08 janeiro 2021

Quebrado ou não?

Quando um país quebra?

Não estamos em insolvência externa, tampouco sob risco iminente de hiperinflação

Nelson Barbosa, Folha de S. Paulo

 

A última besteira presidencial reacendeu uma polêmica: quando um país quebra? Há pelo menos duas visões em economia: uma consensual, outra controversa.

Começando pelo consenso, um país quebra quando não consegue pagar seus compromissos em moeda estrangeira via mecanismos de mercado. Traduzindo do economês, quando faltam dólares e o governo é obrigado a parar de pagar sua dívida externa ou recorrer a empréstimos emergenciais no FMI e em outros governos.

O Brasil já “quebrou” várias vezes no sentido acima. Os episódios mais recentes foram a crise da dívida externa dos anos 1980 (fim da ditadura militar) e as crises cambiais do governo Fernando Henrique (fim do governo tucano), mas não diga isso a alguns colegas de bico comprido que eles ficam ofendidos.

O segundo tipo de “quebra” acontece em moeda doméstica e é mais controverso. Quando o governo não consegue rolar sua dívida lançando novos títulos, ele tem que pagar os vencimentos emitindo moeda. Se a emissão for excessiva, pode haver aumento explosivo de preços, o que nós, economistas, chamamos de hiperinflação, acabando com o valor da moeda.

A hiperinflação “quebra” o governo pela perda de padrão monetário, tornando necessário criar outra unidade de conta e meio de pagamento, geralmente ancorada em ativo real (ouro e prata no passado) ou externo (dólar ou euro hoje).

Agora a controvérsia: se considerarmos Tesouro e Banco Central como uma coisa só, por definição o governo não quebra. É sempre possível pagar todo e qualquer vencimento de dívida interna emitindo moeda. Alguns jovens (e velhos) economistas redescobriram esse truísmo contábil para dizer que o governo nunca quebra. Estão corretos do ponto de vista contábil, errados do ponto de vista econômico.

Se a emissão de moeda for excessiva, o valor da moeda cairá, os preços explodirão e o Estado perderá capacidade de emissão monetária. O Brasil quase viveu isso no fim do governo Sarney, quando a inflação chegou a 84% ao mês e o Plano Collor evitou a hiperinflação com congelamento de recursos nos bancos. Foi necessário ter âncora cambial e endividamento externo para sair do atoleiro inflacionário (perguntem ao “Larida”).

Mas como saber se a emissão de moeda é excessiva? Quem diz é a sociedade. Podem ocorrer episódios de estagnação, com inflação baixa e taxa de juro zero, em que o governo emite grande quantidade de moeda sem causar inflação.

Na “armadilha da liquidez”, as pessoas preferem entesourar moeda em vez de títulos porque, com juro zero, há perspectiva de perda de capital se e quando os juros subirem. Keynes explicou a questão há quase 90 anos, mas ela voltou a ser relevante recentemente (o nome atual é “estagnação secular”).

O fato de hiperinflação ser altamente improvável no mundo de hoje levou alguns colegas mais empolgados a decretar que inflação não é nunca e em nenhum lugar resultado de emissão monetária excessiva. Ironicamente, para rebater Friedman, adotam a arrogância de Friedman, estando igualmente equivocados.

Emissão excessiva de moeda é uma das causas possíveis de inflação, não a única causa possível.

Hiperinflação “quebra”, sim, um país, mas isso não quer dizer que hiperinflação é coisa recorrente ou ameaça iminente. Bom senso e pragmatismo ajudam a discernir custos, benefícios e riscos.

Voltando à frase de Bolsonaro, o Brasil não está quebrado. Não estamos em insolvência externa, tampouco sob risco iminente de hiperinflação. Mas o presidente merece um desconto, pois ninguém tem uma equipe econômica como a atual impunemente.

Veja: Trabalho, renda e vacina são destaques na resistência imediata https://bit.ly/35deEMX

Nenhum comentário: