16 outubro 2024

Nova classe o quê?

Nem tão nova classe média
O conceito de “nova classe média” reforça a miopia e a generalização ainda perpetuadas por grupos hegemônicos da academia e de setores ditos “tradicionais” da sociedade paulistana, e afasta parte considerável da população das perspectivas progressistas possíveis
Lucas Chiconi Balteiro/Le Monde Diplomatique

Muitos se surpreenderam com o alcance de Marçal na Zona Leste de São Paulo, mas, quem vive por aqui, sabe muito bem que o trabalho de base do candidato foi mais expressivo do que boa parte dos candidatos de esquerda, que nem sequer tiveram agendas públicas evidentes na região. Em suma, abriram mão de disputar as classes médias em sua amplitude, o que, na maior e mais rica cidade do país, significa abrir mão de muita coisa.

Afinal, o que a sociedade paulistana não é, nem de longe, é o cenário oito ou oitenta encontrado no Morumbi, entre mansões e favelas. As complexidades são muito maiores e os parlamentares eleitos deverão trabalhar para todos, ou ao menos para a maioria, ao invés da dicotomia da esquerda que oscila entre movimentos acadêmicos e privilegiados de Pinheiros, na Zona Oeste, instituições de classe no Centro e movimentos sociais nas periferias. Como se nada existisse entre esses polos confortáveis ao espectro político.

Pior ainda quando dizem que esses lugares são os dos “pobres que comem mortadela e arrotam caviar”. Gerações anteriores passaram por processos de ascensão social, e lugares consolidados pelo trabalho operário vinculado à indústria e ao comércio popular tornaram-se ambientes híbridos, onde foram proliferadas formas arquitetônicas que reproduzem ares mais “burgueses” e diferenciados.

O ambiente se tornou atrativo a novos negócios do setor privado. O comércio e a oferta de serviços também se diferenciaram e se somaram às camadas populares. Não por acaso, já que a infraestrutura pública já era implantada desde ao menos os anos 1970. Vilas de casas, pequenos edifícios, lojas populares e feiras de rua passaram a conviver com arranha-céus, concessionárias de carros importados, bares e restaurantes cada vez mais sofisticados e casas que também mudaram seus espaços internos e externos para reproduzir sua ascensão.

Estamos falando de um movimento interno de parte significativa dos próprios moradores que pressionou por estas transformações, ainda pouco compreendidas pela academia, sobretudo por grupos da arquitetura e do urbanismo em suas instituições de classe que se colocam como progressistas em termos políticos e ideológicos. Contudo, seus olhares persistem em uma posição de exotismo e crítica, especialmente pela região das elites “tradicionais”, na Zona Oeste e parte da Zona Sul, terem sido pressionadas. 

Por esse motivo, é tão oportuno a utilização do termo “além-rios” pela arquiteta e urbanista Deborah Sandes de Almeida, doutoranda na FAU/USP, ao pesquisar bairros da Zona Norte de São Paulo. A ideia de “mesopotâmia paulistana” foi bastante enraizada na história da cidade, que define o “entre rios” (Tamanduateí, Tietê e Pinheiros) como o espaço principal e detentor de riqueza e infraestrutura, ao passo que as regiões “além-rios” (Zona Norte e Zona Leste) seriam menos qualificadas e pobres, marginalizadas. Desse modo, tem emergido uma nova geração de pesquisadores da história urbana que busca desconstruir essas catedrais a respeito da metrópole, por meio das histórias não contadas ou trabalhadas apenas pela visão dos grupos hegemônicos, externos aos territórios em questão.

Quando falamos dos bairros-jardins paulistanos, como os famosos Jardins América e Europa, o Alto de Pinheiros e o Pacaembu, é quase automática a lembrança da Cia City, empresa responsável pela implantação desses bairros. Entretanto, o que Almeida investigou é que a mesma empresa também foi responsável por bairros-jardins no noroeste da cidade, influenciando a urbanização da região por meio de formatos diferentes daqueles encontrados nos bairros da elite tradicional, à exemplo do City América, no Parque São Domingos, e do City Empresarial Jaraguá. Nesses lugares, as dinâmicas de uso e ocupação do solo tomaram outras dimensões, sobretudo pela arquitetura produzida, pouco aceita entre os círculos sociais do circuito “tradicional” do campo em São Paulo, como a Vila Buarque, Higienópolis e Pinheiros.

É nessa mesma região de onde vem a advogada, apresentadora e comentarista Gabriela Prioli, mais precisamente da Vila Mangalot. Há dois anos, foi entrevistada no PODDELAS, quando pôde contar sua história ainda muito distorcida entre o público que observa uma mulher branca, loira e de físico padrão. Prioli é filha de trabalhadores, um contador e uma fonoaudióloga, da Vila Mangalot, pequeno bairro às margens da Rodovia Anhanguera, muito perto dos limites com o município de Osasco. Durante a entrevista, definiu o bairro enquanto “periferia”, mas demonstrou esclarecimento sobre a complexidade que acomete sua família e sua história, já que foi bolsista em colégio particular e era tida como da parte “pobre” da família. Enquanto isso, para colegas de bairro, era vista como “rica&rd quo; por morar em um edifício com apartamentos de 50 metros quadrados. Essa espécie de não-lugar é uma realidade para uma grande parcela da população paulistana, já que uma das heranças da metrópole industrial foi justamente a consolidação de estratos sólidos e variados de classes médias que detém de regiões intermediárias entre a área central e as periferias de fato. 

Não é a primeira vez que o mapa das eleições gera preocupação e surpresa na esquerda, visto que o mesmo aconteceu com a eleição do ex-presidente Jair Bolsonaro. Entretanto, há uma novidade no mapa de 2024: Marçal evidenciou o avanço da fronteira entre os bairros privilegiados e os bairros periféricos, já que regiões como Ermelino Matarazzo, Itaquera e Sapopemba votaram, majoritariamente, em Pablo Marçal, diferente do extremo leste que foi em sua maioria de Guilherme Boulos. Em maioria, não em totalidade, é importante frisar.

Como demonstrou o LabCidade da FAU/USP, existem complexidades pouco reveladas nos mapas do resultado eleitoral. Apesar disso, ainda se faz necessário disputar o conhecimento acadêmico a respeito da metrópole e suas regiões, sobretudo das classes médias. Não foram poucas as evidências de mudanças de cunho cultural e político na Zona Leste nas últimas décadas que ainda reverberam no presente: nos últimos anos, houve a demolição da sede do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, no Tatuapé, em meio a uma disputa por seu tombamento como patrimônio cultural do município. Era um espaço de recepção e organização de eventos de esquerda, o que demonstrava outro sinal relevante de combate à esquerda nesses territórios.

Alguns anos antes, na mesma porção do Tatuapé, a Vila Operária João Migliari protagonizou a mesma situação de transformação de um passado operário de trabalho que remete aos tempos fabris da metrópole e que apresentam uma crise de identidade entre passado e presente, por meio das divisões sociais do trabalho e o sentido de transformar e preservar na metrópole. No mesmo período, empresários e comerciantes da Penha chegaram a contestar o tombamento (instrumento de preservação) do Centro do bairro, onde existe um conjunto importante de espaços construídos para a história de São Paulo, inclusive por parte da comunidade negra local em torno do Largo do Rosário.

Há tempos que bairros como Mooca, Belém e Tatuapé mudaram seu perfil social predominante, assim como Água Rasa, Vila Formosa, Vila Prudente, Vila Carrão, Vila Matilde, Penha, Aricanduva e Parque São Lucas seguiram o mesmo caminho entre aquela cidade industrial de outrora e a metrópole dos serviços que viria a emergir nos finais do século XX.

É notória a consolidação das classes médias paulistanas frente ao agigantamento da região metropolitana, que também abriga processos socioespaciais similares, como no ABC Paulista, Guarulhos, Mairiporã, Osasco, Barueri, Suzano e Mogi das Cruzes. Na Zona Norte, bairros como Santana, Tucuruvi, Vila Maria, Vila Medeiros, Casa Verde, Freguesia do Ó, Pirituba e Parque São Domingos fazem parte dessa história.

O centro desse processo na Zona Leste é o Tatuapé e seu entorno, sobretudo o Jardim Anália Franco, oficialmente Vila Regente Feijó. Os edifícios de alto padrão e as novas tipologias de casas já existem desde os anos 1980 e 1990, muito antes do que se convencionou chamar de “nova classe média”. É onde está a maior concentração de imóveis e serviços caros da Zona Leste, motivado pela ascensão de famílias de diferentes bairros da região que desejaram permanecer por aqui, em movimento contrário ao que cunhou a hegemonia como as Zonas Oeste e Sul sendo os lugares exclusivos 9dos ricos) em São Paulo.

Leia sobre fissuras na extrema direita https://lucianosiqueira.blogspot.com/2024/05/extrema-direita-fissurada.html 

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