19 fevereiro 2024

Raul Córdula opina

Primavera negra

Raul Córdula*


A primavera de 68 se anunciava pesada. Mesmo caminhando sobre o tapete fúcsia das flores de jambo da Rua Almirante Barroso ou sob o céu rosado das canas-fístula floridas na Epitácio Pessoa, nosso olhar era tenso, nossos ouvidos atentos. "A primavera / filha que esperas / a primavera / te há de trair", escreveu o poeta russo Alexandre Bloch, curiosamente lido com muita atenção naqueles tempos de chumbo. A primavera nos aprontava a traição do AI5, criava o clima perfeito para um Estado Totalitário: o reinado de Saturno sobre o Brasil.

No corredor urbano da Avenida Getúlio Vargas, que ia da Faculdade de Filosofia (FaFi), passando pelo Liceu Paraibano até o Clube do Estudante Universitário (Cassino da Lagoa) o reinado era, então, dos estudantes secundaristas e universitários que clamavam por respostas, gritavam suas palavras de ordem, mostravam suas caras com a perplexidade e a insegurança que anunciam a dor. O Liceu era uma usina de liberdade, a Lagoa nossa arena de luta.

A Reitoria da UFPB, que funcionava na época no belo edifício da Lagoa projetado pelo arquiteto Leonardo Stuckert, tinha programado para a galeria de arte instalada no hall uma série de exposições de artistas plásticos ligados ao seu Departamento Cultural, como Breno de Mattos, Celene Sitônio, Archidy Picado. Eu estava entre eles, e chegara minha vez.

pop art foi um movimento artístico libertador em escala mundial. Sua influência se fez sentir do Brasil ao Japão. No Brasil foi estratégica a ação direta da linguagem proposta pela pop art coada por nossa antropofagia revisitada na questão da ideologia através da arte. Podemos avaliar hoje a simplificação da leitura do símbolo que a pop art nos legou por intermédio da forma direta e popular de representar o mundo com influência das artes gráficas e da publicidade. A pop art trazia a linguagem perfeita para aqueles tempos ferozes, pois não era verbal, mas mesmo assim dizia mais que mil palavras. Fato digno de nota é que pela novidade das novas linguagens que aqui se ensaiavam nunca se viu espaços expositivos como galerias e museus funcionarem com sentido político tão coerente e forte como naquele momento cultural.

Antropofagicamente devoramos e digerimos a linguagem do dominador americano e a transformamos na nossa forma de ser e pensar. Primeiramente a influência da pop art se manifestou nos movimentos da vanguarda carioca e paulista, como a Nova Objetividade carioca e a Escola Brasil paulista, por exemplo, e posteriormente no Tropicalismo, que nasceu nas artes plásticas com a instalação Tropicália, de Hélio Oiticica, e floresceu definitivamente, libertando a expressão brasileira do preconceito com sua própria identidade.

A exposição que fiz na primavera de 68 no hall da Reitoria da UFPB era um grito tropicalista de influência pop, como era preciso e correto num artista e ativista comprometido com seu momento, na difícil realidade do pré - AI5. Apaixonado pela nova literatura americana pós beatniks, como os livros de Kerouac e Bradbury, fui encontrar em Henry Miller inspiração para o quadro Primavera Negra, um corpo negro sangrando, nádegas brancas de mulher num campo vermelho. Leitor de José Américo e José Lins, o Cangaceiro Pop via o mundo através de um prisma no cabo de seu punhal. Ponha Um Tigre No Seu Canto, música do magnífico Marcus Vinícius de Andrade, inspirou uma série de Guardiões, grandes felinos que ameaçavam a quem se aproximassem de corpos de mulheres virgens e nuas. Memória Negra, no entanto, era uma série de pinturas que falavam mais diretamente, referia-se à morte do estudante Edson Luiz vítima de um tiro disparado pela polícia nos movimentos grevistas do restaurante universitário do Calabouço, centro do Rio de Janeiro. A exposição era composta por este repertório muito mais romântico e sincero do que explosivo.

Os guardiões da Virgindade e Memória Negra não agradaram, porém, aos “guardiões da moral e dos bons costumes” que já preparavam psicologicamente o momento crucial que culminou com o AI-5. No dia seguinte ao vernissage, às três da tarde quando eu recebia alunos do Liceu para uma visita à mostra, o Conselho Universitário re unido extraordinariamente decidiu, não por unanimidade, censurar a exposição. Alguns funcionários da segurança do prédio, coitados, receberam a incômoda missão de desmontar a exposição sob o tumultuado protesto dos estudantes lá reunidos.

Tempos de chumbo são também tempos de solidariedade. Os amigos Wills Leal, alguém que traz a nobreza de caráter no próprio nome, e o poeta/pensador Jomard Muniz de Brito, redigiram o manifesto Por Uma Exposição Censurada. O protesto tornou-se público e geral na cidade indignada de João Pessoa.

A perda que senti, apesar da dolorosa sensação de mal estar que qualquer censura pública provoca, não era uma perda pessoal, os quadros não foram destruídos nem danificados pelos funcionários da universidade que, aliás, trataram os quadros e o artista com o maior respeito que lhes era possível ter naquelas circunstâncias, a perda era a da consciência coletiva de liberdade que sentíamos fugir de nossas vidas, como algo que nos foge pelos dedos. Pior do que retirar os quadros das paredes foi retirar os quadros que estavam para nascer nos nossos corações.

No dia seguinte à censura uma nota da Casa Civil do Governador João Agripino, enquadrada na primeira página do jornal O NORTE, dava conta de que o Governador não admitia censura no seu Estado, e colocava à disposição do artista qualquer edifício público estadual para mostrar sua obra. A exposição foi remontada dias depois na Galeria José Américo de Almeida do Teatro Santa Roza. Onde há repressão há também solidariedade...

Conto hoje essa história como forma de assinalar os 30 anos do AI-5, e para dar aos jovens artistas, e a todos aqueles que, como os artistas, são interessados no lado construtivo da vida, o depoimento de quem viveu e sofreu as conseqüências de ações políticas autoritárias que não estão, de forma alguma, livres de serem repetidas se não houver o exercício constante da democracia e da liberdade de expressão. Não fui o único artista brasileiro, porém, a sofrer repressão, toda produção do pensamento inteligente do Brasil foi censurada com o AI5. - Olinda, 1998


Por uma exposição censurada
Manifesto de autoria de Wills Leal e Jomard Muniz de Brito
contra a censura à exposição de Raul Córdula
no hall da Reitoria da UFPB por ordem do seu conselho universitário.


1 Foi Raul Córdula quem pintou pela primeira vez na História da Arte, um nu? O nu na arte era inédito até Raul Córdula?

2 O Livro da “Gênesis” é imoral, constitui atentado à moral da família paraibana? E o “Cântico dos Cânticos, está no index?”.

3 A imoralidade está na obra ou na perspectiva de quem a vê? Os nossos doutores provincianos se escandalizariam diante da Vênus de Milo? e o teto da Capela Cistina ? e o “Eterno Ídolo”, de Rodin? e o “Jardim das Delícias” de Jeronimus Bosch? e o “Almoço no Campo”, de Manet? e – mais recentemente – Modigliani, Picasso, Salvador Dali? Os vigilantes de nossa moral já se preocuparam em retirá-los dos museus ou tentaram queimar suas reproduções?
4 A quem compete o julgamento das obras de arte?

5 Realmente, são tão poucas as nossas “censuras” que devemos adotar mais uma – a censura estética?6
6 O artista tem o direito de ser livre? O público também tem direito de escolher, de julgar? Não é a juventude a idade crítica por excelência, segundo os tratados de psicologia?

7 Os zelosos da moralidade deveriam proibir a circulação de todas as revistas modernas?

8 Sabem os nossos catedráticos que a Arte é objeto de estudo em todas as Universidades SÉRIAS do mundo?

9 Os nossos “censores” já procuraram ver os desenhos infantis? Pode-se fazer Educação pela Arte com censura, qualquer que seja?

10 Poderemos morrer em qualquer guerra em defesa de nossas tradições? Afinal, os nossos “censores” já procuraram remédio para sua menopausa cerebral?
João Pessoa, 1968

[Ilustração: Raul Córdula/Itaú Cultural]

*Artista plástico, curador e crítico de arte
Um mundo em transição https://bit.ly/3Ye45TD

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