Morte acidental de diretora por
Alec Baldwin escancara precarização na indústria cultural
Disparo no set de filmagem de 'Rust' não
foi mero acidente ou resultado de erros individuais
Fábio Palácio - Jornalista, doutor em ciências da comunicação pela
ECA/USP e professor de jornalismo da UFMA (Universidade Federal do Maranhão)
Folha de S. Paulo
O disparo, pelo
ator Alec Baldwin, de uma arma carregada durante as gravações do filme
"Rust", que causou a morte
da diretora de fotografia Halyna Hutchins, reflete a degradação das
condições de trabalho na indústria do entretenimento, em que tentativas de
reduzir custos e acelerar as produções levam a jornadas excessivas dos
profissionais e ao desrespeito de protocolos de segurança nos sets.
Na semana
passada, um grave acidente com uma arma de fogo durante as gravações de um
filme nos Estados Unidos pôs a nu a precarização das condições de trabalho na
indústria cultural.
O acidente
envolveu o ator Alec Baldwin, que disparou uma
arma carregada por engano no set de um filme de ação. O disparo
atingiu a diretora de
fotografia do filme, Halyna Hutchins, que morreu instantes depois.
A princípio, tudo pareceu mero acidente, mas revelações
feitas pela imprensa de Los Angeles mostram que o caso é só a ponta de um
incômodo iceberg: a degradação das condições de trabalho dos empregados na
indústria do entretenimento.
As chamadas
indústrias criativas movimentam hoje grande parcela da produção de bens e
serviços. Em meados da década passada, a economia da cultura já movimentava 7%
do PIB mundial e era responsável por 6% dos empregos formais. Muitos desses
empregos estão ligados à produção cinematográfica.
O cinema foi a
primeira arte eminentemente industrial. Podemos perceber isso, desde logo,
prestando atenção aos créditos de um filme. Surge ali um verdadeiro batalhão de
profissionais que inclui cenógrafos, figurinistas, iluminadores, fotógrafos,
câmeras, continuístas, designers gráficos, assistentes de gravação e direção e
uma série de outras funções. Eles são os operários da indústria cultural.
Como vivem essas
pessoas? Quais são suas reais condições de vida e de trabalho? Muitas vezes
isso permanece oculto à maioria de nós, espectadores dos produtos dessa
indústria. O acidente ocorrido nas gravações do filme "Rust", no
entanto, lança luz sobre a realidade do trabalho na indústria cultural.
O filme era
gravado em um set de filmagens no estado americano do Novo México. Ali tem
florescido, desde o início dos anos 2000, um importante polo cinematográfico,
porém mais modesto que o de Hollywood, em Los Angeles.
O polo do Novo
México emprega trabalhadores residentes na região, principalmente nas cidades
de Albuquerque e Santa Fé. Os filmes rodados no estado são, em geral, as
chamadas produções de baixo orçamento. Os empregados nessas produções trabalham
em turnos punitivos. Essa situação tem motivado muitas greves e protestos pela
melhoria das condições de trabalho.
Vale lembrar que
esse setor também foi profundamente atingido pela pandemia. Um fato que, aliás,
aconteceu também no Brasil, levando à
aprovação —após muita luta— da Lei Aldir Blanc, que instituiu um
auxílio emergencial destinado aos trabalhadores da cultura.
Vale lembrar que
o Novo México, embora tenha uma população pequena, possui uma das maiores taxas
de pobreza dos Estados Unidos. Isso faz com que a população local, mesmo quando
não trabalha diretamente no setor, valorize muito a indústria de filmes, que
vem crescendo e é uma alternativa de emprego.
Foi nesse cenário
em que, em 21 de outubro, aconteceu a tragédia nas gravações de
"Rust", uma trama de faroeste. De acordo com a polícia de Santa Fé,
um assistente de direção do filme pegou uma das três armas disponíveis para as
filmagens e a entregou ao ator Alec Baldwin, avisando que a
arma estava descarregada. Pouco depois, Baldwin apertou o gatilho.
O projétil
atingiu a diretora de fotografia Halyna Hutchins, atravessou seu corpo e
acertou também o diretor Joel
Souza. Halyna morreu.
Nesse tipo de
produção, armas de verdade costumam ser usadas, em razão do realismo que elas
proporcionam. Isso apesar de muitos técnicos em efeitos visuais dizerem que os
benefícios das armas reais não sejam tão grandes e que armas com balas de
borracha ou com tiros de festim poderiam ser usadas como alternativa.
Durante as
gravações, quem cuida das armas é um profissional chamado armeiro. Nesse caso, havia uma
armeira: uma jovem de 24 anos, filha de um profissional experiente,
que também trabalhou como armeiro em outras produções.
Os protocolos de
segurança indicam que uma arma carregada não devia ter sido entregue ao ator.
Portanto, à primeira vista, o acidente pode ter resultado de negligência da
armeira ou do assistente de direção ou dos dois.
Segundo o jornal
Los Angeles Times, diversas pessoas afirmaram em seus depoimentos que o
assistente de produção Dave Halls era um profissional experiente e focado. Uma
de suas funções era checar a segurança das armas. Após o acidente, ele disse
que não sabia que a arma estava carregada com cinco projéteis. Revelações dos
últimos dias dão conta de que ele já havia se envolvido em outro acidentes em
trabalhos anteriores.
A jovem armeira
Hannah Reed estava em seu segundo trabalho e era inexperiente. Em um podcast
feito cerca de um mês antes do acidente, ela disse que não tinha certeza se
estava preparada para a função, pois não sabia carregar armas muito bem. Nesse
caso, fica a pergunta: por que foi contratada?
Alguns outros
detalhes dessa história podem ajudar a responder essa pergunta. Primeiro fato
importante: cinco dias antes do acidente, um dublê de Alec Baldwin disparou
acidentalmente dois tiros depois de ser informado que a arma não estava
carregada.
Esse fato deveria
ter sido suficiente para interromper as gravações pelo menos até que uma
sindicância fosse concluída. Isso, porém, não foi feito, embora a equipe do filme
tenha chegado a enviar mensagens preocupadas à produção, levantando a questão
da segurança das armas no set.
O que fica claro
é que a inspeção das armas e outros protocolos de segurança —que são praxe
nesse tipo de indústria— não eram seguidos pelos produtores. Um membro da
equipe de câmeras relatou ao Los Angeles Times que "não havia reuniões
sobre segurança. Não havia a certeza sobre se isso poderia ocorrer
novamente. Tudo o que eles queriam fazer era correr, correr, correr [com as
gravações]".
Além disso,
problemas já vinham se acumulando no set havia vários dias. Apenas seis horas
antes do acidente fatal, meia dúzia de operadores de câmera e seus assistentes
cruzaram os braços para protestar contra as condições de trabalho no filme.
As reclamações da
equipe eram sobre o excesso de horas de trabalho, longos trajetos a serem
percorridos e atrasos nos contracheques. Um dos membros declarou que o grupo
também estava preocupado com a segurança no set.
Contudo, a
questão que mais pesava era a distância do local das filmagens. A equipe queria
pernoitar em hotéis em Santa Fé, a cidade mais próxima. A produção a princípio
se comprometeu com essa demanda, mas depois recuou.
Com isso, boa
parte dos trabalhadores, residentes em Albuquerque, mais distante do set, tinha
que viajar 160 km todos os dias (80 km de ida, 80 km de volta). Isso irritou os
trabalhadores da produção. Eles estavam preocupados que pudesse haver um
acidente em um deslocamento tão longo, depois de trabalharem 12 ou 13 horas nas
filmagens.
A diretora de
fotografia Halyna Hutchins, que terminaria atingida pelo disparo acidental,
vinha defendendo condições mais seguras e chegou a chorar quando a equipe de
filmagem decidiu parar as gravações reivindicando melhores condições de
trabalho.
Os operadores de
câmera que cruzaram os braços eram todos sindicalizados na Iatse (International
Alliance of Theatrical Stage employees). Este é o forte sindicato dos
trabalhadores na indústria teatral e cinematográfica norte-americana.
Quando eles
decidiram cruzar os braços, vários membros da equipe que não eram
sindicalizados apareceram para substituí-los. Com isso, um dos produtores solicitou
aos trabalhadores filiados ao sindicato que deixassem o set e ameaçou chamar a
segurança para tirá-los de lá. Os tiros ocorreram apenas seis horas depois que
os câmeras deixaram o local.
O irônico é que
tudo isso aconteceu poucos dias depois de o sindicato ter fechado um acordo com
os estúdios para evitar uma greve da categoria. Um dos itens colocados na pauta
de negociações dizia respeito às condições de trabalho. O acordo foi feito mas,
pelo visto, a produção do filme não se adequou a ele.
Agora, a
tendência é que a responsabilidade pelo acidente termine recaindo sobre a
armeira ou o assistente de produção —ou sobre os dois. Claro que eles podem ter
parcela de responsabilidade, mas, quando analisamos as condições e o contexto
do acidente, fica claro que houve uma cadeia de erros, ocasionados pela
tentativa dos produtores de diminuir custos, seja reduzindo o tempo no set de
produção (o que leva a atropelos e negligência), seja contratando trabalhadores
de menor qualificação, pagando-os mal e fazendo-os trabalhar mais.
Assim, aquilo que
parece mero acidente ou, no limite, resultado de erros individuais revela-se,
na verdade, uma tragédia evitável, determinada pelas condições precárias em que
o trabalho como um todo vinha sendo realizado.
Essa é uma
realidade não apenas da indústria cultural norte-americana, mas de uma série de
empreendimentos do mesmo tipo em vários lugares do mundo. Isso inclui nosso
país, que também já experimentou tragédias em locais de cultura e lazer, sendo
o caso da boate
Kiss, no Rio Grande do Sul, apenas mais um lamentável exemplo.
Veja: Em entrevista, a poesia libertária de Cida Pedrosa https://bit.ly/3BKdwhd
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