SILÊNCIO, DIPLOMACIA E FUTEBOL
Como uma operação diplomática sem precedentes silenciou as
críticas contra o Qatar e sua Copa do Mundo
Philippe Mottaz
e Jamil Chade, revista Piauí
Quem andou pela sede da ONU em Genebra nas últimas semanas descobriu que,
num dos principais salões da entidade, bandeiras do Qatar acompanham telões
gigantes, instalados para que diplomatas e funcionários internacionais assistam
aos jogos da Copa do Mundo de 2022.
Quando uma partida
começa, é o logotipo justamente de uma agência da ONU, a OMS (Organização
Mundial da Saúde), que aparece em placas de publicidade estrategicamente
posicionadas ao redor do campo. Os anúncios fazem parte de um acordo fechado
entre a agência internacional de saúde, a Fifa e o governo do país que é sede
do torneio.
De acordo com a
OMS, a colaboração com a Fifa “está orientada para compartilhar mensagens para
promover a saúde e para melhorar concretamente o impacto na saúde para os milhões,
senão bilhões, de torcedores que assistem aos jogos”.
A agência ainda se
orgulha em dizer que, nesta Copa do Mundo, pela primeira vez, a alimentação em
estádios e zonas de torcedores incluiu opções saudáveis desenvolvidas com a
orientação da OMS.
Mas e sobre a saúde
dos trabalhadores que ergueram os estádios?
A Copa sequer
terminou. Mas o Qatar está no centro do furacão diante das suspeitas de que o
governo do país do Golfo tenha subornado deputados e assessores em Bruxelas
para frear críticas contra o regime do emir que se preparava para receber o
mundo no evento mais cobiçado do planeta. As autoridades do país que recebe a
Copa rejeitam qualquer envolvimento no escândalo.
Enquanto isso, nos
corredores da diplomacia da ONU, a realidade é que uma operação sem precedentes
foi montada para abafar qualquer denúncia de violações de direitos humanos ou
questionamentos sobre o país.
Bem antes do
escândalo do Qatargate eclodir no Parlamento Europeu, a Fifa sentia a pressão
da contínua condenação internacional sobre o tratamento dado pelo Qatar aos
trabalhadores migrantes no período que antecedeu o torneio.
Hoje, ninguém sabe
dizer ao certo quantos trabalhadores morreram erguendo os estádios. Enquanto um
levantamento do jornal The Guardian revelou que esse número
ultrapassa 6,5 mil pessoas, o Qatar manteve por anos uma versão radicalmente
diferente. Agora, enquanto a bola corria, os dirigentes do Mundial admitiram
que as mortes podem ter atingido entre quatrocentas e quinhentas pessoas.
Trabalhadores, a
OIT e o Qatar
Em muitos sentidos,
a história do acordo entre a Fifa e a Organização Internacional do Trabalho
oferece um exemplo sobre essa trama dos bastidores da diplomacia mundial.
No dia 19 de
novembro, o presidente da Fifa, Gianni Infantino, irritaria a comunidade de
ativistas e de direitos humanos ao declarar, durante uma coletiva de imprensa,
que se sentia parte da população mais vulnerável no Qatar. “Hoje me sinto gay
[…] hoje me sinto como um trabalhador migrante”, disse.
Mas foi nesse
monólogo perante a imprensa mundial de futebol que ele deixou escapar a notícia
de que a Fifa e a OIT estabeleceriam em conjunto um “centro de excelência
trabalhista”. “Estamos em discussão, temos um memorando de entendimento com a
OIT”, disse Gianni Infantino. “O diretor-geral [da OIT] virá aqui dentro
de alguns dias”, prometeu. “Queremos estabelecer programas a partir da
experiência que adquirimos aqui no Qatar”, insistiu o cartola, acrescentando uma
frase quase surreal dada a controvérsia sobre o tratamento dos trabalhadores
estrangeiros do Qatar ao longo dos anos. “Eu nunca pensaria que teria que lidar
com questões trabalhistas, com base na experiência que adquirimos no Qatar”,
disse. Segundo ele, esse centro de excelência trabalhista coletaria as melhores
práticas em todo o mundo e a OIT atuaria para “tornar a vida dos trabalhadores
em todo o mundo um pouco melhor”.
Na realidade, ao
contrário da declaração do presidente da Fifa naquele dia, não havia nenhum
Memorando de Entendimento entre sua organização e a OIT.
Infantino e Gilbert
Houngbo, o novo diretor-geral da OIT, tinham se reunido três dias antes em
Bali, à margem da cúpula do G20. Houngbo já estava familiarizado com o Qatar:
em 2016, como ex-diretor-geral adjunto da organização, ele havia iniciado
contatos com Doha após uma coalizão de sindicatos, agindo em nome dos
trabalhadores estrangeiros, ter apresentado uma queixa à OIT pelas supostas
violações dos direitos trabalhistas no Qatar.
Segundo fontes
familiarizadas com as discussões em torno do acordo, Infantino estava com
pressa de tê-lo redigido e assinado. Ele se dirigiu diretamente a Houngbo,
pedindo que o documento estivesse pronto até 4 de dezembro, quando Houngbo o
visitaria em Doha.
De acordo com
fontes próximas às conversas, seguiram-se consultas internas na OIT e, apesar
de algumas resistências dos funcionários, Houngbo deu luz verde para que
fosse rapidamente preparado um rascunho do acordo.
Na entidade
centenária com sede em Genebra, o cálculo era de que, uma vez terminada a Copa
do Mundo, uma oportunidade de promover a mensagem da OIT para bilhões de
torcedores poderia ser desperdiçada.
Assim, um texto
amplo, que incluía as “linhas vermelhas” de advertência da OIT, foi enviado à Fifa.
Dias depois, explodiu a investigação belga sobre a suposta corrupção no
Parlamento Europeu para favorecer o Qatar e abafar críticas.
Elogios, elogios
A realidade é que o
Qatar e a OIT têm um acordo técnico em vigor desde 2018 e, em outubro passado,
a organização destacou o progresso do país na implementação de reformas
trabalhistas e de direitos humanos. O sistema kafala, semelhante a uma forma
moderna de escravidão, foi abolido, e um sistema de salário mínimo foi
estabelecido para os trabalhadores estrangeiros.
Infantino ainda
lembrou que o Qatar pagou 320 milhões de dólares do Fundo de Apoio e Seguro dos
Trabalhadores desde sua criação em 2018 para resolver roubos salariais
pendentes e outras reclamações. Mas quatro grandes organizações de direitos
humanos querem que a Fifa assuma mais responsabilidade:
“O descaso
flagrante da Fifa quanto aos graves abusos contra trabalhadores migrantes no
Qatar é tanto uma vergonha global quanto uma tática sinistra para escapar de
sua responsabilidade em matéria de direitos humanos de compensar milhares de
trabalhadores que enfrentaram abusos e as famílias daqueles que morreram para
tornar possível esta Copa do Mundo”, disse Tirana Hassan, diretora executiva
interina da Human Rights Watch, que fez a denúncia em 12 de dezembro.
“A Fifa continua a
arrecadar bilhões de dólares em receitas, mas se recusa a oferecer um único
centavo para as famílias dos trabalhadores migrantes que morreram ou daqueles
trabalhadores que foram enganados com seus salários”, afirmou.
O trabalho da OIT
em Doha continuará e possivelmente se intensificará. Durante sua campanha de
nomeação e desde que tomou posse em outubro, Gilbert Houngbo tem repetidamente
declarado suas intenções de ampliar as parcerias da OIT com outros atores
internacionais e de se engajar além da esfera multilateral clássica para ser
mais visível e ter um impacto.
Seu movimento em
direção à Fifa ou ao Comitê Olímpico Internacional deriva de sua convicção de
que essas instituições, e o esporte em geral, têm uma considerável capacidade
de influência que a OIT poderia usar para promover sua agenda.
Violações de direitos humanos jamais investigadas
Ao longo dos
últimos anos, a realidade é que o Qatar foi buscar na diplomacia internacional
o caminho para lustrar sua imagem depois de surpreender o mundo ao ganhar o
direito de organizar a Copa do Mundo de 2022.
Para o emir, porém,
sediar o torneio nunca foi apenas uma questão de futebol. Cinzia Bianco,
especialista em Oriente Médio e membro do Conselho Europeu de Relações
Exteriores, explica que a Copa do Mundo é para o Qatar “o ápice de uma
estratégia de anos para aumentar o poder suave e o prestígio internacional –
duas moedas extremamente valiosas para um país pequeno em uma região tão
volátil e instável”.
Para isso, o
pequeno país do Golfo não hesitou em gastar cerca de 220 bilhões de dólares, um
valor extraordinário quando se considera que a Rússia gastou vinte vezes menos
em 2018, e o Brasil gastou apenas 15 bilhões em 2014.
E como o desafio
mais premente de Doha era responder e abordar seu histórico de direitos humanos
e trabalho forçado, esforços diplomáticos consideráveis acabaram sendo
desdobrados em Genebra, consistindo principalmente em frear a pressão de
reforma vinda da ONU, ativistas de direitos humanos e sindicatos.
Denúncias abortadas
Não faltaram
denúncias para serem averiguadas. Em julho do ano passado, Felipe González
Morales, relator especial da ONU sobre os direitos humanos dos migrantes,
Miriam Estrada-Castillo, vice-presidente do Grupo de Trabalho da ONU sobre
Detenção Arbitrária, Tae-Ung Baik, presidente-relatordo Grupo de Trabalho sobre
Desaparecimentos Forçados ou Involuntários da ONU, e Irene Khan, relatora
especial da ONU sobre a Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e
Expressão escreveram uma carta para o governo do Qatar inquirindo sobre Malcolm
Bidali.
“Malcolm Bidali, um
trabalhador migrante queniano de 28 anos de idade, tem destacado as condições
dos trabalhadores migrantes no Qatar, onde atualmente reside e trabalha. O sr.
Bidali tem chamado a atenção para questões de direitos dos trabalhadores,
incluindo horários de trabalho, salários, acomodações e condições de trabalho”,
escreveram eles.
O governo informou
que condenou Bidali pela “criação e distribuição de desinformação no Estado do
Qatar”. Em sua resposta, as autoridades também alegaram que lhe foi oferecida
assistência jurídica pela Ituc, a Confederação Internacional dos Sindicatos,
justamente a entidade mencionada na investigação belga sobre os subornos pagos
pelo emir.
Em 2017, o Estado
do Golfo ainda tornou-se copresidente do Grupo de Amigos do Esporte para o Desenvolvimento
e a Paz, promovendo eventos e resoluções na ONU sobre o papel do esporte e dos
direitos humanos.
Durante as sessões
do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Qatar teve quatro exposições
informativas nos corredores ao redor da sala do Conselho, uma delas chamada
“Direitos Humanos e Futebol” e, desde 2018, a ONU em Genebra coorganizou três
exposições de arte com a Missão Permanente do Qatar.
“Um sincero
agradecimento também ao Qatar, copresidente do Grupo de Amigos do Esporte para
o Desenvolvimento e a Paz por apoiar este evento, incluindo a recepção que nos
espera depois”, comemorou o então diretor da ONU em Genebra, Michael Møller, em
um discurso num desses eventos patrocinados pelo emir.
O Qatar só começou
a reformar suas práticas quando sentiu que seu plano de sediar a Copa do Mundo
poderia estar comprometido. Em seu livro de 2020, Still Work to Be
Done: The Future of Decent Work in the World (Ainda há trabalho a ser
feito: O futuro do trabalho decente no mundo), Luc Cortebeeck, ex-vice-presidente
do Conselho de Administração da OIT para o Grupo dos Trabalhadores, relata
como, tendo montado uma “máquina de lobby sem precedentes”, o Qatar tentou
sistematicamente impedir uma investigação sobre seus direitos humanos e
práticas trabalhistas.
Em 2014, depois que
François Crépeau, relator especial da ONU para os Direitos Humanos dos
Migrantes do Canadá, publicou um relatório documentado sobre as condições dos
trabalhadores estrangeiros no país, o Qatar conseguiu reunir uma ampla coalizão
de apoio.
Nela estavam países
árabes que não queriam perder as remessas dos migrantes que estavam trabalhando
no Qatar e mandando dinheiro de volta às suas famílias. A aliança ainda contava
com governos que negociavam acordos com o Qatar ou envolvidos em grandes eventos
esportivos, temerosos de que tal pressão acabaria afetando seus próprios planos
e imagem.
Leia
também: A ambição global do Catar com a Copa do Mundo https://bit.ly/3OvLWMz
Como resultado, um
relatório não teve seguimento no Conselho de Direitos Humanos, escreve
Cortebeeck. O Qatar jamais foi de fato incomodado.
No mesmo ano, com
base nas evidências coletadas pelo Relator Especial e pela Confederação
Sindical Internacional (ITUC), Cortebeeck pressionou o Conselho de
Administração da OIT a estabelecer uma Comissão de Inquérito sobre o Qatar.
A votação
fracassou, mas depois que o grupo de empregadores decidiu apoiar o grupo de
trabalhadores, o Conselho de Administração aceitou a criação de uma missão
tripartite ao Qatar.
Em seu livro,
Cortebeeck conta as armas de pressão do Qatar. Isso incluía a ameaça grosseira
do ministro do país-sede da Copa de cortar o fornecimento de energia aos países
apoiadores da missão de investigação. Assim, o ex-dirigente escancara a
história das tentativas do Qatar de impedir o trabalho da missão de averiguação
e de continuar contestando as evidências coletadas ao longo dos anos pela ONU,
pelos sindicatos, pela sociedade civil, incluindo associações de futebol, e
pela imprensa internacional.
Em março de 2016, a
missão tripartite entregou seu relatório ao órgão da OIT. A entidade e os
sindicatos poderiam agora iniciar oficialmente as negociações com Doha. Em
novembro de 2017, apoiado por um fundo de 25 milhões de dólares pago pelo
Qatar, foi estabelecido um programa de apoio técnico com a OIT e foi aberto um
escritório em Doha.
Muitos observadores
da OIT veem isso como a validação do conceito de “engajamento construtivo”.
Nenhuma das reformas que o Qatar acabaria por implementar teria acontecido se
não fosse pela OIT e por outros envolvidos com Doha, dizem eles.
Mas para alguns,
esse argumento está agora sendo testado muito seriamente à luz do Qatargate. “O
Qatar ainda não conseguiu resolver seu problema de reputação na opinião pública
ocidental e na sociedade civil; e, se algo aconteceu, seu papel como anfitrião
só aumentou seu perfil em um sentido negativo”, escreveu Cinzia Bianco antes
que o suposto escândalo de corrupção se rompesse.
Diplomacia está sendo testada na Copa
A presunção de
inocência se aplica a todos na investigação em curso, inclusive o Qatar. Mas,
no mínimo, a OIT e todas as outras organizações internacionais dispostas a
“alavancar os milhões e bilhões de fãs” que os megaeventos esportivos trazem
podem ser bem aconselhadas a proceder com extrema cautela. “O que está sendo
testado aqui é a capacidade de organizações como a OIT de dizer não”, disse um
experiente funcionário do alto escalão da ONU.
Conforme o
Memorando de Entendimento entre a OIT e Fifa, seu status hoje em dia ainda não
está claro. “Os detalhes do MOU serão anunciados se e quando houver um acordo.
Espera-se que as discussões continuem no próximo ano”, disse a OIT por e-mail.
Fontes admitem que
o assunto provavelmente será abordado durante a reunião em abril do Conselho de
Administração da OIT, a instância executiva da organização. “Espero que sejam
feitas perguntas difíceis”, disse uma fonte bem informada fora da organização.
A história da
relação entre a Copa e a diplomacia revela que organizações internacionais que
desejam ter um impacto global precisam ponderar os benefícios e riscos de se
associarem ao futebol e a outros megaeventos esportivos. As parcerias com a
Fifa, uma das organizações esportivas mais poderosas e ricas do mundo, podem
sem dúvida parecer sedutoras. Mas hoje, no interior dessas entidades e diante
do escândalo de corrupção, muitos se perguntam se vale a pena o risco de
associação com o que os críticos afirmam ser um sistema permeado por corrupção,
e agora manchado pela influência da compra do Qatar.
Os
fatos em órbitas sucessivas https://bit.ly/3Ye45TD
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