Marco Albertim, no Vermelho www.vermelho.org.br
Elga Cegonha abriu uma das gavetas da cômoda
de seu quarto e tirou, sem hesitação, duas cédulas de cem reais; deu-as à filha
com a mesma sem-cerimônia. Em seguida, ponderando, chamou-a de volta ao quarto
para trocar as cédulas por dez notas de vinte reais. Elguinha pôs o dinheiro
numa carteirinha de couro, fechada por um zíper, do tamanho do bolso da
algibeira de sua calça jeans.
Podia dispensar o porta-níqueis, mas em suas mãos a bolsinha compunha-se de modo a acentuar a delicadeza de cada um dos dedos de unhas curtas; tão curtas que o contato de um minúsculo pincel untado de esmalte requeria extrema destreza da manicura.
- Assim, não despertará a cobiça do motorista de táxi – advertiu Elga Cegonha; advertiu e depois emendou:
- Não quer esperar o motorista de seu pai? Logo ele estará de volta e levará você para a casa de sua amiga.
Elguinha tinha outro propósito. Caso fosse levada pelo chofer da família, o rumo que ia seguir àquela tarde correria o risco de ser descoberto pelos pais, acostumados a fitar os passos da filha sem obliquidade nos olhos. O par de tênis nos pés de Elguinha, de fino solado, era uma moldura nos seus passos curtos. Também Elga Cegonha se dera conta de uma calça jeans modelando suas coxas fartas, remoçando os passos maduros de seus pés. O marido, no entanto, advertira-a de que de que o uso de calças jeans seria agressivo à dignidade própria das tardes de chá, tão frequentes na rotina de Elga Cegonha, em visita às amigas.
- Meus amigos estão acostumados a me ver de terno e gravata. Vista-se de modo a não pôr em risco à etiqueta da família – dissera-lhe o diretor de banco, avesso a humores fáceis.
Por certo lembrando-se do figurino sem vincos, seu e do marido, a quase sexagenária ponderou que a camisa de seda, branca, da filha, depunha quase nada da condição social da família. Elguinha, fingindo-se de acordo com o código de honra da mãe, trocou o algodão chinfrim da blusa pelo lilás luminoso de uma blusa de gola levantada, tão ereta quanto o andar empertigado da mãe em noite de sarau.
Elguinha, no banco de trás do motorista de táxi, ordenou que estacionasse na esquina do único prédio revestido de mármore marrom, na Rua Conselheiro Portela.
- Espere e volto já – disse ao motorista.
Não precisou entrar no elevador porque Santelma, a amiga de faculdade, emergiu da porta, usando uma bermuda com as bordas esfiapadas, soltas; por cima, uma camisa igual à que Elguinha devolvera ao guarda-roupa, em obediência ao rito da mãe. As duas, no entanto, com o abraço e o beijo nas faces, juntaram a densidade do perfume de cada uma. No táxi, o motorista viu-se incensado.
- Para o Derby – ordenou Elguinha ao motorista.
A multidão ao lado do canal da Avenida Agamenon Magalhães, já sentada no asfalto, interrompeu o trânsito. Na praça, os canteiros de grama verde estavam ocupados por moços de bermuda, tênis sujos e camisas com dizeres reclamando demandas. Santelma puxou Elguinha pelo braço. Antes de sentarem no gramado ainda úmido da chuva recém-cessada, convieram que uma volta no entorno da praça, caminhando no ritmo do pouco espaço não ocupado por grupos em conversa, daria conta de suor na pele tenra, infensa a maus-tratos; assim, fariam sumir dos cabelos e da curva dos pescoços, o perfume de fragrância ostensiva, estranha ao olfato de moços educados no sorvo de patchuli.
A noite colheu as duas no meio da Avenida Conde da Boa Vista, percurso da marcha por mudanças sociais. Santelma e Elguinha, apurando curiosas as curvas de cada corpo das mulheres da PM, urdiram-nas de biquíni, sem a espessura do colete no brim cáqui severo, da farda.
- Será que elas se lembram de ir à praia? – palpitou Santelma.
- De biquíni seria difícil imaginar elas com a farda da polícia – disse a outra.
À noite, na Rua da Aurora, a multidão se comprimiu sem olhar o arrepio das águas do Capibaribe, sob a chuva fina. Um rojão estourou perto das duas. A patrulha da PM parou, pediu para que todos se sentassem no chão a fim de facilitar a identificação do responsável pelo estouro. Ninguém foi identificado. Elguinha, ao sentar-se, curvou o dorso de modo súbito; a blusa, esgarçada nas costas por uma costura imperceptível, descoseu-se, pondo a nu a penugem transparente de sua pele.
A câmara da televisão focou o local do estrondo. Rostos imberbes foram flagrados de frente, de lado; ao fundo, a placidez escura do Rio Capibaribe.
Nos jardins da casa de uma amiga, sob a coberta de um toldo, Elga Cegonha sorveu sem pressa o chá na xícara de porcelana. Pouco se importava com o ruído de moços sem rumo numa via pública. O estrugido do rojão chamou sua atenção. Viu Elguinha. Reconheceu a filha pelo lilás da blusa.
- Meu Deus! Minha filha está sendo tragada pelo leviatã...!
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