Tinhorão foi contraditório, mas fundamental ao unir música e Brasil
Sem o pesquisador, muito da
história de nossa música ainda estaria na penumbra
Fábio Palácio, na Folha de S. Paulo
Em que pesem incongruências e um marxismo por vezes esquemático, José Ramos Tinhorão representou para a música popular o que Celso de Magalhães, primeiramente, e Câmara Cascudo, mais tarde, representaram para os estudos de folclore.
Referindo-se,
no livro “Música, Doce Música”, ao “despontar da consciência nacional”, Mário de Andrade dizia que “se esta
alguma vez se manifestou com eficiência na arte, unicamente o fez pela música”.
Difícil não recordar essa célebre sentença quando se pensa no jornalista,
pesquisador e crítico José Ramos Tinhorão.
Morto em 3 de
agosto, aos 93 anos, ele teve papel destacado nas diversas
atividades que desempenhou, a começar pelo trabalho como jornalista arguto nas
Redações de veículos como Diário Carioca e Jornal do Brasil.
Ali
desenvolveu o veio de pesquisador e crítico cultural que o tornaria célebre.
Também ali ganhou, por iniciativa do lendário Pompeu de Sousa, o apelido que o
acompanharia por toda a vida. “Tinhorão” é o nome de uma planta venenosa do
gênero Caladium, uma referência ao caráter implacável de suas críticas.
Foi um
operário dos conhecimentos. Sem o acúmulo
documental que reuniu, muitas informações sobre a história de nossa música
ainda estariam na penumbra. Diria mesmo que ele representou para a música popular o que
Celso de Magalhães, primeiramente, e Câmara Cascudo, mais tarde, representaram
para os estudos de folclore.
Tinhorão,
desconfio, concordaria com a frase de Mário de Andrade que abre este texto.
Afinal, no núcleo de seus esforços sempre esteve a busca pelas raízes nacionais
e populares de nossa música. Era sua convicção
que gêneros como o maxixe, o choro e o samba representam momentos do
amadurecimento da consciência popular e do concomitante avanço do ideal de
nacionalidade.
O maxixe foi
nossa primeira síntese musical genuinamente popular. Resulta da expansão das
camadas urbanas. Com o fim do regime escravocrata, ampliavam-se os contingentes
de trabalhadores livres. Muitos vinham das fazendas para as cidades, e passavam
a usufruir de vida mais diversificada.
Como parte
desse processo, viria o contato com a polca e outras danças europeias de salão,
incluindo a schottisch e a mazurca, que logo transbordariam dos salões das
elites para as salas de visita das classes populares.
Esse processo
remodelou a forma como esses gêneros eram dançados, pois as novas camadas
urbanas lhes introduziam passos antes desconhecidos —resultado da liberdade
performática própria da cultura popular.
Como narra
Tinhorão em sua “Pequena História da Música Popular”, o maxixe resultaria da
diligência dos instrumentistas “em adaptar o ritmo das músicas à tendência aos
volteios e requebros de corpo com que mestiços, negros e brancos do povo
teimavam em complicar os passos das danças de salão”.
Processo
semelhante faria surgir o gênero denominado choro. Ele é produto do trabalho
sobre elementos do maxixe e do antigo lundu —gênero que designa tanto uma dança
ritual de origem negra quanto um tipo de canção urbana contemporâneo da
modinha, e que, segundo Tinhorão, sempre revelou “uma inegável procedência
brasileira”.
É assim que,
através de sucessivas sínteses e metamorfoses —que incluem a polca-lundu, o
tango brasileiro, o maxixe e, finalmente, o choro e o samba—, a música feita no
Brasil vai se transformando em música brasileira.
Não
confundamos as duas coisas. Música feita no Brasil sempre houve, mas, até
meados do século 19, era por demais dispersa e fragmentada para que pudesse
gerar uma síntese nacional. O que havia então eram cantos e danças indígenas e
africanos, cancioneiro do europeu colonizador, canção rural, danças de salão,
hinários católicos e bandas militares. Tudo isso, explica Tinhorão, eram apenas
os vetores iniciais de algo que só mais tarde se iria estabelecer:
“Para que
pudesse surgir um gênero de música reconhecível como brasileira e popular,
seria preciso que a interinfluência de tais elementos musicais chegasse ao
ponto de produzir resultante, e, principalmente, que se formasse nas cidades um
novo público com uma expectativa cultural passível de provocar [...] essa
síntese”.
O Rio do final
do século 19 e início do 20 foi o laboratório onde se operou essa
transfiguração. Ao descrevê-la, Tinhorão mostra que, assim como Mário , via na
música um lugar privilegiado de expressão da consciência autóctone.
Ele ocuparia um
lugar próprio no campo do nacionalismo cultural. Sua formação
marxista o levou a enfatizar os efeitos, sobre nossa música, das deformações
resultantes de um modelo econômico dependente.
Tinhorão
sempre insistiu no caráter postiço da renovação musical brasileira que se
operou nos anos 1950-60. Elaborou
de modo paradigmático a tese de que o movimento da bossa nova (como também,
mais tarde, o tropicalismo) teria sido deflagrado a partir de uma
linha internacionalista, à custa da assimilação de recursos da música
norte-americana.
A bossa nova,
para Tinhorão, refletia os impasses do desenvolvimento brasileiro, entre eles a
aguda estratificação social que, no Rio de Janeiro, chegava a se consubstanciar
em apartheid geográfico, com os pobres habitando os morros e o subúrbio, e os
mais aquinhoados vivendo na Zona Sul.
Essa situação teria acarretado o surgimento de uma camada de jovens desligados
das tradições populares. Nessa realidade de desenvolvimento desigual e
dependente, a tradição jazzística norte-americana encontrou terreno fértil para
florescer.
Tal
interpretação logo despertaria polêmica. Tinhorão seria criticado não tanto
pela denúncia da dependência, mas por sua excessiva concentração na dimensão
sociológica. Isso o teria levado a traçar linhas de causalidade muito diretas,
desprovidas de maiores mediações, entre a base econômica e o plano propriamente
cultural.
O discurso
musical assumia, nessa perspectiva, caráter de mero reflexo, suas causas
últimas residindo em uma realidade preexistente. Bastava essa comparação, na
verdade uma remissão, e todas as características do produto musical surgiriam
cristalinas.
Essa posição
era própria de um primeiro momento da crítica cultural marxista. Embora tivesse
conhecido variações, algumas alcançando maior sofisticação, representou
considerável obstáculo à análise de autores como Joyce, Hemingway e Proust.
Preso às
férreas determinações da economia, esse marxismo primordial não examinou
adequadamente a complexidade de um campo que lida com hábitos, percepções,
experiência, valores, linguagem.
Os problemas
dessa abordagem começam a ser superados por pensadores como Antonio Gramsci,
Siegfried Kracauer e Walter Benjamin, e alcançam novo patamar com uma geração
mais recente de autores marxistas que inclui nomes como Raymond Williams e
Fredric Jameson.
Porém, mesmo
quando consideramos o aspecto estritamente sociológico, é preciso atentar para
o fato de que o fenômeno da dependência não se inaugura, em nosso país, apenas
no século 20. Já no período anterior o Brasil revelava, em seu processo de
desenvolvimento, as chagas da subordinação econômica, que também se refletiram
nos rumos da música de então.
O próprio
Tinhorão faz referência à progressiva substituição do oficlide pelo saxofone,
entre fins do século 19 e início do 20, como “um primeiro sintoma de alienação
que marcava o advento da influência esmagadora da música norte-americana no
Brasil”.
Seria,
de fato, muito otimista pensar que a influência estrangeira sobre a música
brasileira tenha começado nos anos 1950, com a bossa nova. Mário de Andrade, em
seu “Ensaio sobre a Música Brasileira” (1928), já apontava, referindo-se ao
maxixe, que esse gênero se encontrava crescentemente “infiltrado” pelos
foxtrotes americanos.
Nem
por isso o pioneiro do modernismo lhe negava originalidade. “Tanto mais curioso
que os processos polifônicos e rítmicos de jazz que estão nele não prejudicam
em nada o caráter da peça. É um maxixe legítimo. De certo os antepassados
coincidem.”
“Os
antepassados coincidem”: Mário revela visão ampla da história da música. De
fato, o mesmo impressionismo francês e as mesmas polcas e mazurcas que nos
Estados Unidos se fundiram aos shouts e worksongs, aos field hollers e blues
para formar o ragtime e toda a corrente do jazz, no Brasil se uniram ao lundu e
outros ritmos populares para formar a corrente do samba. Corrente da qual,
rigorosamente consideradas as dimensões rítmica, melódica e harmônica, não há como
excluir a bossa nova.
Nesse
ponto costumava insistir Tom Jobim. Como destaca a pesquisadora Ana Suzel Reily
em artigo na prestigiada revista Popular Music, “Jobim foi sempre inflexível
que a única relação que sua música tinha com o jazz resultou
de seus ancestrais comuns”. A bossa, para Tom, é filha do samba e do choro. É
um samba renovado ritmicamente e que eleva à plenitude as possibilidades
harmônicas contidas em germe no choro.
É
o samba ganhando aprimoramento e universalidade, como aliás não deixa de
reconhecer o próprio Tinhorão, quando, ao citar o musicólogo Brasil Rocha
Brito, define o movimento da bossa-nova como “o culto da música popular no
sentido de integrar no universal da música as peculiaridades específicas
daquela”.
Se, apesar de
tudo, o trabalho de Tinhorão abrigou incongruências, o maior
dos equívocos seria usá-las para reduzir sua contribuição. Tinhorão foi, ele
próprio, manifestação viva da consciência nacional de que nos falava Mário de
Andrade. Diria mesmo que ele levou ao extremo as preocupações e o projeto
nacionalista que não eram apenas de uma vertente do modernismo.
Hoje,
quando nos aproximamos dos cem anos do movimento de 1922, vale reiterar: a
construção plena da nacionalidade era aspiração do conjunto da geração
modernista.
É
verdade que havia ali uma ala mais cosmopolita, que parecia secundarizar os
objetivos de afirmação nacional em prol do compromisso prioritário com o
universalismo.
Em
“Música, Doce Música”, Mário de Andrade contraria essa visão. Ao discorrer
sobre as relações entre nacional e universal, conclui que todo universalismo
desprovido de esteios na realidade nacional degenera em cosmopolitismo
abstrato.
Ora,
músicos como Villa-Lobos e Tom Jobim surgem alinhados a essa perspectiva
programática que busca não qualquer universalismo, não a modernização pela
modernização, mas uma arte que, enraizando-se na idiossincrasia brasileira,
projeta-se a partir desse sólido alicerce para conquistar vida universal.
Essa
visão codifica, no plano cultural, o projeto de afirmação do Brasil, de sua
singularidade e de seus interesses. Programa bem enunciado por Darcy Ribeiro
quando, em “O Povo Brasileiro” (1995), postula que o Brasil avança
“prodigiosamente como uma morena humanidade em flor, à espera de seu destino.
Claro destino, singelo, de simplesmente ser, entre os povos, e de existir para
si mesmos”.
Tinhorão
associou-se de forma convicta a esse projeto. Nessa chave deve ser entendida
sua notável contribuição.
Fábio
Palácio - Jornalista,
doutor em ciências da comunicação pela ECA/USP e professor de jornalismo da
UFMA (Universidade Federal do Maranhão)
.
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