Cândido Portinari
A fome
voltou
Joan Edesson de Oliveira, no Vermelho
Conheço bem a fome. Quando criança, brincávamos de esconde-esconde com ela, que não raras vezes nos encontrava. Nunca passou, confesso, de fomezinha, minúscula. Há gradações na fome, na miséria, na pobreza, que as estatísticas nem sempre dão conta. As estatísticas não dão conta das gradações da dor que a fome provoca.
Entre a pobreza da minha infância,
nós éramos pobres, apenas pobres, sem adjetivos ou advérbios. Havia, numa
escala abaixo, os muito pobres e os miseráveis, aqueles para cuja sobrevivência
o nada já era muita coisa.
Não me orgulho disso. Não há
motivo algum para se orgulhar da pobreza, da miséria, da fome. Faço o registro
porque a fome voltou, e eu a reconheço onde a vejo, eu tenho gravado a fogo na
minha memória a sua cara feia, eu tenho tatuado no peito a dor que ela causa,
eu sei dela por todos os meus poros, e eu não a esqueço, não consegui, não
conseguirei jamais.
Tampouco tenho vergonha disso. Já
tive, muita, muita vergonha de ser pobre. É uma perversidade sem tamanho, e em
criança me ensinaram que eu era menos que os outros, que os outros eram
superiores, e que portanto eu devia me envergonhar da minha condição. Não mais,
nunca mais, prometi um dia a mim mesmo. Não me envergonharia mais disso.
Tampouco teria orgulho. É um registro apenas, uma condição de certa época da
minha vida.
Conheço a fome. A minha, fome
pequena, e a de outros, fome enorme, dentes arreganhados, a carantonha a
assustar o mais corajoso dos viventes. Naquele ciclo de seca do início da
década de 1980, entre 1980 e 1983, foi quando a vi mais de perto. Naquele então
ela já não me alcançava mais, mas atingia com força muita gente próxima a mim.
Há imagens daquele tempo que estão de tal forma gravadas em minha memória que é
como se eu as visse agora, nesse exato momento.
Não esqueço do homem em uma
bicicleta com o caixãozinho azul de anjo parado na porta da igreja, colocando
aquele minúsculo caixão nos braços e esperando que as portas se abrissem. O
padre estava viajando, mas ele só queria que o caixãozinho entrasse na igreja,
que alguém murmurasse uma prece, antes que ele amarrasse novamente o pequeno
esquife na garupa da bicicleta e fosse, sozinho com sua dor, enterrar o
anjinho.
Não posso esquecer os três irmãos,
tão pequeninos, mortos num único dia. Os caixõezinhos enfileirados, três
anjinhos mortos de fome. A mãe e o pai não choravam mais, não tinham mais
pranto. O rosto era uma máscara apenas, indiferença e resignação. Àqueles eu
acompanhei até a cova, pois a família, tão desfalcada, não era suficiente para
carregar os três até o cemitério. Aqueles me doem até hoje, até hoje me fazem
chorar quando sou, como agora, obrigado a esta lembrança.
Naqueles anos eu perdi a conta de
quantos anjinhos, em seus caixões azuis, vi desfilar nas minhas retinas. Eu
trabalhava ao lado da igreja, numa cidadezinha afogada em seca, fome, morte e
desolação, perdida no meio da geografia dos Inhamuns, nos sertões do Ceará.
Há outras imagens, como a do homem
que vi, em 1983, batendo com a cabeça no portão de ferro de um armazém de
milho. Eu o conhecia, era meu amigo. Como esquecer aquele desespero, aquele
homem que de tão faminto acreditava ser possível derrubar um portão de ferro
batendo nele com a cabeça? O portão caiu, outras cabeças e outras mãos e outros
braços se juntaram a ele, e eu aprendi ali que os castelos podem ser
derrubados.
Não posso esquecer do sargento da
polícia batendo no velhinho que juntava do chão os grãos de feijão, abandonados
pelo saque, um dentre tantos que presenciei, e levando-o preso mesmo ante o
protesto, ainda tímido e medroso, de tantos que pediam para não prenderem o
homem.
Acreditei que não precisava mais
recordar essas coisas. Acreditei que elas dormiam profundamente no fundo de
mim. Mas agora essas cenas retornaram. A fome voltou. Já anda livremente pelas ruas,
de mãos dadas com a outra anciã perversa, a morte. As duas buscam alimento
farto novamente pelos sertões, assolados por quase uma década de seca. Buscam e
encontram.
O golpe trouxe de volta a fome.
Ela está aí, esmurrando a porta. Eu a conheço, eu a reconheço em qualquer
lugar, e mesmo que por ora esteja a salvo, ela já atinge muita gente próxima a
mim.
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