23 novembro 2010

Uma crônica minha no site da Revista Algomais

Bonequinha de louça
Luciano Siqueira


Estatura mediana, esguia, diria até muito magra, de alvura quase leitosa, olhos azuis, batom vermelho vivo igual ao matiz das unhas. Olhar vago, mirando a janela da aeronave como quem enxerga o nada. Mesmo quando percebeu que eu a observava e fazia comentários com meu companheiro de viagem, Tadeu, sequer um sorriso discreto, algum gesto o mais tímido que fosse.

Para completar a imagem insossa, uma boina presa com grampos aos cabelos impecavelmente grudados em gel. Uma bonequinha de louça.

Sim, tudo na aeromoça da Trip lembrava as bonecas de minha irmã, que na infância eu contemplava com certa admiração, atento ao movimento dos olhos e dos cílios e ao som que emitiam quando submetidas a distintas posições. Não sei a razão, todas as que conheci tinham olhos azuis ou esverdeados, a tez alva, lábios e unhas avermelhadas – igual àquela jovem quase robótica que tinha à minha frente.

Ao anúncio de que o serviço de bordo começaria, me animei: a bonequinha vai se mexer, talvez fale.

Falou, porém um lacônico “Senhor, aceita?” e nada mais que isso. Pior: a voz parecia gravada, que nem a que a gente ouvia do peito das bonecas da minha irmã. Um som sem vida, mecânico, falto de emoção.

Pensei: quando ela vier recolher o copo plástico, embalagens da horrível comida de bordo (lixo, sob todos os títulos), talvez eu peça água, ou um cafezinho, sei lá, algo que lhe provoque dizer mais uma frase – mesmo insípida, burocrática, contanto que me tirasse aquela má impressão. Mas quando ela veio, sacola de plástico à mão, balbuciou um mínimo “Posso?” e nem percebeu que eu a olhava nos olhos e lhe oferecia o meu sorriso cúmplice.

No desembarque, a mesma coisa. Sorri, agradeci a atenção e ela nada, o olhar vazio, a face passiva. Em silêncio.

Confesso que não me senti mal tratado. E ela me despertou um irrecusável sentimento de solidariedade – que alimento à distância, em pura abstração, pois sequer o nome da bonequinha de louça em retive. Por que aquele ar sem vida – frustração profissional? Amor fulminado pelo veneno mortal da indiferença?

Já encontrei gente de companhia aérea hospedada no mesmo hotel que o meu e pude observar a alegria no hall, a quase algazarra quando à mesa do restaurante – sinais de alguma felicidade, suponho. Fosse eu um desocupado, bem que procuraria o hotel que o pessoal da Trip frequenta no Recife e iria ao café da manhã tantas vezes quanto necessárias até encontrar, entre seus colegas, a bonequinha de louça. Juro que estaria torcendo para vê-la alegre, conversadeira, sorridente. Assim apagaria a imagem que agora me incomoda toda vez que penso em pessoas infelizes.

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