01 fevereiro 2025

Cláudio Carraly opina

Perspectivas e desafios para a esquerda global em tempos de transição: tudo que é sólido se desmancha no ar
Cláudio Carraly* 

A expressão “tudo que é sólido se desmancha no ar”, cunhada por Karl Marx e Friedrich Engels em O Manifesto Comunista e retomada por Marshall Berman, traduz a fluidez das estruturas sociais, econômicas e políticas ao longo da história. Aquilo que parece indestrutível hoje pode ruir ou se transformar rapidamente, sobretudo em períodos de intensa crise e efervescência política. Diante dos atuais governos autoritários e nacionalistas que despontam, a pergunta que emerge é: poderá a esquerda global, em suas múltiplas vertentes, reconstruir-se de forma sólida para oferecer alternativas e mobilizar grandes segmentos sociais? 

Em diferentes momentos, crises atuaram como catalisadores para a organização e a renovação da esquerda mundial, o caos da Primeira Guerra Mundial, acrescido dos problemas internos da Rússia czarista, precipitaram a Revolução Russa de 1917. E essa inspirou operários e camponeses por todo globo. Já no pós-Segunda Guerra, partidos de inclinações marxistas, social-democratas e trabalhistas alavancaram seu protagonismo, em parte pelo papel que desempenharam contra o fascismo e pelos projetos de bem estar social que impuseram como forma de minar o capitalismo globalmente.

O colapso financeiro de 2008, do qual temos reflexos até os dias atuais, bem como o movimento Occupy Wall Street, trouxe novos questionamentos sobre as desigualdades estruturais fundamentais do capitalismo, sendo a mais visível a concentração de riqueza em uma elite minoritária, esse cenário evidenciou as contradições do neoliberalismo e abriu espaço para uma crítica mais ampla ao âmago do sistema. No entanto, esse mesmo sentimento de revolta também alimentou a reação de forças nacionalistas e autoritárias, que canalizaram a frustração popular em projetos antidemocráticos de extrema-direita.

Para a esquerda, a tarefa de se reinventar passa por incorporar temas que antes ocupavam um lugar secundário nos programas partidários, no atual contexto de aceleradas mudanças climáticas, o debate sobre sustentabilidade deixou de ser uma preocupação restrita a ambientalistas, tornou-se urgente e transversal, com a necessidade de uma articulação entre justiça social e proteção ambiental, superando a dicotomia entre desenvolvimentismo produtivista e preservação do planeta.

O identitarismo, capturado pelas grandes empresas e seus compliances, não é bem quisto pela parcela mais tradicional da esquerda, principalmente por alguns partidos de orientação marxista, as pautas feministas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência, etarismo, antirracistas, são fundamentais, porém foram capturadas pelo status quo, que utiliza apenas como uma absorção do sistema dessas pautas que têm em toda sua trajetória histórica a presença de quadros de esquerda e com esses conquistaram relevância mundial que mereciam.

A noção de interseccionalidade, que observa a sobreposição de diferentes opressões, transformou o cenário militante, hoje, o que conhecemos como esquerda precisa equilibrar sua ênfase histórica na luta de classes com bases no marxismo-leninismo do início do século XX com a atenção às temáticas identitárias, sabendo que o processo histórico comprovou que apenas a luta de classes não solucionará questões tão complexas e secularmente impregnadas ao ser humano, como racismo, misoginia e xenofobia, por exemplo.

Pensadores como Angela Davis e Achille Mbembe reforçam a importância de se combater não apenas a exploração econômica, mas também as heranças raciais que persistem nas sociedades, inclusive as que experimentaram e experimentam o modo de produção comunista.

 A economia de plataformas online e a automação avançada pulverizaram as categorias profissionais e esvaziaram os sindicatos tradicionais, o capitalismo já não necessita de um exército de reserva, ao menos como conhecíamos desde a revolução industrial, esse fenômeno fraciona, divide e enfraquece profundamente a luta dos trabalhadores. Essa mão de obra precarizada, nascida dos aplicativos sem vínculo formal, não só abraçou a ideia de que são parte da força econômica, mas que desfrutam de parcela do bolo dos ganhos financeiros. Eles sequer percebem que estão do lado de quem os explora, a mais-valia sofrida agora é usada como medalha pelo explorado como motivo de orgulho e regozijo.

A esquerda vem perdendo feio essa batalha do novo mundo, o da revolução tecno-científica, na última década, não percebeu a fenomenologia e tática dos grandes capitalistas em capturar os corações e mentes da nova classe trabalhadora, porém a direita entendeu, pior, a extrema-direita percebeu ainda mais, dando um passo adiante, politizando o processo, e assim começou a obter vitórias eleitorais nos parlamentos e executivos por todo mundo, trazendo de volta uma sombra que não víamos desde o início dos anos 1920.

Para além dos desafios externos, como o perigo da ascensão da extrema-direita, há entraves significativos no interior das camadas organizadas na esquerda, as diferentes correntes (marxistas, anarquistas, social-democratas, ecossocialistas, trotskistas e outros) nem sempre conseguem cooperar, disputas ideológicas podem paralisar ações comuns e fragmentar o campo político. Os progressistas precisam reagir, é fundamental voltar a se organizar e se reunir em torno dos temas que os unificam, deixando de lado, por hora, temáticas que os dividem.

Esses trabalhadores carecem de representação de classe e redes de proteção social. É preciso novas experiências de organização, seja por meio de coletivos informais ou sindicatos digitais, apontando para esses que há caminhos para defender os direitos dos precarizados que eles nem compreendem que lhes foram usurpados. A esquerda, nesse ponto, pode liderar iniciativas de regulação do trabalho digital, como proteção mínima para licenciamento dos aplicativos e seguridade social para quem atua por esses.

A globalização, ao mesmo tempo em que intensifica a interdependência econômica e cultural, expõe discrepâncias entre regiões e fortalece discursos nacionalistas. A facilidade de comunicação via redes sociais possibilita a criação de movimentos transnacionais, acirram a polarização e a disseminação de desinformação. Em muitos casos, governos autoritários exploram essas dinâmicas digitais para minar a credibilidade de instituições democráticas. Antes a esquerda, bebendo na fonte de Karl Marx, era “mundialista”, hoje são os partidos de orientação fascista e neofascista que o são. Eles estudaram os socialistas, comunistas e anarquistas, aprenderam como se organizar e elevar suas questões ao palco mundial, subvertendo o principal, a emancipação da classe trabalhadora, eles conhecem a esquerda profundamente e somente agora os progressistas começam a compreender seu adversário.  

Por outro lado, essas mesmas ferramentas podem e devem ser utilizadas, como rápida articulação de campanhas globais, seja contra a mudança climática ou em defesa de refugiados, a esquerda, portanto, deve conciliar dois polos de atuação: o uso inteligente das redes para conscientizar e mobilizar, e a construção de laços comunitários presenciais (como sindicatos renovados, conselhos populares, cooperativas solidárias e coletivos de bairro), mas fundamentalmente voltar a se afirmar amplamente como de esquerda.

Alguns bons exemplos recentes mostram como diferentes alas das esquerdas têm se reestruturado e buscado relevância:

Partido Podemos na Espanha

Surgiu a partir das manifestações dos Indignados e levou ao parlamento uma pauta anti-austeridade nos moldes neoliberais e por ações sociais robustas, embora tenha sofrido disputas internas entre correntes mais tradicionais e setores que defendem uma abordagem aberta às pautas identitárias, o partido trouxe renovação ao cenário político espanhol e vem crescendo em relevância no país.

Bloco de Esquerda em Portugal

Em Portugal, unificou feministas, trotskistas, ecossocialistas e outros segmentos, mantendo um diálogo contínuo e amplo com diversos movimentos sociais. Essa aglutinação, porém, revela desafios na hora de formar coalizões e manter unidade interna diante de pressões institucionais, vem obtendo vitórias regionais e também no parlamento.

Movimento Syriza na Grécia

Emergiu como oposição às medidas de austeridade draconianas impostas pela União Europeia, mas, ao assumir o poder, recuou em muitas propostas mais disruptivas. O caso grego ilustra o dilema entre a fidelidade a programas de ruptura e a governabilidade em um mundo globalizado, um exemplo evidenciado da realpolitike, que as esquerdas vão ter que aprender, talvez lembrando Lênin, um passo atrás para depois dar dois adiante.

Estados Unidos: Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez

Autodenominados “socialistas democráticos”, Sanders e AOC ampliaram o debate sobre saúde universal, regulação financeira e tributação de grandes fortunas e levaram de volta ao conjunto da sociedade estadunidense o conceito de socialismo, algo que era proibitivo nos grandes debates nacionais, ainda que enfrentem forte resistência dentro do próprio Partido Democrata, sua popularidade revela que o socialismo já não é um tabu para uma boa parcela da população dos Estados Unidos.

América Latina

Governos progressistas eleitos na região (no Brasil, Chile, Colômbia, México e Uruguai, entre outros) tentam equilibrar políticas redistributivas de renda e intervenção estatal onde é necessário, atraindo investimentos e lidando com a instabilidade política da região com o crescimento da extrema-direita no continente. O Brasil, que viveu processos intensos de polarização, mostra o quão difícil é unificar as diversas correntes de esquerda para além das eleições, assim vemos a fundamental importância da criação e manutenção de frentes políticas amplas, embora cheias de tensões internas, é necessária a reunião dos democratas de os matizes contra o inimigo fundamental que é o fascismo.

O desafio da esquerda passa por reconciliar a análise de conjuntura global com ações específicas e enraizadas. Algumas estratégias se mostram fundamentais:

  • Convergência programática básica: É inviável unificar totalmente correntes tão diversas, mas encontrar consensos mínimos, ou seja, distribuição de renda, políticas de bem-estar social, combate à devastação ambiental, entre outros, isso é crucial para formar frentes amplas.
  • Transparência e participação interna: Partidos e movimentos devem criar espaços de democracia interna, maior oxigenação nas lideranças dos partidos, recebimento aberto e amplo de novos filiados, além de resoluções partidárias discutidas desde as bases.
  • Diálogo com movimentos identitários: Reconhecer a autonomia de feministas, coletivos negros, grupos LGBTQIA+, povos indígenas e imigrantes, buscando sinergias sem suprimir pautas específicas, além de antecipar novas formas de organização da sociedade e abrir espaços imediatamente para estas nas discussões partidárias.
  • Inovação nos formatos de organização: Investir em redes de solidariedade e em estruturas mais fluidas e flexíveis, como sindicatos voltados para as cooperativas digitais, que possam responder imediatamente às novas dinâmicas do trabalho. Além de levar a cada filiado a tarefa de amplificar presencial e digitalmente as ideias do partido e principalmente levar ao eleitor de esquerda em geral que não dê engajamento e muito menos amplifique as ideias da extrema-direita, pois é disso que eles vivem e a tática que os vem fazendo crescer globalmente.
  • Formação política e educação popular: Ampliar escolas de formação, tanto presenciais quanto online, onde se discuta teoria política, economia crítica e práticas de mobilização mistas. Essa educação permanente é fundamental desde a formulação do socialismo científico, hoje é ainda mais vital para o surgimento de novas lideranças, mas principalmente para a sobrevivência a longo prazo do que conhecemos como esquerda.
  • Integração teórica: Estudar e debater as contribuições de teóricos progressistas do passado e também contemporâneos, para se obter um arcabouço de informações que alimentem a luta política da militância, analisando as complexas formas de poder, possibilidades de emancipação das sociedades, e como governar ao ascender ao poder.

 

Regimes de extrema-direita, apesar de aparentarem força, enfrentam profundas contradições internas e podem desabar de forma inesperada ao se verem isolados política e socialmente, principalmente em cenários de recessão econômica, escândalos de corrupção ou pela simples incompetência de suas gestões. A história mostra que o poder autoritário, em diversos momentos, ruiu com surpreendente rapidez quando perdeu sua base de apoio internacional e quando o povo compreendeu que questões de costumes, xenofobia ou um suposto inimigo interno ou externo não resolviam seus problemas reais.

Para a esquerda, o grande desafio é conseguir organizar e canalizar a insatisfação social nesses momentos, apresentando propostas consistentes, capazes de demonstrar viabilidade e compromisso humanista com o todo da sociedade. Ou os progressistas avançam na elaboração de soluções concretas e inclusivas, ou correm o risco de assistir, inertes, ao avanço de projetos mais e mais regressivos. Resta claro que, se nada é eterno, nem mesmo as estruturas autoritárias o são, a chance de mudança está justamente no potencial de organização coletiva para criar novos horizontes de igualdade.

A sensação de crescimento e robustecimento dos reacionários pode ser momentânea, dependendo de como se comportam os democratas, assim estará sujeita a dissolver-se, diante de um contraponto de mudanças de conjuntura e da força de movimentos progressistas bem articulados. A esquerda capilarizada, internacionalizada e, principalmente, unificada em suas convergências será uma força irrefreável. Assim, a máxima de que “tudo que é sólido se desmancha no ar” novamente demonstrará a importância vital do estudo das sociedades.

*Advogado, Ex-Secretário Executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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