Governo Bolsonaro e
políticas públicas: três notas sobre um desmonte histórico
Wederson Santos, Jornal GGN
Esse
texto tem pelo menos duas pretensões: 1. ser direcionado ao público que ainda
acredita no Governo Bolsonaro como aquele da mudança e da moralidade e 2.
apresentar um conjunto de reflexões sobre o impacto de decisões antitécnicas e
antirrepublicanas do Poder Executivo federal sobre políticas públicas e,
consequentemente sobre os direitos sociais do período pós-Constituição de 1988.
Escolhi três dimensões das políticas públicas para analisar. Poderiam haver
muitas outras. Mas as três escolhidas me parecem cruciais: a) acúmulo – para
evitar o uso de background – histórico na
implantação de políticas públicas, b) controle social e c) direitos humanos.
Certa vez, Karl Marx disse – sim, usarei Marx e não é uma
provocação; se Friedrich Hayek tivesse dito algo de impacto, também citaria
aqui – que “se houvesse coincidência imediata entre o nível aparente e
essencial dos fenômenos, qualquer conhecimento técnico científico seria
dispensado”. Essa afirmação válida para explicar grande parte dos avanços
humanitários a partir do Iluminismo, ajuda a pensar de forma precisa o Governo
Bolsonaro naquilo que ele tem de mais devastador: o obscuro encontro da cruzada
moral e de culto à ignorância com a destruição do Estado brasileiro erguido
desde Getúlio Vargas.
Com exceção das piadas e
dos pastiches, o bolsonarismo caracteriza-se principalmente pelo ataque às
universidades e ao conhecimento científico, defesa lacônica do pior Ministério
técnico já formado em governos brasileiros dos últimos 130 anos e pelo
patrulhamento violento do exército virtual do Presidente de qualquer discussão
baseada em evidências. A negação da ciência e da técnica não é só a marca
principal do bolsonarismo. É a condição de possibilidade para sustentação de seu
governo. E é nesse ponto que o governo Bolsonaro nada tem a ver com alternância
saudável de projetos societários na cambaleante democracia brasileira.
O
grupo que assaltou o poder em outubro do ano passado representa a antítese de
qualquer projeto coletivo. O revanchismo embebido em uma cultura de ódio e
desinformação tem contribuído para algo inédito na história brasileira: o
desmonte estrutural e definitivo do tardio Estado social montado a partir do
início dos anos noventa como a estratégia de implantação dos avanços
civilizatórios conquistados no texto constitucional do final da década de
oitenta.
Como essa façanha tem sido possível é a grande pergunta que
todos minimamente preocupados com o futuro deveriam se debruçar. De um lado, o
governo Bolsonaro faz isso partidarizando toda ação anterior de modo exaustivo,
por meio da demonização de qualquer avanço mínimo conquistado nos últimos
trinta anos para solucionar nossas mazelas seculares. Ao passo que distorce,
com a bovina ajuda dos exércitos virtuais, dados da realidade para justificar,
intensificando ou inventando, erros anteriores dos governos tucano e petista.
Como qualquer política pública exige um tempo de maturação razoável, a
acomodação entre arranjos institucionais, cultura social e jurídica e ambiente
político faz com que o amadurecimento das ações públicas e seus impactos na
vida da população seja bem mais lento que as necessidades por cidadania e
autonomia dos sujeitos requerem.
Por sua vez, a eficácia das políticas públicas pode, por outro
lado, ser induzida quando os cidadãos participam de forma efetiva da
formulação, implantação e avaliação das ações. Controle social nas políticas e
ações governamentais é uma das grandes conquistas desde o período da reabertura
democrática. É a ampliação dos espaços no exercício da cidadania para além das
eleições. É também o modo de fazer as políticas atenderem as necessidades reais
da população, monitorando e corrigindo a rotas das tomadas de decisões no
momento em que as políticas públicas tocam a vida das pessoas. Desde janeiro, o
governo Bolsonaro ridiculariza e criminaliza diariamente a participação social
e democrática nos rumos das políticas sociais – acabar com conselhos de
direitos é a mais evidente dessa destruição, mas não a única. As consequências
desses atos autoritários serão sentidas por gerações nas próximas décadas,
ameaçando definitivamente valores democráticos fundamentais para nós.
No que diz respeitos aos direitos humanos, nossos problemas
ainda são mais profundos. Direitos humanos é a trivial e também poderosa
construção histórica em que afirma que os indivíduos precisam de garantidas
protegidas para se desenvolverem e viverem as suas vidas com dignidade e
liberdade. O respeito à diversidade e o convívio saudável com as realidades
internacionais são requisitos para tal empreendimento. Um governo miliciano e
armamentista não representa só uma ameaça à garantia dos direitos humanos no
Brasil. Ele foi eleito justamente por corporificar em suas práticas o
imaginário de uma parcela da população que inacreditavelmente hostiliza os
direitos humanos como equívocos à convivência humana.
Os
dois ministros de Bolsonaro menos envolvidos em escândalos e polêmicas até
agora (Luiz Mandetta da Saúde e Osmar Terra da Cidadania), não coincidentemente
do MDB, são peças-chave para entender a cruzada bolsonarista contra os direitos
humanos. Eles não assumem o ideário radical, que é base da eleição de Bolsonaro
de negação dos direitos humanos. No entanto, também não fazem nada para
combatê-lo. E mora aí a principal ameaça.
Saúde e Cidadania são pastas que reúnem duas das três políticas
de seguridade social imprescindíveis para a garantia dos direitos humanos no
país. Sem saúde e assistência social todos os demais direitos sociais estão
ameaçados. O desmonte da saúde e da assistência social, e da já praticamente
inexistente previdência, é a principal ameaça às conquistas sociais do nosso
pacto de 1988. Mandetta e Osmar Terra sabem disso e resolveram (o primeiro
mercantilizar e inviabilizar e, o segundo, moralizar com verniz tecnicista e
fiscal) desfigurar as principais políticas sociais brasileiras. A história será
implacável com os dois. Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais são objetivos fundamentais da República e não
valores do comunismo. Os dois ministros médicos se esqueceram disso?
Não se trata de respeito ao jogo democrático uma resiliência ao
governo Bolsonaro, aquietando-se nossas revoltas diante das práticas
destrutivas ao tecido social brasileiro. Não estamos falando de um governo que
simplesmente tem uma plataforma política e programas governamentais diferentes
ideologicamente do que já tivemos. Trata-se de uma aposta tirânica de aniquilar
consensos históricos sobre nosso convívio civilizado, enquanto se destrói aos
poucos qualquer canal de diálogos e, daqui a pouco, de enfrentamentos.
Se
ressentimento não é capaz de explicar por si só o antipetismo, tampouco
respeito à esperança de uma horda de desinformados constitui-se valor a ser
acrescido à cultura democrática. Bolsonaro nunca foi e nunca será figura
relevante para a República brasileira. Seu legado destrutivo para as políticas
públicas será irônica e exemplarmente a principal evidência de seu DNA do
atraso, de seu compromisso monstruoso com práticas fascistas que arrastam o
Brasil para o passado de ocaso para matar qualquer futuro possível. Até quando
vamos deixar?
Wederson Santos – Assistente
social do INSS, mestre em Política Social e Doutor em Sociologia.
[Ilustração: Jlishinfing]
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