BERTOLT BRECHT
Os 125 anos de nascimento do (re)criador do teatro épico
Zeca Viana/revista Continente
Entre narrativas fragmentadas,
perseguições políticas, ataques à cultura, fake
news e a trágica romaria dos terroristas “patriotas” que
vandalizaram os prédios dos três poderes numa tentativa de golpe de estado, vez
ou outra sou levado pela imaginação entre tantos delírios neoliberais e me
pergunto: o que Brecht pensaria sobre tudo isso? O que diriam seus poemas sobre
o atual momento histórico? Qual seria o papel da montagem e as novas funções
estéticas, técnicas e sociais que poderiam revelar o papel da arte contra a
barbárie na era digital? Qual seria a sua relação com as redes sociais? Enfim,
o que pensaria Bertolt Brecht hoje?
Revisitar o
pensamento de Brecht é, antes de tudo, um exercício imanente à sua própria
obra; novos cenários, novos personagens, novos figurinos, novas ontologias,
novos objetos, músicas, gestos, técnicas, emoções, ações... E, principalmente:
novas funções sociais para as artes motivando novas visões de mundo;
disruptivas, friccionais, dialéticas… Brecht é um marco para a construção de
uma forma emancipatória, crítica e pedagógica do fazer artístico e – como uma pedra
filosofal jogada no profundo lago da História – ainda reverbera ondas de
inspiração nos dias de hoje.
Eugen
Bertholt Friedrich Brecht nasceu na cidade alemã de Augsburg, localizada ao
extremo sul do estado alemão da Baviera, no dia 10 de
fevereiro de 1898. Neste 2023, comemoramos os 125 anos do seu
nascimento. Brecht está cada vez mais presente no teatro contemporâneo e nas
artes; a contemporaneidade do seu pensamento atualiza-se pela versatilidade e
sofisticação de uma percepção aguda das engrenagens sociais que compõem a
cultura e, consequentemente, a arte e a política que marcaram o século XX. Se –
parafraseando o filósofo e poeta espanhol George Santayana – é preciso
conhecer o passado para não repeti-lo; Brecht também fala de nós – e para
nós – ao vivenciarmos o atual flerte entre o fascismo, chauvinismo, culto
ao militarismo e as fake news com repercussões
sem precedentes na democracia contemporânea.
Assim, como
em sua própria produção – que é marcada por vários pontos de partida,
multifacetadas aberturas, mas nunca fechamentos –, podemos pensar sobre o
impacto de Brecht no nosso momento histórico, político e cultural, através das
formas críticas de sua montagem teatral épica e do “estranhamento” como método.
Na transversalidade da sua trajetória é possível construir novos olhares sobre
o nosso papel social – como cidadãos, artistas, educadores, trabalhadores – na
(re)construção cultural constante com foco na solidariedade e justiça social.
Precisamos renascer das cinzas todos os dias. E esse renascimento deve,
necessariamente, ser intermediado por uma questão fundamental: quais as funções
que a arte pode adquirir contra a barbárie? Aqui, vamos passear como um flâneur pelas
encruzilhadas, rizomas, praças e palcos da vida e do pensamento de Brecht; pensaremos
com ele as relações entre vida, arte, política e barbárie. E, fundamentalmente,
desvelaremos um dos conceitos-chave do teatro épico brechtiano: a refuncionalização técnica
dos meios de produção para uma arte, antes de tudo, emancipatória.
O JOVEM BRECHT
Sua biografia – assim como sua obra – revela uma forma bastante
particular de encarar o papel da arte. Sua trajetória é marcada por
idiossincrasias multifacetadas; percursos abertos, itinerários singulares,
trilhas que revelam diversas influências, divergências e confluências
estéticas, políticas e intelectuais. Filho de uma família aristocrata alemã,
teve apenas um irmão; Walter Brecht, que se tornaria professor na Institut für
Papierfabrikation na Technische Universität Darmstadt. Brecht diria, anos mais
tarde, que ele mesmo era um “traidor da sua classe de origem”. Seu pai,
Berthold Friedrich Brecht, era um homem religioso, conservador e exigente com a
formação do jovem Brecht. Sua mãe, Sophie Wilhelmine Friederike
Brezing Brecht, era católica protestante, vertente cristã em que o filho
foi batizado. Vivia num ambiente altamente protegido, controlado e com caminhos
bem definidos para a construção do seu futuro; algo que mudaria drasticamente
no decorrer da sua vida, marcada por inúmeras mudanças, rupturas, exílios e
reencontros.
Apesar da
aparente calmaria e previsibilidade características de uma vida
pequeno-burguesa alemã na virada para o século XX, o pequeno Bertolt era uma
criança nervosa e bastante inquieta. Ainda pequeno foi diagnosticado com uma
condição cardíaca que o impedia de realizar atividades de alto impacto físico,
como esportes e corridas. Inclinou-se para atividades intelectuais, como jogos
de tabuleiro – a exemplo do xadrez, paixão que está registrada em um momento
icônico ao lado do futuro amigo Walter Benjamin – além de atividades de leitura
e escrita, produzindo, desta forma, o seu primeiro texto ainda em 1914, aos 15
anos de idade. Achava a escola pública entediante, sendo transferido para um
instituto de ensino protestante, onde se impressionou com a leitura da Bíblia,
da qual diria anos mais tarde: “este é um livro incomparavelmente lindo, forte,
mas, cheio de fúria”. Apesar de ateu, as imagens, personagens, símbolos e cenas
narradas na Bíblia tiveram um grande
impacto intelectual sobre o jovem Brecht, resultando em um dos seus primeiros
textos, intitulado A Bíblia.
Outra
influência notável em sua trajetória escolar é a Feira Anual de Artes de
Augsburg, onde teve contato com peças de teatro ao ar livre com
dançarinos, mágicos, palhaços, música etc. Tudo o que alguém da sua idade
gostava. Ainda nos anos colegiais revela o desejo de ser um poeta reconhecido;
então funda o jornal escolar colaborativo Die Ente,
tornando-se, cada vez mais, o centro incontestável do seu ciclo de amizades.
Este, claramente, é o primeiro indicativo do seu futuro senso de trabalho
coletivo; Brecht buscava colaboradores que, depois, se tornariam, também,
amigos íntimos ou amantes. Elisabeth Hauptmann (escritora), Helene Weigel
(atriz), Kurt Weill (músico), Hanns Eisler (músico), Erich Engel (diretor de
cinema e teatro), Carl Zuckmayer (escritor), Caspar Neher (cenógrafo) são
alguns dos muitos nomes que colaboraram com Brecht. Assim foi durante toda a
sua vida; de Hamlet a Zaratustra, do teatro popular das cervejarias alemãs à
música dos cabarés, seus caminhos intelectuais se construíram por várias
trilhas estéticas, coletivas, amorosas e políticas.
SOLDADO MORTO
Em 1919, Brecht vivencia a primeira de muitas experiências
traumáticas; e que revelaria as engrenagens sociais da barbárie produzida por
potências econômicas que marcariam a primeira metade do século XX: é convocado
pelo exército alemão para atuar como enfermeiro psiquiátrico em um hospital de
campanha durante a Primeira Guerra Mundial (1914–1918). Apesar de não servir
diretamente no campo de batalha, viu de perto o resultado da máquina ideológica
trucidando indivíduos; tanto fisicamente, quanto mentalmente. Corpos mutilados,
violência normalizada, ideologias totalitárias e estupidez... Guardou retratos,
personagens, cenas e cicatrizes da barbárie na memória. Estabelecido na cidade
de Munique, escreve o poema Lenda do soldado morto, uma sátira
ao patriotismo exacerbado e a todos os falsos moralismos que estão na base do
fascismo. O texto fala sobre um soldado morto que é desenterrado para lutar
novamente na guerra e morrer, novamente, como “herói”.
Denunciar a
deformação ideológica, a perversidade econômica e política da sociedade
burguesa se tornaram um dos seus principais temas. No teatro recebe influências
diversas de nomes como Friederich Hebbel (poeta e dramaturgo), Erwin Piscator
(diretor teatral), Mei Lan-Fang (ator), Benjamin Franklin Wedekind (ator e
dramaturgo), Constantin Stanislavski (ator e diretor teatral), Vsevolod
Emilevitch Meyerhold (diretor teatral), Viktor Chklovski (formalista russo,
conceituou o termo estranhamento), entre outros.
Nesse período, Brecht vive as agitadas movimentações sociais da República de
Weimer, aproximando-se, assim, de ideais de esquerda. Revela-se um leitor de
obras que expõem a luta de classes e a exploração da classe proletária como Das
Kapital (O capital), de Karl Marx. Mesmo
assim – pela sua leitura idiossincrática e pelo teor particular de algumas de
suas peças –, torna-se, ele mesmo, suspeito para alguns grupos comunistas.
De fato, as
contradições imanentes do sistema produtivo capitalista se abriam aos olhos de
Brecht em seu caráter coercitivo, violento e predatório: afinal, aliado ao
chauvinismo reacionário, estes foram os combustíveis substanciais que inflamaram
– e ainda inflamam – a chama do fascismo que incinerou a Alemanha e vem se
engendrando como uma serpente na era digital.
TEATRO ÉPICO
Após o fim da Primeira Guerra Mundial, aos 26 anos, Brecht já era
pai de três filhos – fruto de três relacionamentos diferentes –, mas ainda não
tinha se estabelecido em nenhuma profissão regular. Passou por constantes
problemas financeiros, porém, como diziam os amigos mais próximos, parecia não
ter nenhum medo do futuro. Brecht continua trabalhando com teatro e, no fim dos
anos 1920, alcança um enorme sucesso de público com a Ópera dos três
vinténs. Com o feito, compra uma casa em Uttinh, no Lago Ammer,
onde passa a viver, trabalhar e ganhar notoriedade no cenário artístico alemão.
Em Berlim,
Brecht reconhece o amadurecimento do que Theodor Adorno chamaria de “indústria
cultural” – a obra artística tomada como mercadoria em suas novas configurações
de fruição – e se aproveita das leis do mercado para a própria subsistência.
Trabalha com todos os gêneros; escreve espetáculos, canções, publica em
revistas de moda, compõe textos para discos e poemas publicitários.
Curiosamente, descobre nos centros esportivos, como o boxe, o modelo para um
novo teatro: regras claras ao estilo dos jogos coletivos e um público treinado
que reage ativamente ao espetáculo; seja xingando, gritando, aplaudindo, dando
opiniões, torcendo... Enfim: um público que se posiciona ativamente e acaba
fazendo parte do espetáculo.
Porém, no dia 1º de maio de 1929 – o famigerado
“maio de sangue” –, com a quebra da bolsa de Nova York, inicia-se o período da
Grande Depressão e, quase que do dia para a noite, seis milhões de pessoas
ficam desempregadas na Alemanha. Já nas semanas e meses seguintes as ruas são
tomadas por desempregados, famílias inteiras sem abrigo, revirando lixo em
busca de comida. Os impactos e contradições mais visíveis do sistema de
produção capitalista se tornam embates centrais em suas peças, que narram a
miséria, a fome, a vulnerabilidade social e a sobrevivência do proletariado
frente às crises inerentes ao capitalismo. A transformação social – e não
simplesmente a interpretação da sociedade – se torna um objetivo de vida para
Brecht. Em 1929, escrevia O futuro do teatro está na
filosofia e afirmaria ainda anos depois: “as mudanças que
introduzi no teatro dependem da minha vontade filosófica. Essa filosofia é
resumida por Marx na célebre XI Tese sobre Feuerbach:
os filósofos se contentaram em interpretar o mundo, é preciso transformá-lo”.
Seguindo essa perspectiva, o teatro épico – ou
teatro narrativo – é (re)criado por Brecht através de uma leitura marxista da
realidade social; ele não buscava um público passivo que “acreditasse” no
espetáculo como uma forma de ilusão, hipnose ou anestesia. Ao contrário: era
preciso transformar os espectadores em agentes críticos da sociedade e, para
isso, propõe novas funções para técnicas teatrais na tentativa de superar uma
forma dramática que já não dava conta das questões e temas da sua época. Em
suas palavras, o teatro épico deveria ser um “experimento sociológico”.
Segundo Louis Althusser, no texto Sobre Brecht e Marx (1968), Brecht não quis
suprimir o teatro, “o que ele traz de novo, é uma nova prática do teatro”. Assim, a rigor, Brecht não é o
criador do teatro épico, mas o seu (re)criador; ele estabelece em sua prática
elementos narrativos que já estão presentes em manifestações artísticas de
diversas culturas ao redor do mundo. Por exemplo, o teatro japonês (nô e kabuki), o teatro
russo de Vsevolod Meyerhold, o teatro elisabetano, o teatro de Piscator (com
quem trabalhou pessoalmente), entre outros. Porém, podemos dizer que Brecht
cria – de fato – o teatro épico brechtiano, marcando os anos 1920 com um novo
olhar através de novas funções técnicas sensíveis aos temas sociais.
NAZISMO, EXÍLIO E HOLLYWOOD
Na década seguinte, no início dos anos
1930, surgem os primeiros motins capitaneados pelos nazistas – para os quais
Brecht é um inimigo declarado – e, em 30 de janeiro de 1933, Adolf Hitler é
nomeado chanceler da Alemanha por Paul von Hindenburg, tornando-se perigosa a
permanência de Brecht no país. Após a noite marcada pelo fatídico incêndio no
Reichstag, Brecht decide não mais voltar para casa. Iniciava-se o seu período
de exílio. Em sua canção Lied vom SA-Mann (Canção do homem da SA), Brecht revela sua intuição mais
aguda sobre os destinos da Alemanha: “Dormi de fome, com o estômago roncando.
Pegando no sono ouvi gritarem: ‘Acorda Alemanha’. E vi muitos marcharem
gritando ‘Vamos ao Terceiro Reich!’ Eu não tinha nada a perder e fui com eles,
sem me importar para onde”.
Como diria anos mais tarde, através do personagem
Galileu Galilei, na peça A vida de Galileu (1938):
“infeliz do povo que precisa de heróis”. Hitler era a representação desse
“herói da pátria”, o Führer, o ungido que
tinha como “missão divina” reerguer a Alemanha do caos econômico e marchar para
um destino glorioso. O fascismo é caracterizado por esse líder supremo que
precisa ser idolatrado como uma espécie de “messias”. Assim, Brecht foge da
Alemanha em 28 de fevereiro de 1933. O exílio seria longo, passando por vários
países, contrariando sua expectativa inicial; viaja pela Áustria, Suíça,
Dinamarca, Finlândia, Suécia, Inglaterra, Rússia e finalmente chega aos Estados
Unidos da América, onde se estabelece durante seis anos. Na Califórnia trabalhou
em mais de 50 roteiros, entre os anos de 1941 e 1947.
Nesse novo ambiente era tido como uma pessoa
irritada, impetuosa, obscura, pessimista e autoritária. Provavelmente,
consequências das diversas experiências traumatizantes durante o exílio. Não fez
muitos amigos norte-americanos. Nessa época, segundo o filósofo Theodor Adorno:
“Brecht passava duas horas por dia sujando as próprias unhas, tentando fazer
com que adquirissem uma aparência proletária”. Brecht retrucava se referindo
aos intelectuais da Escola de Frankfurt como: “mandarins, elitistas culturais e
intelectuais prostituídos”. Brecht era o retrato de um anticapitalista,
propagador do anti-ilusionismo em Hollywood; justamente em Los Angeles, a
fábrica de sonhos do cinema, acusada por ele de ser um “amortecimento social”.
“Todo dia, para ganhar meu pão, vou para o mercado onde se vendem mentiras”,
escrevia Brecht em 1941.
Observado cada vez mais pelos seus pares como um
inimigo comunista dentro dos EUA, é convocado pelo FBI para depor em 19 de
setembro de 1947 ao Comitê de Atividades Antiamericanas formado para combater a
“subversão” no cinema e no teatro. É interrogado por John McDowell (político),
Robert E. Stripling (investigador), entre outros. Novamente, com medo de
perseguições políticas e temendo pela própria vida, viaja para Zurique, na
Suíça, onde escreve uma de suas obras fundamentais: Um pequeno organon para o teatro (1948),
retornando para a então Alemanha Oriental. Em janeiro de 1949 funda, ao lado da
sua esposa, a atriz Helene Weigel, a companhia de teatro Berliner Ensemble.
Brecht morre vítima de um ataque cardíaco em 14 de agosto de 1956. Seguindo o
seu desejo, não houve discursos no funeral. O corpo de Brecht está enterrado em
Berlim, no cemitério Dorotheenstädtischer Friedhof.
Sua obra é vasta; instaura múltiplos pontos de
partidas e novas funções técnicas, sociais e críticas para o teatro. Como quem
segue pegadas de um gigante, abrem-se os pavimentos, camadas e trilhas através
do seu inventário dialético; são diversas as áreas exploradas por Brecht:
romance, ensaio, poesia, prosa, política, mas também ética, filosofia, música,
cinema etc. Em 44 anos de atividade intelectual escreveu aproximadamente 2.300
poemas, 48 peças de teatro, 50 fragmentos dramatúrgicos, três romances, 230
contos, roteiros e argumentos de filmes, cerca de 800 páginas de diários,
anotações autobiográficas, uma vasta correspondência e cerca de 1.200 de
artigos sobre teatro, música, rádio e filosofia. Entre essa vasta produção,
podemos destacar as peças: Tambores da noite (1922), Baal (1922), Vida de Eduardo II da
Inglaterra (1923), Na selva da cidade (1924), O homem é um homem (1927), Ópera dos três vinténs (1928), Terror e miséria do Terceiro Reich (1935), Os fuzis da Senhora Carrar (1937), A vida de Galileu (1937), Mãe Coragem e seus filhos (1941), entre muitas
outras.
A partir dessa multiplicidade, qual síntese
possível podemos fazer do teatro épico brechtiano? Ou melhor, como compreender
a refuncionalização técnica que caracteriza o seu
teatro como – em suas próprias palavras – um teatro “não aristotélico”?
ARISTÓTELES VERSUS BRECHT
O surgimento da tragédia teatral está
vinculado aos festejos helênicos de Dionísio, deus do vinho. Em grego arcaico
τραγῳδία (tragédia), composto de τράγος, «bode» e ᾠδή, “ode”, «canto»,
significa literalmente uma “ode ao bode”. Os sátiros – figuras míticas
representadas como a mistura entre homem e bode – eram os acompanhantes no coro
do cortejo dionisíaco. O teatro grego, na antiguidade clássica – assim como já
era analisado por Aristóteles por volta do ano 335 a.C. –, guarda seu aspecto
ritualístico e metafísico: a encenação dos mitos e a crença em mundos
suprassensíveis onde deuses controlam o destino do herói trágico. Assim, a
experiência do teatro grego é catártica, hipnótica, e se apoia em uma base
milenar de cânones como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes.
Aristóteles escreve na obra Poética: “A tragédia é a imitação de uma ação elevada e
completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes
em cada uma das suas partes, que se serve da ação e não da narração e que, por
meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões”. O herói
trágico não transforma sua realidade social; ele cumpre um destino inexorável,
gerando um sentimento de identificação – o público “esquece” que está diante de
uma peça de teatro – e criando o efeito de catarse na plateia.
Por outro lado, o “herói” brechtiano tem
características opostas: é cheio de contradições, sujeito a uma série de
deslizes, escolhas, caminhos, fraquezas e portador dos mais variados humores e
temores. Por isso mesmo, seu destino não está traçado previamente; ele é um
agente ativo em um processo dialético com a sua própria realidade social. O
personagem é um sujeito ativo da própria História; modifica a si mesmo e o seu
contexto social. Assim, Brecht desenvolve uma série de técnicas onde procura
“despertar” o espectador para uma atitude reflexiva sobre o que está sendo
representado no palco; o público deve ter a noção clara de estar assistindo a
uma peça.
Nesse sentido, o teatro brechtiano é uma denúncia
das engrenagens sociais reveladas através das aparências e interesses políticos
diversos: nada é natural, nada é absoluto, nada é trivial. Assim, a experiência
do mundo é – fundamentalmente – possível através da cultura e em diversas
perspectivas. Para isso se utiliza de cenários, narrativas, placas,
projeções, figurinos, interrupções e o chamado “estranhamento”, ou Efeito V.
REFUNCIONALIZAÇÃO TÉCNICA
As suas “peças didáticas” – ou
pedagógicas – trazem essa dimensão da ação humana como uma relação: nada é em
absoluto. Não existe o “sim” e o “não” absoluto. Os deuses não decidem o
destino dos personagens. Esse “teatro dialético” propõe a diversidade do
pensamento através de um “público-ator”; um teatro reflexivo,
político-pedagógico, com foco no engajamento e ação. Assim também é com os
atores em outras montagens de Brecht: não “encarnam” a personagem; guardam
distância, são porosos, antagônicos, críticos, não vestem integralmente sua
personalidade.
Esse posicionamento cria o efeito de
“estranhamento”. Conhecido como “Efeito V” (do alemão Verfremdungseffekt); é o efeito da desilusão, do
afastamento, é o “despertar” do público através do que Walter Benjamin
chamaria de “efeito de choque”. Assim, Brecht – através de novas técnicas de
montagem –, cria novas funções (críticas, sociais, disruptivas) para o teatro;
é um chamado à reflexão política.
Benjamin, como um grande parceiro de Brecht, aponta
o amigo como o precursor de um conceito bastante interessante e desenvolvido
por ele no ensaio O autor como produtor, fruto
de uma conferência proferida em Paris no Instituto para Estudo do Fascismo, em
27 de abril de 1934; trata-se da refuncionalização técnica.
O termo tenta qualificar as transformações dos meios de produção do teatro com
foco no “despertar” do público com possibilidades de replicação para qualquer
área de criação: fotografia, cinema, música etc.
Ou seja, os autores deveriam criar novas técnicas
de produção com um caráter pedagógico que transformasse os espectadores em
autores. Algo que seria resgatado anos depois como lema do movimento punk “DIY”, “do-it-yourself” ou “faça-você-mesmo”. Assim, segundo
Benjamin, “Brecht foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência
fundamental: não abastecer o aparelho de produção, sem o modificar, na medida
do possível, num sentido socialista”.
Nesse
sentido, a grande contribuição de Brecht para as artes está nessa fusão entre
forma e conteúdo, com foco na autonomia do autor e na crítica da sua própria
realidade social. O modo de fazer – já é, ele mesmo – uma parte fundamental do
conteúdo. Essa é uma revolução, inclusive, no que diz respeito a uma ontologia
das artes: a escolha do local, do público, das ferramentas, da montagem e –
finalmente – o bater do prego que possibilita a exposição de uma obra faz parte
da sua própria fruição. Essa nova função ou refuncionalização é um meio de democratizar o
acesso à produção: torne-se um diretor, torne-se um músico, torne-se um
escritor, não espere por ninguém, modifique o seu mundo com o que tiver em
mãos. É um caráter inspirador para novos artistas; como já apontava Nietzsche em
sua antropologia imanente da vida como arte: “torna-te quem tu és”. E, de fato,
a vida de Brecht foi uma grande obra de arte; pedagógica e política, um chamado
constante à ação contra a barbárie; afinal, como profetiza uma de suas mais
célebres frases: “a cadela do fascismo está sempre no cio”. [Ilustração:
Filipa Aca]
ZECA VIANA, doutorando e mestre em Sociologia (UFPE), bacharel e licenciado em Filosofia (UFPE). Professor, pesquisador, músico, produtor e apresentador do programa Recife Lo-Fi, na Frei Caneca 101.5 FM.
FILIPE ACA, designer e ilustrador.
As
emoções dão cor à vida https://bit.ly/3Ye45TD
Nenhum comentário:
Postar um comentário