26 fevereiro 2014

Civilização pajeúnica

No Vermelho:
Pois a vida tem sentido nesse rio metrificado
O rio Pajeú atravessa Pernambuco, desde a serra da Balança e deságua no S. Francisco. Seu nome significa, em tupi, “rio curandeiro”. Mas é também o rio dos poetas que tem, nas cidades ribeirinhas, o viço do verso popular, como se pode ver, em letra e imagem, neste O rio que não passa, de Inácio França, Tuca Siqueira, Alexandre Ramos e Cida Pedrosa, que a Editora Andararte acaba de lançar no Recife, cuja introdução Prosa Poesia e Arte reproduz aqui  

Por Alexandre Ramos

Existe rio em tudo que é lugar. Deles brotam comunidades, cidades, nações e até civilizações.
Linha que articula fragmentos de saberes, sociedades e territórios; que integra e cria um fio condutor de expressões, linguagens e sentidos. Rios como, se da água ou da falta dela, existisse uma liga construindo respostas para o cotidiano da vida e suas relações. 
Considerando os vales e rios como bens culturais, percebem-se suas relações com a produção do patrimônio material e imaterial de um povo. Referenciais da memória e da identidade de coletivos sociais, os sentidos das expressões de vida, das formas e da estética ligadas por veios aquáticos. Da cultura e do relacionamento com a água, constroem-se as condições da existência, as práticas correntes e também a arte nas suas diversas dimensões e finalidades. Do sagrado à sabedoria popular, todos se embebem desse vínculo e fortalecem hábitos e ações concretas, simbólicas e ambientais.
Uma civilização pajeúnica - É fato. Para existir civilizações é preciso ter água. Assim, grandes culturas se desenvolveram junto a rios importantes. Na China, o rio Amarelo foi fundamental; na Índia, o Ganges; na Mesopotâmia, os rios Tigre e Eufrates; no Egito, o Nilo. E o que seria de Paris, sem o rio Sena ou Londres sem o Tâmisa?
Civilização para existir requer identidades sociais, econômicas e políticas, mas também uma cultura específica, única. Prontamente, os rios são referenciais históricos e simbólicos que potencializam essas características civilizatórias e fortalecem o sentido das expressões e ações de regiões distintas. 
No vale do rio Pajeú, esses fatos se desenvolvem com naturalidade e com muita particularidade. Assim, rio e poesia se unem e, descendo o Pajeú, os corações batem no ritmo da métrica. Talvez seja um caso bem singular onde a população se identifica a partir do vale de um rio, revelando a força do território, da poesia e da relação entre ambos e ainda destacam para os que chegam: “bebendo da água daqui, serás contaminado pela poesia”. 
Operários da métrica, soldados da rima, monges da palavra, advogados de uma estética pajeúnica, constroem permanentemente um sentido de civilização. Onde, além do vale do Pajeú, é possível encontram pessoas que se cumprimentem nas ruas sob o título de poeta? E em cada “bom dia, poeta”, descobrem-se médicos, mototaxistas, agricultores, advogados e comerciantes que produzem sonetos, martelos, sextilhas, décimas, com a simplicidade de quem bebe um copo d’água.
Nesse caminho, a civilização pajeúnica se consolida com valores tão notáveis que até a missa é construída em versos. E o padre estimula a participação dos fiéis-poetas a partir do improviso e da métrica. Afinal o dom da palavra foi aguçado nas criaturas destas terras.  E para além da religião, essa civilização também é construída através de uma linguagem expressiva e representativa de uma cultura, de uma organização política que articula e fortalece a sociedade de poetas e, por fim, da expansão do território. Como em toda grande civilização, seu exército se expande permanentemente através de sua força poética, ocupando novos territórios com a sabedoria da conquista pela força da palavra.
Um rio de poesia - Sim. O rio Pajeú é um bem cultural maior que a água que passa ou não passa por ele. É um território mítico onde sol e chuva, natureza e sociedade se envolvem com um complexo sistema de relações sociais e se transfigura em poética. As dificuldades das secas ou as raras enchentes, a diversidade ambiental e a poluição das águas, tudo está interligado e expressado em rimas.
A aridez do solo e a carência de água, nesse caso, se revertem na abundância de versos.
Daí, a poesia corre pro Pajeú e o rio Pajeú vai despejá-las no meio do mundo, reforçando a expressão poética desse vale e o sentido de pertencimento a um território hidrográfico muito presente no imaginário popular.
Esse livro é resultado de uma pesquisa em história oral que desceu o Pajeú entre novembro de 2010 e maio de 2011 com o propósito de registrar a produção poética da civilização pajeúnica e as histórias de vida de seus poetas. Personagens percebidos como patrimônio imaterial dos municípios onde o rio é a liga e determina a identidade e o pertencimento a essa cultura. O intento era de compreender o conhecimento popular e suas relações socioculturais e ambientais a partir do exército de poetas de diversas gerações nos municípios com maiores referências no assunto. 
Não de trata de uma antologia que destaque poetas mais expressivos, é sim, um processo de compreensão de uma sociedade ribeirinha em um determinado tempo histórico. Desse feito, seria impossível conseguir a totalidade do registro da dimensão poética pajeúnica e então buscamos expressar a diversidade: homens e mulheres, jovens surgentes e consagrados autores, de formação erudita e popular. Trata-se assim de fragmentos dessa história numa tentativa de construção da identidade e valorização da cultura de um povo.
Um caminho de encantamentos - Em rios como o Pajeú, é possível perceber com mais facilidade a proximidade entre as condições naturais e o funcionamento da sociedade, pois a poesia consegue facilitar esse caminho, causando encanto e seduzindo o olhar para o lugar. Essa impressão positiva, traduzida numa espiritualidade mitológica, reforça a sacralidade entre o ser humano e a natureza, o afeto e o território, o sentido de pertencimento a um rio e sua poesia.
Nesse caminho, apreendemos uma realidade peculiar que envolve a memória e as condições socioambientais, com muitos significados complexos para descrição em poucas linhas: a saudade de uma condição natural ou de uma vida rural já inexistente, de um cheiro de chuva no terreiro, até do que não foi vivido como descreve a poeta Izabel Gouveia. E quando estão longe, a saudade do Pajeú é inspiração precisa. Essa saudade chega a tornar gente em rio como descreve o poeta Kerlle Magalhães, “é como se a gente fosse um rio”.
Nesse percurso encantado, tentamos reprocessar a cultura a partir do rio, compreendendo a relação entre poesia e rio, pessoas e território do vale do Pajeú, registrando a memória de uma civilização que, percebendo a beleza das mínimas coisas e das condições sertanejas, encontra forças e traduz tudo isso na palavra, na poesia. 
Para nós, que aprendemos um olhar diferente, metrificado, aprendemos a respeitar a poesia e tudo associado, seu tempo e sua territorialidade. E metrificando a vida, buscamos um sentido nesse rio-civilização-mundo-universo metrificado.

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