31 julho 2022

Uma crônica de Rubem Braga

Falamos de carambolas

Rubem Braga

 

Falamos sobre sorvetes, eu disse que tinha tomado um ótimo, de carambola.

– Não sei que graça você acha em carambola.

Falamos sobre carambola, discutimos sobre carambola; passamos a romã e finalmente a jambo; sim, há o jambo moreno e o jambo cor-de-rosa, este é muito sem gosto; aliás, a mais bonita de todas as mangas, a manga-rosa, não tem nem de longe o gosto de uma espada, de uma carlotinha.

Lembrei a história contada por um amigo. Mais de uma vez insistira com certa moça para que fosse ao seu apartamento. Ela não queria ir. Ele um dia telefonou: “Vem almoçar comigo, mando matar uma galinha, fazer molho pardo…” achou que a recusa da moça era menos dura. E insistiu mais: — Vem… tem manga carlotinha…

– Manga carlotinha? Mentira!

E a moça foi. Refugaria talvez promessa de casamento, se irritaria com o presente de jóia, mas como resistir a um homem que tem galinha ao molho pardo com angu e manga carlotinha, e faz um convite tão familiar?

Ela não achou muita graça na história. Aliás não simpatizava com aquele amigo meu.

Ficamos um instante em silêncio. Comecei a mexer o gelo dentro do copo com o dedo.

É um hábito brasileiro, mas até que não é meu uso; inclusive, para falar a verdade, acho pouco limpo; entretanto eu mexia com o indicador o gelo que boiava no uísque, e como seria insuportável não fazer a pergunta, ergui os olhos e fiz: — Mas, afinal, o que foi que o médico disse?

E ela encolheu os ombros. Repetiu algumas palavras do médico, principalmente uma: Sindroma… teve uma dúvida: — É síndroma ou sindroma?

Eu disse francamente que não sabia; apenas tinha a impressão de que a palavra era feminina; mas também podia ser masculina; era paroxítona ou átona, mas também podia ser proparoxítona ou esdrúxula; e, ainda por cima, tanto se podia dizer sindroma como síndrome, e até mesmo sindromo.

Em todo o caso — juntei — não era bem uma doença; era um conjunto de sintomas… eu falava assim não para mostrar sabença, mas para mostrar incerteza, e ignorância da verdade verdadeira — ou até uma certa indiferença por essas coisas de palavras.

Confessei-lhe que há muitas palavras que evito dizer porque nunca estou muito seguro da maneira de pronunciar. Por outro lado há palavras que a gente só conhece porque são usadas em palavras cruzadas. Até existe uma cidade assim, uma cidade de que ninguém se lembraria jamais se não tivesse apenas duas letras e não fosse terra de Abraão ou cidade da Caldéia: UR. Se os charadistas do mundo inteiro formassem uma pátria a capital teria de ser UR. Eu falava essas bobagens com volubilidade. Ela disse: — Todo mundo, quando tem uma doença como essa minha, procura se enganar. Eu, não.

Chamei-a de pessimista, aliás ela sempre fora pessimista.

– Não é pessimismo não. É…

Senti que ela ia dizer o nome da doença, e que tudo estaria perdido se ela pronunciasse aquele nome; seria intolerável.

– Você sabe muito bem o que é.

Chamei o garçom, pedi mais um uísque e mais um Alexander’s.

– Sabe quem eu vi hoje?

Era ela que mudava de conversa; senti um alívio. E falamos, e falamos… Eu admirava mais uma vez sua cabeça, os olhos claros, a testa, sua graça tocante.

Era insuportável pensar que alguém assim pudesse estar condenada. Dentro de mim eu sabia, mas não acreditava. Tive a impressão de que sua cabeça estremecia como uma flor. Um anjo se movera junto de nós, na penumbra do bar, era o anjo da morte; e a flor estremecera.

– Acho que o bale russo precisa se renovar…

Ela achava que não era justo falar em virtuosidades acrobáticas; o que havia era uma renúncia a todo expressionismo e a toda pantomima, a beleza do bale puro… E no meio da discussão me chamou de literato; mas juntou logo um sorriso tão amigo. Eu disse o que talvez já tivessse dito uma vez: — Foi uma pena você não ter estudado bale.

Pensava no seu corpo de pernas longas, na linha dura das ancas, nos seios pequenos, e a revia por um instante, toda casta, nua. Ela me censurou por beber tão depressa, e de repente: — E esse seu bigode agora está horrível.

– Por que você não toma conta de mim, não dirige meus uísques e meus bigodes?

Ela riu, e deu uma risada tão alegre como antigamente.

Como as pessoas costumam dizer, uma risada de cristal. Clara, alegre, tilintante como o cristal. O cristal, que se parte tão fácil.

[Ilustração: Henri Matisse]

Veja: Literatura: uma agulha na estupidez https://bit.ly/3Pz31ot

Nenhum comentário: