02 dezembro 2019

Uma crônica sobre consumismo


Então é Natal

Cícero Belmar

 

Pessoas esbarrando umas nas outras nos corredores dos shoppings centers, pisadelas e xingamento. Lojas parecendo formigueiros oferecem produtos de péssima qualidade, vendidos a peso de ouro. Empurrões e filas quilométricas. Lá fora, transportes coletivos igualmente lotados e calorentos, barulho ensurdecedor e clima de excitação geral. Não há dúvida nenhuma: este purgatório é o sinal de que o Natal está chegando.

Imagine como isso não estará em mais duas semanas.

Haja néon, pisca-pisca, efeitos especiais. Quando a criatura imagina que essa experiência é a representação, na terra, do inferno de Dante, descobre que pode ficar pior: por onde você passa só escuta a voz monocórdica de Simone, a entoar, nos graves, Então é Natal. “E o que você fez?”. Até parece que os estabelecimentos do mundo inteiro se combinaram para tocar somente essa lavagem cerebral que foi gravada quando Matusalém era menino.

No início de dezembro e por todo o mês, já virou tradição: todo mundo se esquece que o Natal deve ser a comemoração do aniversário do Menino-Deus e acredita que é a festa do consumo. Ligado nessa contradição, o papa Francisco, que para mim é um servo de Deus, aproveitou os preparativos do Black Friday, ocorrido na semana passada, e mandou um recado que vale para todos os 31 dias: “Consumismo é como uma doença”.

Doença da alma. Que impede a prática da generosidade. “É uma doença séria, o consumismo, de hoje. Eu não digo que todos fazemos isso, mas gastar mais do que precisamos, é uma falta de austeridade de vida. Esse é um inimigo da generosidade”, disse o pontífice. Ele aproveitou para alertar que as pessoas procurem “fazer o bem”, em vez de gastar com supérfluos, e que ajudem umas às outras “como for possível”.

A fala de Francisco, que eu copio aqui por que tem tudo a ver com essa crônica, é um apelo corajoso. Quando diz para fazermos o contrário do que o consumismo (e a ostentação) nos impõem, ele está mostrando que nós faríamos mais negócio, acumulando prestígio junto ao dono da festa, se lembrássemos do legado que Ele nos deixou através de suas Palavras.

Francisco sugeriu uma atitude nova, simples e admirável, se considerarmos que o senso de justiça (trocar o consumo pela generosidade) precisa estar nas nossas ações diárias nesse tempo natalino. Generosidade, todos sabemos, é oferecer o que temos, em vez de só gastar. É ajudar a fazer justiça (social). Em última análise tem a ver com a compaixão de se saber colocar no lugar do outro e sentir a dor dos que necessitam.

Não é fácil fazer isso num mundo onde o consumo é prática incentivada pelos dirigentes das nações e identificada como a razão do desenvolvimento. A nossa sociedade criou doentes ao estimular a existência de pessoas consumistas baseada na teoria de que, quanto mais se consome, maior é a estabilidade econômica de uma região, de um país. (Só que não: enquanto assistimos ao crescimento desenfreado do consumismo, também constatamos que são maiores os problemas financeiros das pessoas, das famílias e dos governos).

Sem contar que existe, sim, uma relação entre o consumismo e o meio ambiente. Não estou com discurso fácil ou querendo fazer pose de ambientalista. Mas é um fato que para aumentar a demanda da produção, retira-se a matéria-prima de onde? Elementar: tudo precisa de água, energia elétrica e de transporte. A emissão de gases gera degradação e destruição de ecossistemas. Por aí vai. E enquanto mais se consome mais se gera lixo. É um ciclo.

Na contramão desse mundo contemporâneo maluco, este papa Francisco é um subversivo. É a Voz que clama no deserto da globalização. Um transgressor.

[Ilustração: LS]
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Cícero Belmar é escritor e jornalista. Autor de contos, romances, biografias, peças de teatro e livros para crianças e jovens. Membro da Academia Pernambucana de Letras.

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