10 março 2025

Cinema: o sonho desfeito

Sobre o filme 'O Brutalista' e o sonho americano que nasceu apodrecido
Num país onde existem guetos, uma população enorme na miséria, famílias vivendo em barracas e trailers, com um alto índice de letalidade policial, em que as vítimas são quase sempre negras, essa realidade não aparece no filme, embora a podridão da sociedade se insinue, sem jamais ser aprofundada
Fabiane Albuquerque/Le Monde Diplomatique  


O sonho americano está apodrecido. László Toth, um judeu da Hungria, sobrevivente de um campo de concentração nazista, chega nos Estados Unidos depois da guerra, para morar com o primo. Já no início do filme nos deparamos com uma sociedade altamente tóxica, que muda as pessoas para pior, embora elas não se deem conta disso, presente nos detalhes: o primo judeu que muda de nome, de religião, de hábitos, batiza o negócio de móveis de “Miller and sons”, pois, ali, a ideologia cristã bélica, as lojas familiares fazem sucesso. O lucro toma forma de desprezo por toda fraqueza e sofrimento humano. O casal jovem que acolhe László, jamais escuta as dores do homem que saiu vivo dos horrores da ideologia supremacista branca ariana. A superficialidade e a ignorância cultural, artística e histórica, mostra que o dinheiro não constrói cultura. O sonho americano não suporta fraqueza. 

O primo percebe que pode aproveitar do recém-chegado lhe fazendo projetar os móveis do seu negócio e, na primeira oportunidade, usa László, arquiteto renomado antes da Guerra, para ganhar dinheiro. O primeiro contato com o ricaço é marcado pela exploração, o desprezo e o racismo. Depois de não receber pelo trabalho, expulso da casa do primo, como o jovem protagonista do romance de Kafka, América, ele vai parar nas ruas, nos alojamentos para a grande massa de gente que o sonho americano não contempla. Sonhar, naquele país, é coisa de gente branca, que perdeu a empatia. O empresário, que não o pagou, só volta atrás e o procura, depois que a foto da biblioteca que o judeu construiu, até então apenas um desgraçado, vai parar numa revista renomada. A ênfase na própria imagem é o que motiva o homem rico e o seu interesse p elo arquiteto. A relação de exploração não é só de trabalho, mas do ser: “László, as conversas intelectuais com você são muito empolgantes”, diz o burguês. Nos Estados Unidos, ricos não amam cultura, usam a cultura, como, por exemplo, ter a arte de um arquiteto famoso que trabalhou na própria casa, numa revista. É tudo sobre si mesmo.

Num país onde existem guetos, uma população enorme na miséria, famílias vivendo em barracas e trailers, com um alto índice de letalidade policial, em que as vítimas são quase sempre negras, essa realidade não aparece no filme, embora a podridão da sociedade se insinue, sem jamais ser aprofundada. O sonho americano é branco e perverso. O sonho é dinheiro, obtido à custa de não pagar um trabalhador, de alojá-lo em um quartinho, de ostentar uma construção milionária. A relação com o dinheiro é um fetiche total, nos termos de Karl Marx. Torna-se um fim em si mesmo, não um meio para viver melhor, para o “bem viver”. É possível dispensar trabalhadores e, ao mesmo tempo, viajar para a Itália com o único objetivo de comprar mármore de Carrara.

O capitalismo é o sistema econômico que transformou o homem branco e rico em predador. Predador em todos os sentidos: nos buracos da montanha de Carrara, que sangra, mutilada, para oferecer à burguesia do mundo inteiro um pedaço de sua carne; predador sexual, na cena de estupro; predador afetivo e emocional, quando oferece trabalho até mesmo à esposa de László, também sobrevivente do nazismo, tornando todos dependentes e gratos a ele.

Na Itália tem uma cena representativa da perda de si mesmo e busca de algo, como uma visão onírica, um tanto superficial, digna da narrativa hollywoodiana; a figura do anárquico. Ela aparece, mas se perde no vazio do curto diálogo entre László e o amigo. Parece a única relação sincera, autêntica, mas, numa descrição simplista: “Nós somos anárquicos”. De um lado, o italiano que vende ao rico, do outro, o arquiteto que se adaptou ao rico. E a anarquia? E, termina ali. Sobre relações sinceras, as únicas são aquelas estabelecidas entre os condenados da Terra, de gente à margem, como Gordom, pai negro, que cria o filho sozinho, encontrado pelo protagonista na fila de emprego, com quem dividiu os alojamentos coletivos para miseráveis na cidade. Depois de cinco anos na “América”, sua esposa cadeirante e sua sobrin ha órfã reúnem-se a ele. São essas pessoas a parte mais sensível da existência humana.

O filme está dentro de uma lógica narrativa que não convence, porque dentro de uma lógica hollywoodiana, onde algumas coisas são colocadas sem aprofundamento: a figura do rico, que lucra com navios de guerra, o seu advogado e a esposa judia, amigos do establishment, que ajuda László com os documentos para trazer o que sobrou da família, e, em simultâneo, convivem e aceitam as regras da sociedade estadunidense. O protagonista, em sofrimento, não se rebela, parece esperar a sua vez, o sonho americano.

A solução do diretor, no final, foi apontar uma saída sionista: “vamos para o Estado de Israel, recém-criado, lá, sim, nos sentiremos em casa. Lá sim, seremos gente.” Sem enfatizar o que comportou a formação do Estado de Israel: expulsão dos palestinos de suas terras, segregação de um grupo de pessoas, rebaixadas, por sua vez, a menos dignas que os judeus.  A única coisa inesperada no filme foi esta, a falta de crítica sobre a formação deste Estado e o que comportou.

A máquina cinematográfica é de grande qualidade, assim como a intenção de prender o expectador por 3 horas e 35 min.

Sobre o termo “brutalismo”, trata-se é um estilo arquitetônico, com obras escuras, imponentes, de concreto bruto, como o convento Sainte-Marie-de-la-Tourette de Le Corbusier, em Lyon. A construção realizada por László, sob pedido do homem rico e o seu sentido, só fora revelada no final. A luta pelo projeto inicial, entre o arquiteto e a família rica, a comunidade local e outros arquitetos, ao longo da obra, é reveladora dos valores contrastantes: criatividade e originalidade, de um lado e lucro, superficialidade, mentiras e sabotagens, de outro. O sonho americano não admite fidelidade a si e aos próprios princípios.

Olhando como brasileira negra, de um país cuja colonização e embranquecimento da cultura, por parte da burguesia, ainda eugenista, a cena em que o diretor quis enfatizar a arquitetura europeia, a cidade de Veneza, enquadrando, sobretudo, a Basílica San Pedro e a sua cúpula, sugere uma exaltação. Lembrei-me de uma amiga, muito eurocêntrica, que veio visitar-me em Lyon. A sua frase preferida, sempre que lhe mostrava um ponto turístico era: “É outro nível”. Até que chegamos na praça Terreaux, em Lyon, onde, bem no meio, tem uma escultura imponente chamada Fontaine Bartholdi, criada pelo escultor Frédéric Auguste Bartholdi e inaugurada em 1892 com o nome original de Char triomphal de la Garonne ou Les fleuves et les sources allant à l’océan. A mulher, ao centro, representa a França, e os quatro cavalos, de onde jorra água, os rios france ses. A minha amiga, extasiada, disse: “Nossa, que lindo! Isso aqui não tem no Brasil.” Retruquei ironicamente: “Ah, claro! No Brasil precisamos mesmo de uma estátua de quatro cavalos”. A arquitetura de um povo, não necessariamente serve a outro, sobretudo se for na lógica da superioridade e dominação e, no Brasil, se a burguesia tivesse o mínimo de espírito nacionalista, não importaria o sonho americano e a classe média rejeitaria sonhá-lo.

Fabiane Albuquerque é doutora em sociologia, feminista negra e escritora. Autora dos livros Cartas a um homem negro que amei (Editora Malê) e Ensaio sobre a raiva (Editora Patuá)

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