23 julho 2022

Crônica deste sábado

Pedacinho de corda de lã
Luciano Siqueira 

São quatro pedaços de uma corda de lã usados para prender as quatro cortinas que nos protegem do sol, estendidas em sequência no janelão da varanda.

Logo cedo pela manhã, são soltas sobre a rede para que as cortinas sejam abertas e evitem que o sol atinja a tela de Teresa Costa Rêgo e mesmo queime a alvura das poltronas postas de frente para TV.

Mas quando o sol já não é ameaça, voltam a amarrar as cortinas, pois é preciso que a claridade natural da vida ilumine a sala.

Há um pedaço de corda de lã diferente dos outros: meio que afrouxado.

Tenho certeza de que justamente esse pedaço diferente dos demais tem vida própria. Ora se esconde por debaixo de uma das pequenas almofadas que uso para repousar a cabeça enquanto leio na rede, ora foge do meu ângulo de visão.

Tenho que procurá-lo. 

Às vezes o encontro no chão rente à parede. Deve ter pulado da rede para se separar dos demais e se fazer original.

Ou para se sentir valorizado, diferente dos outros, pois não encontradiço à primeira vista.

Outro dia o encontrei enrolado no pequenino tronco de um cróton, este também escondido entre os demais jarros de planta sobre a mesa de tampo de vidro num canto da varanda.

Hoje me dei conta que o pequenino pedaço de corda de lã foi mais esperto e conseguiu, sabe-se lá como, se ocultar enroladinho bem próximo ao punho da rede.

E eu que já o havia dado como perdido - talvez levado pelo vento, transposto o janelão da varanda e indo se alinhar num dos andares de baixo daqui do prédio ou lá na garagem do segundo piso -, o surpreendi quando me deitava para ler um poema de Drummond. 

Precisamente esses versos de “A Máquina do Mundo":

"Abriu-se em calma pura, e convidando/quantos sentidos e intuições restavam/a quem de os ter usado os já perdera".

O poema, a confortável rede, a claridade branda vinda da rua e o sentimento de êxito pela busca intrigante, e quase por acaso bem sucedida do pedacinho de corda de lã, me fazem, enfim, compreender que todas as coisas têm vida, pois todas as coisas são feitas de átomos reunidos em moléculas e se tornam rígidas porque suas moléculas conflitam entre si produzindo o contraditório equilíbrio necessário à higidez. 

Sim, nesse infinito e misterioso Universo todas as coisas têm vida e dialogam na linguagem possível. Por isso existem. Nós humanos prepotentes, que nos julgamos acima de todas as coisas, é que não compreendemos isso.

Leia também: ‘Bonequinha de louça’ https://bit.ly/3o1UX3t

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