Coração, cérebro, pulmão: como a Covid-19 afeta nossos órgãos vitais
Em um ano, o coronavírus mostrou causar muito mais do que uma doença respiratória: ele afeta diferentes partes do corpo por uma mistura de ataque direto a células, alterações na circulação de sangue e uma reação inflamatória exagerada.
Mariana Alvim, BBC Brasil
Embora ainda haja muitas perguntas em aberto sobre o coronavírus que parou o mundo há quase um
ano, cientistas conseguiram neste período correr contra o tempo e trazer muitas
respostas sobre a nova doença — algumas delas surpreendentes.
Por exemplo, a de que a Covid-19, descrita desde o início
como uma doença respiratória, não ataca
apenas os pulmões.
Conforme o coronavírus foi se
espalhando pelo mundo e adoecendo mais pessoas — até aqui, infectando
pelo menos 88 milhões no planeta —, médicos e
pesquisadores começaram a constatar que órgãos tão diferentes como coração,
cérebro e rins também podiam ser afetados, às vezes
fatalmente, pelo coronavírus.
O patógeno também já causou problemas
em dedo dos pés, foi detectado no testículo e ainda nas lágrimas de pacientes —
mas é importante lembrar que ser encontrado em uma parte do corpo ou no
ambiente não necessariamente significa adoecimento ou transmissibilidade.
1. Pulmões
Apesar de afetar outras partes do corpo, ainda são "as vias respiratórias e os pulmões" os principais alvos da Covid-19,
lembra a pesquisadora Marisa Dolhnikoff, professora associada da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e coordenadora dos Estudos em
Autópsia da Covid-19 no Hospital das Clínicas da faculdade.
Tudo começa quando uma pessoa sadia
entra em contato com gotículas do vírus, como através da tosse ou espirro de
alguém infectado, ou ainda por meio do contato com uma superfície contaminada
com essas partículas. A partir daí, o vírus começa a "hackear" as
células das vias respiratórias (canais que conduzem o ar aos pulmões, como o
nariz e a traqueia) e dos pulmões, transformando-as em fábricas de coronavírus
que se espalham por mais células.
· Tosse, coriza e espirros podem surgir por conta do ataque às vias respiratórias. Esses sintomas também podem ser reflexo do acometimento dos pulmões — mas, segundo Dolhnikoff, o sinal mais claro de que este órgão vital foi afetado é a falta de ar.
Um estudo
publicado em junho na revista científica Lancet, com dados de 257 pacientes em
Nova York (EUA), mostrou que a falta de ar foi o sintoma mais
frequente na entrada no hospital, registrado em 74% dos infectados,
seguido por febre (71%) e tosse (66%).
Ainda
segundo a pesquisadora da USP, um outro sinal importante vem das tomografias
— quando elas mostram mais de 50% da área dos pulmões acometida pelo
coronavírus, este é um indicador de gravidade e de insuficiência
respiratória, que demanda suporte como a ventilação mecânica. Ambos pulmões
costumam ser afetados juntos.
Tanto nas vias
respiratórias quanto nos pulmões, o coronavírus encontra um facilitador —
células contendo receptores da proteína ECA-2, uma espécie de chave que permite
o início da infecção.
É
por isso que os pulmões são vitais — eles nos dão, literalmente, o ar que
respiramos. O órgão absorve o oxigênio externo e o distribui
para todo o corpo através do sangue e, na via contrária, recolhe o gás
carbônico dispensado após vários processos dentro do corpo.
"Quando
infectadas, as células dos alvéolos sofrem alterações importantes que levam à
sua morte, desencadeando um processo de inflamação e edema pulmonar (excesso de
líquido) que impedem as trocas gasosas, culminando com a insuficiência respiratória",
completa Dolhnikoff, cuja equipe no Hospital das Clínicas está realizando desde
o início da pandemia um método inovador de autópsias minimamente invasivas, de
forma a evitar o contágio no contato com corpos, para fins de pesquisa.
Além da infecção das células das vias respiratórias e dos
alvéolos, em uma segunda frente, os vasos sanguíneos também são atacados. Isso
leva ao aumento da coagulação e à formação de trombos (conjunto de sangue
coagulado), que dificultam a passagem de sangue nos alvéolos. Com isso, as
trocas gasosas são mais uma vez comprometidas.
Ainda no início da pandemia, em abril,
a equipe que está trabalhando com autópsias na USP publicou no periódico
científico Journal of Thrombosis and Haemostasis os resultados destas análises
em dez pacientes, demonstrando alvéolos amplamente danificados e pequenos
trombos no pulmão — cuja formação devido à Covid-19 era pouco conhecida naquele
momento.
Quando o quadro pulmonar é muito
grave, incluindo um conjunto de indicadores como a insuficiência respiratória e
a inflamação sistêmica, ele pode configurar a síndrome do desconforto
respiratório aguda (ARDS, na sigla em inglês).
2. Coração
Se os
pulmões realizam as trocas gasosas, é o coração
que bombeia o sangue com oxigênio para o corpo e que volta para os pulmões com
sangue repleto de gás carbônico.
Um estudo de
referência, publicado em fevereiro de 2020 com dados de 138 pacientes
hospitalizados em Wuhan, mostrou que 16,7% deles desenvolveram arritmia e 7,2%
lesão cardíaca aguda — ou seja, dois problemas de saúde atingindo o coração.
Aqueles que precisaram ir para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI)
apresentaram estes quadros com mais frequência.
"Na
Covid-19, o coração pode ser atingido em até 40% dos casos graves", aponta Marisa Dolhnikoff, acrescentando outras
consequências da covid-19 no coração como a miocardite (inflamação no coração),
tromboses arteriais e infarto do miocárdio.
Estudos
de várias partes do mundo mostram problemas no coração como uma das
comorbidades mais comuns entre pacientes graves infectados — um boletim do
Ministério da Saúde de dezembro revelou que, no Brasil, as cardiopatias
(doenças no coração) foram o fator de risco mais frequente entre pessoas que
morreram por covid-19 no país, seguidas por diabetes.
Dolhnikoff
explica que as células cardíacas também têm receptores da proteína
ECA-2, ativadas no ataque direto do vírus ao órgão.
Mas o
órgão pode ser afetado também pela inflamação sistêmica, reação exagerada do
corpo que leva a diversas alterações prejudiciais como a baixa de oxigênio e à
chamada tempestade de citocinas — substâncias agressivas que o sistema
imunológico libera para atacar um invasor, mas que, em excesso, podem acabar
atacando partes vitais para nossa sobrevivência, como o coração.
A partir
da autópsia e de exames referentes ao caso de uma menina de 11 anos que perdeu
a vida para a Covid-19, Dolhnikoff e sua equipe conseguiram demonstrar o ataque
do vírus a diversas células do coração, nas quais foram encontradas partículas
do vírus. A resposta inflamatória agravou o problema, levando à falência
cardíaca e morte.
Os resultados foram publicados no periódico internacional
Lancet Child & Adolescent Health.
3. Rins
Assim
como acontece com o coração, quando os rins são afetados pela Covid-19, o nível de
alerta é aumentado.
"A lesão renal é incremental,
compõe o quadro de um doente mais complexo. São doentes muito graves. Quando a
doença é avassaladora, ela é avassaladora", resume o nefrologista José
Suassuna, chefe do Setor de Nefrologia do Hospital Pedro Ernesto, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Hupe/Uerj).
No artigo publicado
no periódico Lancet envolvendo 257 pacientes em Nova York, 31% desenvolveram
lesões agudas neste órgão e precisaram das chamadas terapias de substituição
renal, que incluem intervenções como a hemodiálise — este procedimento, em
linhas gerais, substitui o órgão no trabalho de filtrar o sangue.
Neste
grupo nos Estados Unidos, 14% já tinham alguma doença crônica afetando os rins
antes da Covid-19.
"Grupos
de risco como obesos, diabéticos, pessoas com doenças cardiovasculares e idosos
muitas vezes já têm algum grau de comprometimento renal — então, quando
infectados pelo coronavírus, não partem do 0. Eles já estão na metade do
caminho e caminham mais rapidamente para a insuficiência renal aguda e para a
necessidade de suporte", explica Suassuna, destacando porém que há casos
em que o paciente não tem fatores de risco mas tem os rins comprometidos.
De acordo
com o nefrologista, os rins também têm receptores ECA-2, mas as evidências até
agora indicam que possivelmente não é este ataque direto do vírus ao órgão o
principal motivo de acometimento dos rins.
Uma
evidência disso é a conexão entre os pulmões e o rins, a chamada cross talk entre os órgãos.
"É
uma ligação cruzada, a situação em que o acometimento de um órgão determina o
de outro. Na covid-19, isso tem se mostrando entre rins e pulmões, assim como
pulmões e coração. O envolvimento pulmonar mais grave se associa a um risco
muito maior para os rins. Há uma associação grande entre entubar e a
insuficiência renal", aponta Suassuna, explicando que quando há esta
insuficiência nos rins, o paciente deixa de urinar, precisando de suporte.
"A Covid-19 nos deixa com uma oxigenação como se
estivéssemos subindo o Himalaia, mesmo estando a nível do mar. Uma parte
funcional do rim, que ajuda a produzir a urina, já vive como se estivesse no
Everest — no que a gente chama de hipoxia, uma oxigenação muito baixa",
diz o médico, também professor da UERJ.
"O rim é um órgão muito sensível
às quedas de oxigenação prolongadas porque já vive na beira do precipício. E à piora da oxigenação se soma
a tempestade de citocinas,
um mecanismo importante da disseminação do dano da covid do pulmão para o resto
do corpo."
Apesar de seu adoecimento ser um
indicador de gravidade, os rins também podem ser afetados em casos mais leves,
explica Suassuna. Entretanto, talvez isso nunca se manifeste em sintomas, mas
apenas exames específicos de urina e de alteração da função renal.
"Os rins, em qualquer
doença, sofrem em silêncio — e Covid-19 não é uma exceção", explica Suassuna, acrescentando que
esse órgão é afetado bilateralmente, ou seja, adoece tanto do lado esquerdo
quando direito.
"Não tem grande manifestação de
sintomas, a maior parte dos sinais só aparece no laboratório. Temos pacientes
iniciando diálise que não sentem nada, apenas quando já têm menos 10% da função
renal. De repente, param de urinar."
4. Fígado
Exames
também já detectaram, em alguns pacientes, alterações no fígado — que tem entre
suas funções eliminar toxinas do corpo, regular o açúcar no sangue e ajudar na
digestão de gorduras.
Entretanto, diferente de outros
órgãos, tais alterações não necessariamente significam o adoecimento do órgão.
"As enzimas hepáticas
(substâncias produzidas pelo órgão) estão elevadas em cerca de 15 a 60% dos
casos de COVID-19, o que sugere acometimento do fígado. Porém, estas alterações das
enzimas em geral não provocam sintomas", explica o hepatologista
Edmundo Lopes, médico do Hospital das Clínicas e professor da Universidade
Federal de Pernambuco (UFPE).
"Apesar destes distintos
mecanismos de agressão ao fígado durante a Covid-19, ele não é comumente nem
intensamente comprometido, como ocorre com outros órgãos, como os pulmões, o
coração e os rins", diz. "As explicações para esta 'menor' agressão
ao fígado ainda não estão bem elucidadas."
Os distintos mecanismos de agressão
mencionados por Lopes passam, mais uma vez, pelos efeitos da inflamatória
sistêmica no corpo e também, no caso desse órgão responsável por lidar com
substâncias potencialmente tóxicas, por eventuais danos provocados pelos
medicamentos usados contra a Covid-19.
"As evidências sugerem que o processo inflamatório
(tempestade de citocinas) parece ter um papel relevante na agressão ao fígado,
já que os pacientes mais graves e que apresentam maiores indícios de atividade
inflamatória nos exames laboratoriais são os que apresentam mais frequentemente
e mais intensamente alterações das enzimas hepática", escreveu o
hepatologista por e-mail à BBC News Brasil.
5. Cérebro
Se tem um
órgão que os entrevistados dizem estar rodeado de incógnitas sobre seu
acometimento pela Covid-19, é o cérebro.
Fato é
que diversos estudos e relatos de casos já mostraram que ele pode ser afetado,
dos quadros leves aos graves.
A
pesquisadora Clarissa Yasuda, médica e professora do departamento de neurologia
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que o diga: ela mesma teve
Covid-19 em agosto e conta ainda sentir consequências relacionadas
ao cérebro, como sono, fadiga e alterações na memória.
Ela e
colegas publicaram em outubro um estudo em estágio pré-print (sem a chamada
revisão dos pares, etapa padrão em que outros especialistas analisam um estudo
e decidem se ele será publicado ou não em uma revista científica) com dados
sobre 81 pessoas que tiveram Covid-19 leve e se recuperaram.
Esses
voluntários foram submetidos a exames de ressonância magnética, que detectaram
alterações no córtex, a parte mais externa do cérebro e fundamental para
processos envolvendo a memória, linguagem, entre outros.
Questionários
e testes cognitivos também mostraram que, em média 60 dias após o diagnóstico
da covid-19, os pacientes ainda apresentavam dor de cabeça (40%), fadiga (40%),
alteração de memória (30%), ansiedade (28%), depressão (20%), perda de olfato
(28%) e paladar (16%), entre outros.
Aliás,
Yasuda lembra que a perda destes sentidos é considerada pelos especialistas um
sintoma neurológico — precisamos do cérebro para sentir gostos e cheiros.
"Acho
que não estava na conta de ninguém imaginar que pessoas que não foram
internadas, que seriam quadros 'leves', pudessem ficar com uma gama de
alterações neurológicas incapacitantes, como observamos não só aqui mas no
mundo inteiro", diz a neurologista, fazendo a ressalva de que o grupo de
voluntários estudados foi formado por pessoas que já estavam relatando sintomas
neurológicos, então há uma inclinação de que estes sejam mais frequentemente
registrados do que se o estudo envolvesse uma população mais ampla.
"Além
desses casos leves (que estão mostrando consequências prolongadas), há o grupo
de alterações neurológicas por Covid-19 que surgem na fase aguda e que podem
ser bem graves — como derrame, encefalite, convulsão e redução
do nível de consciência. Em alguns casos, os derrames aumentam a
chance de AVC (acidente vascular cerebral). Não sabemos se estes efeitos serão
transitórios ou se deixarão sequelas."
Parte da
equipe que está trabalhando com autópsias no Hospital das Clínicas da FMUSP, o
médico Amaro Nunes Duarte Neto relata que uma alteração muito comum observada
nos cérebros de pessoas que morreram após a infecção pelo coronavírus é a lesão
dos neurônios.
Isto
porque, como em outros órgãos, os efeitos da Covid-19 não necessariamente
ocorrem devido ao ataque direto do coronavírus, mas sim pelas consequências da
resposta inflamatória do corpo e de alterações na circulação do sangue, entre
outros.
Por exemplo,
Duarte Neto relata também a observação, nas autópsias, de microsangramentos nos
vasos que irrigam o órgão, além da hipertrofia dos astrócitos — células em
torno dos vasos cerebrais e que dão suporte fundamental para os neurônios.
Na
publicação em pré-print da qual Yasuda foi uma das autoras, a equipe demonstrou
que os astrócitos foram o principal alvo do coronavírus no cérebro. Isto também
a partir de 26 autópsias minimamente invasivas, realizadas por pesquisadores da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
Ainda
assim, "o conhecimento sobre o mecanismo de lesão do vírus Sars-CoV-2 no
sistema nervoso central ainda é pouco esclarecido", diz o pesquisador da
USP.
A
professora Clarissa Yasuda concorda.
"É
muita coisa que a gente não sabe, muita coisa para ser estudada: o quanto
desses quadros neurológicos tem um componente inflamatório, o quanto é
autoimune, o quanto é um ataque direto do vírus. Ninguém tem uma resposta, mas
acho que é uma combinação disso tudo."
Veja: Trabalho, renda e
vacina são destaques na resistência imediata https://bit.ly/35deEMX
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