24 agosto 2021

Crônica da terça-feira

Os baobás são eternos

Cicero Belmar*

 

Muitas coisas podem ser ditas sem o uso das palavras, sem a frase pronunciada. A linguagem dos nossos gestos desafia e esclarece: se alguém planta um baobá, por exemplo, pode estar falando da superação do tempo. Da sobrevivência. Da resiliência. O baobá, todos sabemos, é árvore que atravessa os séculos, alcança um milênio.

Há uma lógica presente em cada gesto nosso, de cidadãos comuns. Muito mais no dos políticos que agem com objetivos específicos. Na política, a simbologia é inerente à ação. Uma muda de baobá foi escolhida, não por acaso, para ser plantada pelo ex-presidente Lula quando esteve, semana passada, em Pernambuco. A nós, cabe a tarefa de decifrar as metáforas.

O baobá vem de longe. Da África. Da noite dos tempos. Tem significados. A imprensa é que não deu importância ao fato. A muda foi plantada no assentamento Che Guevara, da reforma agrária, em Moreno, Região Metropolitana do Recife. Logo, entrei em contato com Fernando Batista, amigo do lado esquerdo do peito, para ouvir sua opinião.

Era a primeira vez que Lula visitava seu estado natal, desde que o STF o inocentou dos processos movidos contra ele. Era, também, o início de uma caravana por vários estados do Nordeste. Cada coisa, portanto, estaria planejada. Aquela história: se desejamos falar da esperança, começamos assumindo gestos que evoquem a esperança.

Mestre em Antropologia, Fernando Batista, ele mesmo um disseminador de baobás, concordou: o plantio era simbólico. Antes de tudo, é preciso dizer que a espécie é originária do continente africano. Quando os negros eram trazidos à força para serem escravizados no Brasil, muitos se despediam da árvore. Ela está na construção histórica do povo.

“Mais política do que esta árvore, impossível. Ela se tornou um emblema da luta do negro. Pela sua longevidade ela é superação e resistência. O uso dela no atual contexto, representaria a sobrevivência, a superação, a certeza de que vamos presenciar um outro momento da nossa história”.

Fernando mora em Salvador (BA), mas plantou diversos pés de baobá quando residia no Recife. “É uma árvore que fala de continuação da vida. Por atravessar os séculos, ela é testemunha ocular de fatos; de desgraças que o povo venceu. Portanto, ela marca a vida de muitas pessoas, torna-se elo de diversas gerações. Tem a ver também com o conceito de ancestralidade. Em Pernambuco, o baobá tem valor afetivo, histórico e filosófico”. Mais ainda: “É uma árvore que tem nomes e sobrenomes”.

Desde o início do século 20, segundo Fernando, pessoas residentes no Recife como Napoleão Barroso Braga, José Pereira Leite, Oswaldo Martins de Souza e Irineu Renato Barbosa, se sensibilizaram com os baobás. Propagaram ou protegeram exemplares da espécie, identificada como uma das mais antigas do planeta.

“Eu tenho até certidão de nascimento de um baobá. Um grupo de pessoas redigiu a certidão dizendo hora, local, dia, mês e ano em que a muda foi plantada. E todos os que estavam presentes atestaram o plantio. Tudo foi registrado, como numa certidão formal”, relatou Fernando.

Disse, também: o poeta João Cabral de Mello Neto, pernambucano, era maravilhado com os baobás. Escreveu três poemas, “Um baobá no Recife”; “Baobá no Senegal” e “Baobá como Cemitério”. A árvore também foi associada (durante protesto realizado em 1988, no Recife) a um ícone da cultura negra, o poeta Solano Trindade, autor de uma obra fortemente social, entre elas “Gravata Colorida” e “Tem Gente com Fome”.

Fernando planta baobás desde 2002. A partir de 2003, começou a produzir mudas e as primeiras doadas foram para Francisco Brennand. Na Oficina Brennand, vingaram três. A partir de 2005, levou baobás para Salvador. Há um no Terreiro da Casa Branca, evocando a ancestralidade negra.

Num plantio realizado por Fernando, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 21 de fevereiro de 2006, participaram muitas autoridades do Candomblé da Bahia. O baobá foi plantado sob ritual da religião.

Voltando ao assunto inicial: muitas pessoas estiveram no ato e agora são consideradas testemunhas de nascimento da muda que o ex-presidente Lula plantou, em Pernambuco. Baobá para futuras gerações: as emoções profundas também são feitas de posturas. O silêncio também comunica.

*Jornalista, escritor, membro da Academia Pernambucana de Letras

. Veja: Um encontro entre velhos companheiros de luta https://bit.ly/3kbDHqq

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