Feliz Ano Novo em Santana do Ipanema*
Luciano Siqueira
A essa altura da vida já dá pra rememorar muitas passagens de ano – dos inocentes tempos de criança às complexas e ricas experiências da idade adulta. Romper o ano tornou-se importante em todas as fases da vida – e invariavelmente emocionante, inesquecível. A primeira emoção de menino ao ver as pessoas se abraçarem saudando o Ano Novo e a vovó Neném, destoando de todos, chorando de saudade do Ano Velho que se ia para sempre. A indescritível sensação de estar fazendo História ao entoar, em coro improvisado, no pavilhão dos presos políticos em Itamaracá, o estribilho da Internacional: “Bem unidos façamos/dessa luta final/uma terra sem amos/a Internacional”
A mesma sensação experimentada pelo jovem casal de comunistas constrangido a viver a passagem de ano no porão de uma modesta casa de Santana do Ipanema, no sertão das Alagoas, à luz de lamparina, os olhos atentos às imensas baratas que nos causavam asco e o receio de que escorpiões aquartelados num monte de carvão e metralha nos atacassem a qualquer momento. É que havíamos sido condenados a permanecer naquele espaço exíguo e sujo por alguns dias, após sermos comunicados pela proprietária que a moradia alugada um mês antes, com a garantia de que no dia 30 de dezembro estaria desocupada, ainda acolhia a filha e o genro em vias de se transferirem para o Rio de Janeiro.
Havíamos trazido na carroceria de um caminhão, desde a estação ferroviária de Palmeira dos Índios, nossos poucos pertences e a mobília tosca e mínima. Não tínhamos para onde ir, nem dinheiro para nos alojarmos num hotel. Éramos vendedores ambulantes de confecções, apenas alguns trocados no bolso. Estávamos nos mudando de Maceió para Santana do Ipanema em função do plano estratégico do Partido para a região.
Como gostaríamos de estar naquele instante entre pessoas queridas, junto a familiares e a companheiros de luta, ou mesmo ao lado dos novos vizinhos que ainda não conhecêramos! Porém uma ponta sequer de tristeza nos acometeu, muito mais forte era a chama que nos nutria – e que cuidamos de atiçá-la no primeiro dia do ano, refletindo sobre o ocorrido enquanto passeávamos pela cidade de mãos dadas, falando de amor e revolução.
Mais tarde, após os duros anos de clandestinidade, da prisão e das torturas, e já com a presença de Neguinha e Tuca, a passagem de ano se tornou um ritual à beira-mar, poético e divertido, que repetimos todos os anos, onde não falta (que não se tome como sacrilégio) a oferta de flores a Iemanjá. Este ano, além de sobrinhos e genros, a novidade é o todo-poderoso Miguel, o primeiro neto, o olhar atento e o sorriso fácil de quem nasceu há pouco menos de três meses.
Vivemos tão intensamente o tempo presente e são tantos os planos para o futuro, quase não há como nos ocuparmos do que passou. Mas permanece marcante e carinhosa a lembrança daquela noite em Santana do Ipanema.
(Publicado no portal Vermelho em 2006, incluído em meu livro de crônicas Como o lírio que brotou no telhado – Editora Anita Garibaldi, São Paulo, 2007).
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Veja: Nas redes, sim; mas sem fake news https://bit.ly/2CWRmy4
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