como fundamento da almejada união mundial de forças contra o
colapso climático.
Leia
também - Marcio Pochmann: Século 21 impõe novas bases para a educação
brasileira https://bit.ly/3Bv2KNR
Em
suma, mesmo quando mobilizados, os cientistas do Norte global dificilmente se
dão conta de que os males que denunciam se enraízam em milênios de predação
colonial de povos e territórios por sucessivas hegemonias de “esclarecidos”.
Slow Science
O
termo “ciência lenta” apareceu em 2006, numa carta da bioquímica australiana
Lisa Alleva ao editor da Nature.
Tratava-se de um apelo a que os cientistas se dessem tempo para saborear as
gratificações de uma ciência sem pressa. Em 2010, um grupo de cientistas
alemães, autodenominado The
Slow Science Academy, lançou um manifesto pregando práticas
científicas menos aceleradas e, ao mesmo tempo, mais reflexivas e independentes
do que as então vigentes. O documento continha uma pauta de doze pontos que
deveriam levar à desejada desaceleração em prol da qualidade: (1) salvaguardar
a independência das instituições públicas de financiamento à pesquisa; (2)
alocar financiamento privado à pesquisa destinada a fins privados; (3) manter
uma agenda de pesquisa sensível à justiça social e ambiental e voltada aos
grandes desafios sistêmicos; (4) priorizar a democratização da educação
superior e da comunicação científica; (5) evitar a publicação apressada visando
à quantidade em detrimento da qualidade; (6) garantir a transparência da
avaliação por pares e coibir os lucros excessivos das empresas de publicação;
(7) estimular a abertura das disciplinas científicas a práticas e paradigmas de
pesquisa diversos; (8) melhorar as condições de trabalho dos pesquisadores,
detendo a precarização em curso; (9) melhorar o acesso das mulheres, negros ou
quaisquer outros grupos de excluídos à educação e à produção científica; (10)
defender a independência científica e a militância política baseadas em insights científicos;
(11) garantir as condições para uma produção científica dentro de padrões
éticos transparentes; (12) reconhecer publicamente a falibilidade dos
resultados científicos, fomentando o pensamento crítico e o combate ao
dogmatismo.
É
evidente que essa pauta, apesar de progressista, era vaga demais para produzir
as mudanças desejadas. A sua defesa mais concreta foi uma recensão das
descobertas da química com tempo de gestação maior que uma década, publicada
na Nature por
Jean-François Lutz em 2012. Assim, embora muitos cientistas tenham aderido
nominalmente ao manifesto alemão, o tema só voltou à baila com a publicação do
livro homônimo da filósofa da ciência Isabelle Stengers em 2018.[i]
A
autora refere-se explicitamente ao manifesto, contrastando-o com a sua própria
visão da ciência lenta. Para ela, não se trata de retornar a um passado em que
os cientistas eram mais livres e autônomos. Trata-se, sim, de imaginar práticas
que os levem a se comprometer com a pesquisa socialmente referenciada.
A
lentificação decorreria naturalmente da necessidade de produzir fatos não só
cientificamente confiáveis, mas também relevantes para a sociedade em geral,
qualquer que fosse o conflito com as instâncias de poder a cobrar resultados
imediatos. No limite, o cientista socialmente comprometido deveria recorrer à
desobediência civil para bloquear a divulgação de resultados antes da avaliação
de custo-benefício para a sociedade. Para Stengers, o exemplo mais contundente
a esse respeito é o dos biólogos que pregam a manutenção do sigilo acerca dos
resultados da pesquisa sobre os transgênicos até que os seus riscos sejam
cabalmente esclarecidos.
O
exposto deve ter bastado para mostrar que a análise política dos protagonistas
do movimento Slow
Scienceé superficial e circunscrita ao seu próprio ambiente. Além
de protestar contra uma longa lista de efeitos do capitalismo neoliberal sem
mencioná-lo, pregam uma militância política cujo fim é melhorar a qualidade e a
relevância dos resultados científicos dentro da própria sociedade capitalista.
Por isso, sequer relacionam as suas queixas à evolução recente dos meios de
produção dessa sociedade.
The Cost of Knowledge
Entre
os três movimentos aqui examinados, este é o mais circunscrito à academia. Tem,
não obstante, o mérito de ter posto em discussão o poder dos grandes grupos
editoriais e somado argumentos à campanha pelo acesso aberto, em curso desde
2001.
A
iniciativa, datada de 2012, partiu de um grupo de matemáticos que se deram
conta de que os meios digitais haviam baixado os custos de produção das
publicações científicas sem que a clientela tivesse se beneficiado disso.
Depois de testarem várias métricas de cálculo dos custos da disseminação
digital dos periódicos, eles descobriram que a que lhes parecia mais fidedigna
– o custo por página – revelava que a Elsevier cobrava valores iguais ou
superiores aos das editoras que detinham os títulos do topo da pirâmide de
qualidade. Propuseram, então, um boicote à empresa como gesto de protesto
emblemático.
A
decisão foi reforçada por três outras descobertas. A primeira é a de que a
Elsevier cobrava (como, aliás, ainda cobra) um preço escorchante pela
assinatura individual de um periódico, mas o reduzia significativamente quando
a instituição aceitava assiná-lo como parte de um pacote contendo
obrigatoriamente alguns títulos indesejados. Assim, por razões financeiras,
quase todas as bibliotecas servidas pela editora eram obrigadas a arcar com o
contrapeso de revistas de menor interesse para a sua comunidade. A essa
chantagem só conseguiam fazer face as universidades mais ricas e famosas dos
EUA e do Reino Unido, cujo prestígio pesava na negociação de valores título a
título.
A
segunda descoberta envolveu a magnificação artificial do fator de impacto de um
periódico da matemática através de citações mútuas pactuadas entre os autores.
Uma comissão convocada pelo grupo insurgente contestou a excelência do
periódico depois de submetê-lo a critérios de avaliação explícitos e bem
estabelecidos.
A
terceira descoberta envolveu a medicina. Durante cinco anos, a Elsevier havia
publicado, sob a aparência de periódicos científicos, várias compilações de
artigos patrocinadas por empresas da indústria farmacêutica sem que o conteúdo
tivesse passado por qualquer processo de submissão ou avaliação.
O
boicote consistia em se recusar a submeter artigos, avaliar submissões ou
participar de conselhos editoriais da editora. Inicialmente, assinaram o
manifesto trinta e quatro matemáticos ligados a instituições dos EUA, Reino
Unido, França, e Alemanha. Na verdade, seguiam os passos do conselho editorial
do Journal of Topology,
da London Mathematical
Society, que havia renunciado coletivamente em 2006. Pouco a pouco,
o movimento se estendeu para além da matemática e alcançou outras editoras
científicas, tais como a Springer e a Wiley.
Embora
o movimento pelo acesso aberto já estivesse em curso à época, a divulgação da
altíssima margem de lucro das editoras comerciais (cerca de 30%) e dos
escândalos envolvendo as suas práticas em disciplinas várias contribuiu
decisivamente para conscientizar a comunidade científica da necessidade de
derrubar as barreiras impostas pelo capital ao compartilhamento dos resultados
de pesquisa.
Não
trataremos aqui dos interesses em jogo no acesso aberto, que merecem um estudo
à parte. Mais sugestivas da inocuidade dos protestos isolados dos cientistas do
Norte são as manobras pelas quais as grandes editoras mantêm reféns até hoje a
maioria das universidades e institutos de pesquisa, elitizando a liberação do
acesso através de taxas de manuseio altíssimas e outros expedientes tortuosos.
De
qualquer modo, um passo importante em favor do acesso aberto foi o boicote
institucional à Elsevier proposto pelo sistema das universidades estaduais da
California em 2019. É, aliás, provável que a iniciativa tenha sido influenciada
pelo movimento dos matemáticos.
As
bibliotecas das dez universidades que integram esse sistema cancelaram as suas
assinaturas da Elsevier por causa da dificuldade de acordar a disponibilização
em acesso aberto das publicações dos seus quadros de pesquisa. Os dirigentes
das bibliotecas sublinharam que o acesso aberto contribui para a democratização
do conhecimento científico, além de dar a desejada visibilidade ao trabalho dos
pesquisadores.
Depois
de insistir em taxas exorbitantes, a editora concordou com um modelo de
múltiplos pagadores, no qual as despesas da plataforma digital eram divididas
entre a universidade e o autor/a, caso ele/ela contasse com uma verba de
pesquisa compatível. O modelo foi recebido como um progresso por algumas
instituições que estavam negociando acordos semelhantes. Já outras o criticaram
por aumentar o fosso entre as escolas de elite e as demais. Com efeito, sequer
é preciso incluir nesse cômputo o Sul global. Existem, até hoje, grupos de
universidades da Suécia e da Alemanha que tentam, sem sucesso, costurar acordos
semelhantes.
Tamanho
poder de pressão torna a Elsevier uma espécie de feudo. Em muitas áreas, a
comunidade acadêmica cai no papel de serva por ter poucos escoadouros
alternativos para a sua produção. Basta lembrar o caso dos cientistas que
participaram do boicote de 2012. Independentemente de continuarem militando
pelo acesso aberto, a maioria restabeleceu relações com a empresa, voltando a
colaborar com os seus periódicos como autor/a, editor/a e/ou parecerista.
É
importante ressaltar que ela hoje não é mais sustentada apenas por assinaturas
de periódicos. Possui também uma enorme base de dados de citações, a Scopus, assinada
forçosamente pelas universidades e centros de pesquisa, junto com outras, tais
como a Web of Science,
para “medir” a produtividade dos cientistas pelo método de avaliação imposto à
academia pelo neoliberalismo.[ii]
Previsivelmente,
o aumento de faturamento aportado pelo novo negócio não foi investido em
desonerar o acesso aberto. Muito ao contrário, financiou a perseguição judicial
às bibliotecas clandestinas tais como o Sci
Hub, site [iii] que burla a
muralha de cobrança das editoras, disponibilizando milhões de títulos
científicos, entre artigos e livros. Enquanto isso, o faturamento da corporação
crescia a uma taxa de 2 a 4% ao ano.
Até
onde sei, a única mobilização importante de cientistas em defesa do Sci Hub ocorreu na
Índia em 2021. A razão é que as suas bibliotecas institucionais têm dificuldade
de arcar com o crescente número de títulos indispensáveis ao trabalho
acadêmico. Por outro lado, os/as cientistas dos países ricos, cujas
instituições vêm assumindo o enfrentamento às barreiras ao acesso aberto,
também usam o Sci Hub frequentemente.
Pergunta-se, portanto, por que, até agora, não se mobilizaram em protesto
contra a perseguição judicial à sua gestora e idealizadora, a cientista da
computação do Cazaquistão, Alexandra Elbakyan.
Scientist Rebellion
O Extinction Rebellion,
abreviado XR,
é um movimento de protesto contra o desastre climático, nascido em Londres em
2018. Inspira-se nas ocupações dos grandes centros financeiros do mundo, a
exemplo do Occupy Wall
Street, de 2011. O XR rapidamente
se globalizou e descentralizou, praticando formas de desobediência civil até
mais ousadas que as dos seus predecessores. Atrai atenção imprecando contra
governos e corporações que agem como se ignorassem que o aquecimento global e a
perda de biodiversidade põem em risco a vida na Terra.
Leia
também: Especulação movimenta 36 vezes mais que a riqueza oriunda da produção
real no mundo https://bit.ly/3C7gIad
Em
2021, alguns estudiosos do clima envolvidos com o Extinction Rebellion formaram
o Scientist Rebellion, abreviado SR. O grupo, de
maioria europeia, dirigiu veementes protestos à Conferência das Nações Unidas
sobre a Mudança Climática (COP 26), realizada em Glasgow naquele ano. O
objetivo era desmascarar as medidas inócuas ali preconizadas, que recomendavam
a planificação governamental do “crescimento verde” da economia, através de
investimentos em inovar a captura do carbono e reflorestar o planeta até a meta
de 1 trilhão de árvores.
O
ativismo praticado em Glasgow incluía ações radicais, tais como não se deixar
dispersar, se fazer aprisionar e entrar em greve de fome. O objetivo era
conscientizar a opinião pública da hipocrisia dos delegados da conferência com
relação aos temas tratados. Desafiando os 10 mil policiais destacados para a “segurança
do evento”, 21 cientistas, inclusive alguns sêniores, se acorrentaram à King
George V Bridge, impedindo as manobras de dispersão.
Segundo
as manchetes de então, esse foi o maior grupo de estudiosos do clima já presos
num protesto. De acordo com o jornal estudantil The Glasgow Guardian,
pouco antes de ser conduzido à prisão, um jovem cientista discursou: “Estamos
aqui para dar voz aos sem voz e pedir ao governo que ouça os cientistas. A
ciência é a verdade nesta situação; não o dinheiro, a ganância ou as mentiras”.
Esse
discurso revela a ingenuidade do grupo, visível também no seu site[iv] – como, por
exemplo, quando afirmam que o principal gatilho da guerra da Síria foi o
agravamento da seca local na década de 2000. Tal ingenuidade, que transparece
igualmente no seu manifesto, é, entretanto, bem mais favorável ao Sul global
que a inação da maioria dos cientistas e o cinismo negacionista de outros –
estes, indubitavelmente, a serviço de interesses econômicos conservadores.
A
hipótese do efeito estufa foi levantada por Joseph Fourier em 1824. Na segunda
metade do século XX, sobreviveu a ataques de cientistas famosos como Sherwood
Idso – líder de um centro difusor do ceticismo –, e se estabeleceu por volta de
1990, antes da realização da Eco 92 no Rio de Janeiro, onde, como se sabe,
poucos delegados de fato a levaram a sério. Desde então, tem sido alvo de uma
gigantesca campanha, financiada pela indústria dos combustíveis fósseis, para
confundir a opinião pública e manipular os governos.
O Scientist Rebellion hackeou
e vazou o texto do relatório do Intergovernmental
Panel on Climate Change da ONU antes da sua divulgação
pela COP 26.
Tinham boas razões. A editoração final, cedendo a pressões políticas, censurou
as evidências contrárias à viabilidade de uma transição gradual para uma
“economia verde compatível com o crescimento”. A isso os cientistas responderam
com argumentos contundentes a favor da construção – utópica – de um consenso
global sobre os riscos da agravação da emergência climática.
O
seu manifesto preconiza, portanto, o decrescimento econômico, através da
redistribuição da riqueza, da redução do padrão de vida dos países ricos, e do
financiamento das mudanças necessárias pelos ocupantes do topo da pirâmide da
renda. Evidentemente, o grupo não sabe como contribuir para realizar essa
utopia, a não ser acompanhando e documentando evidências tais como as mudanças
na inclinação da curva do aquecimento global.
É
possível, portanto, que sequer desconfiem que o Sul global poderá tentar dar os
primeiros passos rumo a essa utopia tão logo o Brasil retome a construção da
sua democracia. A razão é inequívoca: a Amazônia é essencial não só à saúde
climática, mas também à soberania nacional. Deve, portanto, ser uma prioridade
consensual num governo democrático. Para isso será necessário incrementar o
diálogo entre políticos sensibilizados e cientistas, nacionais ou estrangeiros,
dispostos a colaborar.
Indiretamente,
o Scientist Rebellion nos
presta um bom serviço apontando como vilão o atual modelo econômico e expondo
didaticamente as teses sobre o aquecimento global. Seguindo o consenso
científico, o grupo acredita que o ponto de inflexão do colapso da Amazônia
esteja entre os 20 e os 40% de desmatamento, sendo que esse é estimado,
atualmente, em 17%. Ora, se a savanização[v] da floresta é um
dos fatores que retroalimentam o aquecimento global – ao lado de outros, tais
como a liquefação da camada permanente de gelo do subsolo –, a situação é de
fato alarmante, já que um salto em qualquer fator pode desencadear uma escalada
nos demais.
Portanto,
cabe ao Brasil não só fazer a sua parte, mas também pressionar outros países a
fazerem as suas. O que nos faltou não foi competência, mas meios de deter o
terrorismo de Estado do atual governo. Senão vejamos.
Uma
busca do assunto ‘mudanças climáticas’ na Plataforma Lattes, com os filtros
‘doutor’, ‘bolsista de produtividade em pesquisa’, e ‘presença no diretório de
grupos de pesquisa’, retorna uma lista de 1152 pesquisadoras/es. Uma busca
análoga do assunto ‘sustentabilidade da floresta amazônica’ exibe 252 nomes
trabalhando sobre questões diretamente relacionadas à preservação do
ecossistema local, dos quais 134 recorrem quando se somam os dois assuntos.
Chama a atenção nas listagens a forte presença de dois institutos de pesquisa
que resistiram impávidos aos cortes orçamentários dos últimos anos: o Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e o Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia (INPA).
Sob
a inspiração desse cenário animador, defendo abaixo que um governo que dê
ouvidos aos cientistas e às suas instituições representativas pode dar passos
decisivos no sentido de resgatar as nossas dívidas com a Amazônia e seus povos
originários, o que constitui uma contribuição inestimável à preservação da vida
na Terra.
O nosso diferencial: associações
científicas e entidades sindicais engajadas
O
engajamento tem sido uma condição sine
qua non para a sobrevivência da comunidade científica
brasileira, que nasceu e cresceu sob surtos periódicos de autoritarismo. É,
pois, graças à organização e à atitude aguerrida das nossas associações
científicas e dos nossos sindicatos de trabalhadores do saber que temos uma
cultura de resistência ao obscurantismo. Essa cultura traz também benefícios
intelectuais à nossa ciência, estimulando-a ao arrojo e à criatividade.
Associações científicas vigilantes pela
democratização da política de Ciência &Tecnologia
Como
de costume, recentemente comemoramos o Dia da Ciência, com atividades várias em
todo o país. A data remete à fundação da Sociedade Brasileira para o Progresso
da Ciência (SBPC), em 8 de julho de 1948. Os eventos incluíram discussões da
nova ameaça que paira sobre o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (FNDCT), a saber: uma proposta de alteração da lei que proíbe o seu
contingenciamento.
Não
surpreende que vários dos debates organizados pela SBPC e suas afiliadas tenham
abordado o confisco dos fundos para pesquisa e educação. Depois do golpe de
2016, as associações científicas brasileiras tiveram que organizar muitos
protestos contra os reiterados ataques à ciência e à cultura.
Lembremos,
a propósito, que as mais antigas já haviam passado por experiências dolorosas
com a ditadura militar. Durante aqueles longos anos, foram as suas reuniões que
deram voz à resistência da comunidade científica, denunciando ameaças às
universidades e institutos de pesquisa e abusos contra intelectuais e
cientistas.
A
liderança da SBPC se exercia impedindo a caserna de bloquear esses foros
através de uma articulação rápida a outros setores da resistência. Por exemplo,
ao ser proibida de realizar a reunião de 1977 em Fortaleza às vésperas da
abertura, obteve imediata autorização da Igreja Católica para transferi-la para
a PUC-SP, onde o evento e seus satélites escaparam à perseguição policial –
graças à proteção do Vaticano, que tem jurisdição sobre todas as universidades
pontifícias.
Pois
bem. A ameaça corrente exigiu de novo essa agilidade de articulação. Em 14 de
julho passado, representantes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) e da Confederação Nacional da Indústria (CNI) expuseram ao Senado, em
audiência pública, as suas propostas sobre a Política Nacional de Ciência,
Tecnologia e Inovação (PNCTI), com o fim manifesto de obter aprovação rápida. Ocorre
que as proposições visavam à desregulamentação.
Além
de postar uma carta aberta sucinta e incisiva no dia seguinte, a SBPC
endereçou, concomitantemente, uma manifestação mais detalhada ao Ministro da
Ciência, Tecnologia e Inovações, tendo como cossignatárias a Academia
Brasileira de Ciências (ABC) e a Associação Nacional dos Dirigentes das
Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). O seguinte trecho da carta,
prontamente publicada pelo Jornal
da Ciência,[vi] não deixa
dúvidas quanto ao seu engajamento: “É fundamental deixar claro que as
sociedades do conhecimento devem se basear em quatro pilares: liberdade de
expressão; acesso universal à informação e ao conhecimento; respeito pela
diversidade étnica, cultural e linguística; e educação de qualidade para todas
as pessoas. Nada disso é sequer mencionado”.
À
descabida proposta de desregulamentação, as três entidades responderam com uma
contextualização precisa. Lembraram que há mais dois artigos pertinentes da
Constituição Federal à espera de regulamentação. São os que dizem respeito (1)
aos investimentos das empresas em pesquisa; e (2) à responsabilidade do mercado
interno em pautar o desenvolvimento econômico em prol do bem-estar da população
e da autonomia tecnológica do país.
É
importante atentar para a expressão “sociedades do conhecimento”, cujo singular
é bem mais frequente no atual discurso sobre a ciência. O plural indica,
elegantemente, um respeito à diversidade de saberes que é hoje reivindicado,
mas nem sempre alcançado, pela maioria das sociedades científicas do Norte
global. Vejamos, por exemplo, a American
Association for the Advancement of Science (AAAS), a coirmã da
SBPC nos EUA – nascida exatamente um século antes, em 1848.
Como
esperado, o site da American
Association for the Advancement of Science[vii] declara foco
na missão de promover a inclusão, a equidade e a diversidade. Entretanto, outro
foco declarado são as carreiras stem,
acrônimo para science,
technology, engineering and math. Caberia, então, ao menos
tematizar a atual discussão sobre educação stem e/ou steam – parônimo cujo
‘a’ representa ‘artes’. A esse respeito, coloquemos, antes, uma questão de
princípio, a saber: a relação histórica entre as artes e as humanidades.
Caberia ela no escopo da American
Association for the Advancement of Science?
Aparentemente,
não. É o que se infere do conjunto das revistas da família Science, editadas pela
entidade. Elas
incluem, além da prestigiosa pioneira e sua sequela Advances in Science,
quatro áreas de ponta da ciência ‘dura’, a saber: a imunologia; a robótica; a
transdução de sinais em fisiologia e enfermidades; e a medicina translacional.
Nesse
contexto, é evidente que as artes são tomadas como prestadoras de serviço e
assimiladas a um currículo centrado na computação. As artes plásticas, por
exemplo, são hoje essenciais à produção das belas ilustrações dessas e de
outras revistas, científicas ou não. Da mesma forma, as artes musicais, que
também têm sido forçadas a fazer parcerias com o mercado, vêm sofrendo, há
algum tempo, modificações curriculares semelhantes, para acomodar as demandas
de uma sociedade cada vez mais informatizada e controlada por novos magnatas
que se escondem atrás de plataformas digitais.
Sem
desmerecer as perspectivas abertas por essas mudanças para a criação artística,
pode-se dizer que a política editorial da American Association for the Advancement of Science impõe,
sub-repticiamente, um estreitamento ao campo semântico do termo ‘equidade’. Ao
mesmo tempo em que alega abraçar a causa da equidade entre grupos humanos,
apega-se à hierarquização das áreas do saber. Assim, os termos hard e soft, tal como usados nas
suas mídias, parecem indicar não propriamente distinções entre formas de
teorização e/ou metodologias de pesquisa, mas graus de importância para o
avanço do conhecimento.
Com
efeito, a American
Association for the Advancement of Science não assume
diretamente a discussão da educação e das carreiras stem, steam ou,
ainda, stemm (o
mais novo membro da família, cujo segundo ‘m’ representa ‘medicina’). Prefere
acolhê-la em Science,
como artigo ou carta ao editor. Além disso, dedica alguns programas de inclusão
às três formações – todas predominantemente hard.
Leia também: Em
substituição ao capitalismo, surgiriam formas feudais de apropriação da riqueza
coletiva? As aparências enganam https://bit.ly/3qLQBir
A
propósito, poucos falantes do inglês se dariam conta de que há um acrônimo
recalcado na lista acima. Embora não se possa se manter o trocadilho iniciado
por ‘ste’,
pode-se facilmente substituí-lo por outro não tão “elevado” – porque jocoso.
Trata-se de melts (math, engineering, linguistics,
technology and science), que, curiosamente, significa ‘derrete’, se
verbo, e ‘fusões’, se substantivo – assim como ‘massa mole’ e toda a sua
sinonímia, com as respectivas conotações, positivas ou negativas.
E
eis que o chiste revela a verdadeira “cooperação” entre as disciplinas
envolvidas. É impossível fazer processamento de fala e linguagem sem o concurso
da análise linguística. Como já expliquei em outro ensaio,[viii] essa ciência
‘mole, branda ou suave’(soft)
subjaz aos sistemas de síntese e reconhecimento de fala que nos vigiam e
enriquecem as Big Techs.
Não admira, portanto, que os interesses em jogo a queiram bem escondida.
Voltemos,
agora, à American
Association for the Advancement of Science. Se ela, por um lado,
argumenta que os grupos historicamente excluídos são sub-representados nas
áreas stem etc.,
por outro, não esclarece se e como pretende abraçar a sua herança cultural –
que inclui muitas línguas e culturas de raiz, assim como variedades do inglês,
não raro estigmatizadas. Parece, pois, que as ações afirmativas fomentadas pela
entidade não são voltadas propriamente para preservar a diversidade e, sim,
para diluí-la.
O
exposto basta para ilustrar a diferença de atitude entre a American Association for the
Advancement of Science e a SBPC. Enquanto a estadunidense
evita tomadas diretas de posição política, deixando transparecer uma aliança
com o poder econômico, a brasileira pondera os fatores que afetam o trabalho
científico e abraça a luta contra as barreiras à liberdade de expressão e ao acesso
igualitário ao conhecimento.
Agora,
cruzando o Atlântico Norte, consideremos a Association Française pour l’Avancement des Sciences (AFAS),
fundada em 1872, tendo como primeiro presidente o eminente fisiologista Claude
Bernard. O seu site[ix], de desenho sóbrio,
critica a multiplicação de especialidades e reafirma vigorosamente a unidade da
ciência. Ostenta também objetivos claros, duráveis e fiéis ao seu lema
fundador, ainda vigente: “Par
la science, pour la patrie”. Isso revela um projeto político
nacionalista, destinado à construção de uma sociedade iluminista.
Como
é de esperar, a Association
Française pour l’Avancement des Sciences, tanto quanto a American Association for the
Advancement of Science, é enviesada para a ciência dura. Embora o
seu parcimonioso site não exiba uma adesão explícita à causa dos direitos
humanos, a discussão é acolhida em vários tipos de postagens – feitas, porém,
em maioria, por cientistas duros. Vez ou outra, comparece também algum/a
filósofo/a ou historiador/a da ciência. Vale notar, a propósito, que os
cientistas franceses são, em geral, bem mais críticos da tecnologia digital que
os estadunidenses. Alguns até fazem ataques frontais às Big Techs, lembrando, com
uma ponta de orgulho, que elas não são uma invenção europeia.
Não
dispomos aqui de tempo ou espaço para comentar as posturas políticas de
associações científicas de áreas específicas. Lembremos apenas que, no Brasil,
a maioria delas é filiada à SBPC e costuma contribuir para as suas discussões
das bases de uma política científica socialmente justa. Em contrapartida, no
Norte global, onde as associações centrais também têm muitas afiliadas,
prevalece a tendência a manter uma fachada apolítica e, ao mesmo tempo, apoiar,
sob pretextos humanitários, manobras ultraconservadoras, tais como os avanços
da OTAN no Leste Europeu.
Um
exemplo que, por razões de ofício, testemunhei é uma declaração recente
da Linguistic Society
of America (LSA[x]) repudiando a invasão
russa da Ucrânia e alertando para o risco de perda de diversidade linguística.
De fato, há um risco discreto: o de o russo superar o ucraniano, até agora
majoritário no país. Ressalte-se, todavia, que ambas as línguas são eslavas.
Por
outro lado, em cinquenta anos de filiação à Linguistic Society of America, jamais topei
com qualquer declaração igualmente veemente sobre o risco de extinção das
línguas indígenas brasileiras. Não custa lembrar, a propósito, que as invasões
do território ianomami começaram nos anos 1970, sob pretextos desenvolvimentistas
da ditadura militar. Aparentemente, a Linguistic
Society of America não se comoveu com o risco de extinção da
importante família linguística então descoberta.
Sindicatos vigilantes pela democratização
da produção científica
Embora
tenham as suas particularidades locais, os nossos sindicatos de
trabalhadores/as acadêmicos assumem muitas lutas conjuntamente. Já no Norte
global essa forma de cooperação é rara, senão ausente. Uma das lutas vigorosas
aqui – e lá quase inexistentes – é por democratizar a guarda e a partilha do
conhecimento produzido. Em outras palavras, trata-se não apenas de defender os
interesses corporativos dos filiados, mas de zelar por uma produção científica
ao mesmo tempo autônoma, criativa, transparente e referenciada socialmente.
Nesta
seção, como na anterior, será necessário argumentar por exemplificação.
Primeiro, sobrevoaremos as associações docentes mais antigas do país, lembrando
que surgiram durante a ditadura militar. Depois, lembraremos que a sua primeira
central também surgiu nesse período, bem antes da ampliação dos direitos de
livre associação, autonomia e greve pela Constituição de 1988. Por fim,
comentaremos o funcionamento, muito distinto, dos sindicatos do Norte global,
sejam eles locais ou centrais.
Comecemos
pela mais antiga, a Associação
dos Professores das Instituições Federais de Ensino do Estado da Bahia (APUB),
fundada em 1968, em resposta a uma invasão do campus da UFBA pela Polícia
Militar. A sua iniciativa de vincular explicitamente as lutas dos docentes às dos
demais trabalhadores foi seguida pelas confrades surgidas na década seguinte –
a ADUSP, fundada em 1976; a ADUNICAMP, fundada em 1977; a UFRJ e a APUFPR,
fundadas em 1979.
Outra
pauta comum das nossas Associações de docentes é expressa pelo lema “Universidade
para todas/os”, que rechaça o elitismo em prol da universidade pública,
gratuita, de qualidade e socialmente referenciada. Nos últimos anos, foi
preciso, além disso, defendê-la de ameaças diuturnas à gratuidade, à autonomia,
à liberdade de cátedra e ao financiamento da educação e da pesquisa.
É
importante ressaltar que agendas comuns não impedem divergências. No caso das
Associações de docentes, essas se expressam, por exemplo, na sua divisão em
duas centrais, a saber: o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de
Ensino Superior (ANDES[xi]), fundado em 1981, e
a Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais
de Ensino Superior e Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (PROIFES-Federação[xii]), fundada em 2004.
As
diferenças entre as duas federações, implícitas nos seus nomes, não caberiam na
presente discussão. O que nos interessa aqui é que entidades com concepções
distintas da própria missão têm se unido para defender a qualidade, a diversidade
e a relevância social da produção científica brasileira.
Um
testemunho dessa colaboração é o Observatório
do Conhecimento, rede de sindicatos de docentes articulada em torno
da defesa da universidade pública, gratuita, democrática e de qualidade. A
filiação dos seus membros a diferentes centrais não interfere com os seus
objetivos, a saber: manter a independência e o suprapartidarismo; acompanhar e
analisar os cortes orçamentários pertinentes; e combater a perseguição aos
membros da comunidade científica.
Leia também: Nova era de catástrofe do capitalismo se aproxima – e
mudar o rumo das coisas exige mais do que esperanças imaginárias https://bit.ly/3d6iKxB
Ademais,
o Observatório procura
combater a manipulação, fiscalizando e publicizando decisões que afetam o
funcionamento das universidades e demais instituições de produção do
conhecimento. Mantém-se, portanto, atento às propostas de políticas públicas
para o ensino superior, acompanhando as bancadas e comissões do legislativo,
bem como os ministérios e secretarias envolvidos.
Uma
simples inspeção do seu site[xiii] revela que
está em contato não apenas com entidades estudantis, como a Associação Nacional
de Pós-graduandos (ANPG), mas também com outros observatórios, como o Observatório Político e Eleitoral.
A temática inclui desde problemas atuais, tais como as disputas eleitorais, até
problemas crônicos, tais como o racismo, o elitismo, a fuga de cérebros e a
degradação da Amazônia.
Enfim,
não há dúvida de que se trata de um coletivo convicto de que a produção do
conhecimento científico está sujeita a injunções políticas que podem
comprometer a sua integridade, qualidade e/ou relevância social.
Esse
tipo de aposta direta na democratização da ciência não existe no Norte global.
Ilustremos essa afirmação com três exemplos: a estadunidense American Association of University
Professors (AAUP), a britânica University and College Union (UCU),
e a francesa Syndicat
National de l’Enseignement Supérieur (SNESUP). Segundo os
respectivos sites, as duas primeiras datam das primeiras décadas do século XX,
enquanto o terceiro surgiu logo após a segunda guerra mundial.
Como
é de esperar, as duas entidades europeias são mais aguerridas que a
estadunidense. De qualquer modo, esta defende diretamente a liberdade
acadêmica, a governança democrática e a carreira docente – ao mesmo tempo em
que aborda a produção do conhecimento apenas genérica e superficialmente. Já as
suas confrades britânica e francesa não poupam críticas ao neoliberalismo e
defendem o financiamento público à educação superior e à pesquisa. Ostentam
também um histórico de protestos, tais como os de maio de 1968 ou os que se
solidarizam com o povo palestino.
Ainda
assim, não se pode esperar que façam a crítica da tradição científica
subjacente à formação dos seus filiados. A relegação do outro a uma condição
que Boaventura de Sousa Santos define como ‘abaixo da linha abissal’[xiv] está implícita
no seu silêncio sobre a apropriação da farmacopeia ancestral das colônias e
ex-colônias de seus países pela Big
Pharma. Analogamente, é sistemático o seu silêncio sobre a dívida
da matemática, da engenharia – enfim, de toda a C&T ocidental – para com os
árabes. Caso contrário, se insurgiriam contra a perene desqualificação dos
costumes desses povos pela mídia hegemônica. Os palestinos seriam, então,
vistos não apenas como vítimas a defender, mas também – e sobretudo – como
detentores de um legado de conhecimento e resistência a respeitar e preservar.
Considerações finais
Passado
pouco mais de um século desde o seu nascimento a partir da agregação de escolas
isoladas nas grandes capitais, a universidade brasileira cresceu
assombrosamente. O sistema de universidades públicas e gratuitas, federais e
estaduais, que se expandiu e consolidou desde então, é, sem dúvida, uma
expressão do desejo do povo brasileiro de se educar e produzir conhecimento
novo.
Quaisquer
que sejam as suas imperfeições, esse sistema se impôs graças à luta dos que
clamavam por educação para todos. Num momento em que o neoliberalismo vem
privatizando o ensino superior público em todo o ocidente – seja via cobrança
de taxas, seja via patrocínios privados –, cabe a nós preservar, revigorar e
aperfeiçoar a democratização da universidade brasileira e da sua produção
científica.
Como
vimos, são raros os colegas do Norte global que têm alguma ideia do que possa
ser uma democracia científica pluralista. Aqui, essa discussão está em pauta
desde as primeiras ameaças às nossas instituições educacionais e científicas; é
polêmica e palpitante – e pode se tornar um exemplo para o mundo. Participemos.
Notas
[i] Stengers,
Isabelle. Another Science Is Possible:
A Manifesto for Slow Science. Tradução de Stephen
Muecke. Cambridge, UK: Polity Press, 2018.
[ii] https://aterraeredonda.com.br/o-cerco-do-mercado-ao-pensamento-critico/
[iii] https://www.3800808.com/
[iv] https://scientistrebellion.com/
[v] Termo devido ao
premiado meteorologista e ativista do clima Carlos Afonso Nobre, do INPE, que
foi o primeiro a demonstrar o risco de a Amazônia se transformar numa savana.
[vi] http://www.jornaldaciencia.org.br/edicoes/?url=http://jcnoticias.jornaldaciencia.org.br/1-entidades-enviam-carta-ao-ministro-paulo-alvim/
[viii] https://aterraeredonda.com.br/a-que-e-por-que-resistir/.
[x] https://www.linguisticsociety.org/news/2022/03/02/lsa-issues-statement-support-people-ukraine
[xi] https://www.andes.org.br/
[xii] https://www.proifes.org.br/
[xiii] https://observatoriodoconhecimento.org.br/
[xiv] O autor usa as
linhas abissais da cartografia da Europa colonial como metáfora para descrever
a relegação de pessoas e povos a uma condição subumana.
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