Perspectivas e
desafios para a esquerda global em tempos de transição: tudo que é sólido se
desmancha no ar
Cláudio Carraly*
Em diferentes momentos, crises atuaram como catalisadores para a
organização e a renovação da esquerda mundial, o caos da Primeira Guerra
Mundial, acrescido dos problemas internos da Rússia czarista, precipitaram a
Revolução Russa de 1917. E essa inspirou operários e camponeses por todo globo.
Já no pós-Segunda Guerra, partidos de inclinações marxistas, social-democratas
e trabalhistas alavancaram seu protagonismo, em parte pelo papel que
desempenharam contra o fascismo e pelos projetos de bem estar social que
impuseram como forma de minar o capitalismo globalmente.
O colapso financeiro de 2008, do qual temos reflexos até os dias atuais,
bem como o movimento Occupy Wall Street, trouxe novos
questionamentos sobre as desigualdades estruturais fundamentais do capitalismo,
sendo a mais visível a concentração de riqueza em uma elite minoritária, esse
cenário evidenciou as contradições do neoliberalismo e abriu espaço para uma
crítica mais ampla ao âmago do sistema. No entanto, esse mesmo sentimento de
revolta também alimentou a reação de forças nacionalistas e autoritárias, que
canalizaram a frustração popular em projetos antidemocráticos de
extrema-direita.
Para a esquerda, a tarefa de se reinventar passa por incorporar temas
que antes ocupavam um lugar secundário nos programas partidários, no atual
contexto de aceleradas mudanças climáticas, o debate sobre sustentabilidade
deixou de ser uma preocupação restrita a ambientalistas, tornou-se urgente e
transversal, com a necessidade de uma articulação entre justiça social e
proteção ambiental, superando a dicotomia entre desenvolvimentismo produtivista
e preservação do planeta.
O identitarismo, capturado pelas grandes empresas e seus compliances,
não é bem quisto pela parcela mais tradicional da esquerda, principalmente por
alguns partidos de orientação marxista, as pautas feministas, LGBTQIA+, pessoas
com deficiência, etarismo, antirracistas, são fundamentais, porém foram
capturadas pelo status quo, que utiliza apenas como uma absorção do sistema
dessas pautas que têm em toda sua trajetória histórica a presença de quadros de
esquerda e com esses conquistaram relevância mundial que mereciam.
A noção de interseccionalidade, que observa a sobreposição de diferentes
opressões, transformou o cenário militante, hoje, o que conhecemos como
esquerda precisa equilibrar sua ênfase histórica na luta de classes com bases
no marxismo-leninismo do início do século XX com a atenção às temáticas
identitárias, sabendo que o processo histórico comprovou que apenas a luta de
classes não solucionará questões tão complexas e secularmente impregnadas ao
ser humano, como racismo, misoginia e xenofobia, por exemplo.
Pensadores como Angela Davis e Achille Mbembe reforçam a importância de
se combater não apenas a exploração econômica, mas também as heranças raciais
que persistem nas sociedades, inclusive as que experimentaram e experimentam o
modo de produção comunista.
A economia de plataformas online e a automação avançada
pulverizaram as categorias profissionais e esvaziaram os sindicatos
tradicionais, o capitalismo já não necessita de um exército de reserva, ao
menos como conhecíamos desde a revolução industrial, esse fenômeno fraciona,
divide e enfraquece profundamente a luta dos trabalhadores. Essa mão de obra
precarizada, nascida dos aplicativos sem vínculo formal, não só abraçou a ideia
de que são parte da força econômica, mas que desfrutam de parcela do bolo dos
ganhos financeiros. Eles sequer percebem que estão do lado de quem os explora,
a mais-valia sofrida agora é usada como medalha pelo explorado como motivo de
orgulho e regozijo.
A esquerda vem perdendo feio essa batalha do novo mundo, o da revolução
tecno-científica, na última década, não percebeu a fenomenologia e tática dos
grandes capitalistas em capturar os corações e mentes da nova classe
trabalhadora, porém a direita entendeu, pior, a extrema-direita percebeu ainda
mais, dando um passo adiante, politizando o processo, e assim começou a obter
vitórias eleitorais nos parlamentos e executivos por todo mundo, trazendo de volta
uma sombra que não víamos desde o início dos anos 1920.
Para além dos desafios externos, como o perigo da ascensão da
extrema-direita, há entraves significativos no interior das camadas organizadas
na esquerda, as diferentes correntes (marxistas, anarquistas,
social-democratas, ecossocialistas, trotskistas e outros) nem sempre conseguem
cooperar, disputas ideológicas podem paralisar ações comuns e fragmentar o
campo político. Os progressistas precisam reagir, é fundamental voltar a se
organizar e se reunir em torno dos temas que os unificam, deixando de lado, por
hora, temáticas que os dividem.
Esses trabalhadores carecem de representação de classe e redes de
proteção social. É preciso novas experiências de organização, seja por meio de
coletivos informais ou sindicatos digitais, apontando para esses que há
caminhos para defender os direitos dos precarizados que eles nem compreendem
que lhes foram usurpados. A esquerda, nesse ponto, pode liderar iniciativas de
regulação do trabalho digital, como proteção mínima para licenciamento dos
aplicativos e seguridade social para quem atua por esses.
A globalização, ao mesmo tempo em que intensifica a interdependência
econômica e cultural, expõe discrepâncias entre regiões e fortalece discursos
nacionalistas. A facilidade de comunicação via redes sociais possibilita a
criação de movimentos transnacionais, acirram a polarização e a disseminação de
desinformação. Em muitos casos, governos autoritários exploram essas dinâmicas
digitais para minar a credibilidade de instituições democráticas. Antes a
esquerda, bebendo na fonte de Karl Marx, era “mundialista”, hoje são os
partidos de orientação fascista e neofascista que o são. Eles estudaram os
socialistas, comunistas e anarquistas, aprenderam como se organizar e elevar
suas questões ao palco mundial, subvertendo o principal, a emancipação da
classe trabalhadora, eles conhecem a esquerda profundamente e somente agora os
progressistas começam a compreender seu adversário.
Por outro lado, essas mesmas ferramentas podem e devem ser utilizadas,
como rápida articulação de campanhas globais, seja contra a mudança climática
ou em defesa de refugiados, a esquerda, portanto, deve conciliar dois polos de
atuação: o uso inteligente das redes para conscientizar e mobilizar, e a
construção de laços comunitários presenciais (como sindicatos renovados,
conselhos populares, cooperativas solidárias e coletivos de bairro), mas
fundamentalmente voltar a se afirmar amplamente como de esquerda.
Alguns bons exemplos recentes mostram como diferentes alas das esquerdas
têm se reestruturado e buscado relevância:
Partido Podemos na Espanha
Surgiu a partir das manifestações dos Indignados e levou ao parlamento
uma pauta anti-austeridade nos moldes neoliberais e por ações sociais robustas,
embora tenha sofrido disputas internas entre correntes mais tradicionais e
setores que defendem uma abordagem aberta às pautas identitárias, o partido
trouxe renovação ao cenário político espanhol e vem crescendo em relevância no
país.
Bloco de Esquerda em Portugal
Em Portugal, unificou feministas, trotskistas, ecossocialistas e outros
segmentos, mantendo um diálogo contínuo e amplo com diversos movimentos
sociais. Essa aglutinação, porém, revela desafios na hora de formar coalizões e
manter unidade interna diante de pressões institucionais, vem obtendo vitórias
regionais e também no parlamento.
Movimento Syriza na Grécia
Emergiu como oposição às medidas de austeridade draconianas impostas
pela União Europeia, mas, ao assumir o poder, recuou em muitas propostas mais disruptivas.
O caso grego ilustra o dilema entre a fidelidade a programas de ruptura e a
governabilidade em um mundo globalizado, um exemplo evidenciado da realpolitike,
que as esquerdas vão ter que aprender, talvez lembrando Lênin, um passo atrás
para depois dar dois adiante.
Estados Unidos: Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez
Autodenominados “socialistas democráticos”, Sanders e AOC ampliaram o
debate sobre saúde universal, regulação financeira e tributação de grandes
fortunas e levaram de volta ao conjunto da sociedade estadunidense o conceito
de socialismo, algo que era proibitivo nos grandes debates nacionais, ainda que
enfrentem forte resistência dentro do próprio Partido Democrata, sua
popularidade revela que o socialismo já não é um tabu para uma boa parcela da
população dos Estados Unidos.
América Latina
Governos progressistas eleitos na região (no Brasil, Chile, Colômbia,
México e Uruguai, entre outros) tentam equilibrar políticas redistributivas de
renda e intervenção estatal onde é necessário, atraindo investimentos e lidando
com a instabilidade política da região com o crescimento da extrema-direita no
continente. O Brasil, que viveu processos intensos de polarização, mostra o
quão difícil é unificar as diversas correntes de esquerda para além das
eleições, assim vemos a fundamental importância da criação e manutenção de
frentes políticas amplas, embora cheias de tensões internas, é necessária a
reunião dos democratas de os matizes contra o inimigo fundamental que é o
fascismo.
O desafio da esquerda passa por reconciliar a análise de conjuntura
global com ações específicas e enraizadas. Algumas estratégias se mostram
fundamentais:
- Convergência programática
básica: É inviável unificar totalmente correntes tão diversas, mas
encontrar consensos mínimos, ou seja, distribuição de renda, políticas de
bem-estar social, combate à devastação ambiental, entre outros, isso é
crucial para formar frentes amplas.
- Transparência e participação
interna: Partidos e movimentos devem criar espaços de democracia interna,
maior oxigenação nas lideranças dos partidos, recebimento aberto e amplo
de novos filiados, além de resoluções partidárias discutidas desde as
bases.
- Diálogo com movimentos
identitários: Reconhecer a autonomia de feministas, coletivos negros, grupos
LGBTQIA+, povos indígenas e imigrantes, buscando sinergias sem suprimir
pautas específicas, além de antecipar novas formas de organização da
sociedade e abrir espaços imediatamente para estas nas discussões
partidárias.
- Inovação nos formatos de
organização: Investir em redes de solidariedade e em estruturas mais
fluidas e flexíveis, como sindicatos voltados para as cooperativas
digitais, que possam responder imediatamente às novas dinâmicas do
trabalho. Além de levar a cada filiado a tarefa de amplificar presencial e
digitalmente as ideias do partido e principalmente levar ao eleitor de
esquerda em geral que não dê engajamento e muito menos amplifique as
ideias da extrema-direita, pois é disso que eles vivem e a tática que os
vem fazendo crescer globalmente.
- Formação política e educação
popular: Ampliar escolas de formação, tanto presenciais quanto online,
onde se discuta teoria política, economia crítica e práticas de
mobilização mistas. Essa educação permanente é fundamental desde a
formulação do socialismo científico, hoje é ainda mais vital para o
surgimento de novas lideranças, mas principalmente para a sobrevivência a
longo prazo do que conhecemos como esquerda.
- Integração teórica: Estudar
e debater as contribuições de teóricos progressistas do passado e também
contemporâneos, para se obter um arcabouço de informações que alimentem a
luta política da militância, analisando as complexas formas de poder,
possibilidades de emancipação das sociedades, e como governar ao ascender
ao poder.
Regimes de extrema-direita, apesar de aparentarem força, enfrentam
profundas contradições internas e podem desabar de forma inesperada ao se verem
isolados política e socialmente, principalmente em cenários de recessão
econômica, escândalos de corrupção ou pela simples incompetência de suas
gestões. A história mostra que o poder autoritário, em diversos momentos, ruiu
com surpreendente rapidez quando perdeu sua base de apoio internacional e
quando o povo compreendeu que questões de costumes, xenofobia ou um suposto
inimigo interno ou externo não resolviam seus problemas reais.
Para a esquerda, o grande desafio é conseguir organizar e canalizar a
insatisfação social nesses momentos, apresentando propostas consistentes,
capazes de demonstrar viabilidade e compromisso humanista com o todo da
sociedade. Ou os progressistas avançam na elaboração de soluções concretas e
inclusivas, ou correm o risco de assistir, inertes, ao avanço de projetos mais
e mais regressivos. Resta claro que, se nada é eterno, nem mesmo as estruturas autoritárias
o são, a chance de mudança está justamente no potencial de organização coletiva
para criar novos horizontes de igualdade.
A sensação de crescimento e robustecimento dos reacionários pode ser
momentânea, dependendo de como se comportam os democratas, assim estará sujeita
a dissolver-se, diante de um contraponto de mudanças de conjuntura e da força
de movimentos progressistas bem articulados. A esquerda capilarizada,
internacionalizada e, principalmente, unificada em suas convergências será uma
força irrefreável. Assim, a máxima de que “tudo que é sólido se desmancha no
ar” novamente demonstrará a importância vital do estudo das sociedades.
*Advogado, Ex-Secretário Executivo de Direitos Humanos de Pernambuco
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