17 outubro 2024

Cláudio Carraly opina

Ocidente x Oriente: quem vai quebrar o espelho?
Cláudio Carraly* 


Ao longo da história, o Ocidente e o Oriente desenvolveram sistemas de pensamento, governança e valores, muitas vezes apresentados como opostos ou complementares. O Ocidente é tradicionalmente associado à democracia, liberdade individual e racionalidade, especialmente após o Iluminismo do sé culo XVIII. Por outro lado, o Oriente, com sua rica herança filosófica – que inclui o confucionismo, budismo e taoismo – é frequentemente ligado à busca por harmonia social, ordem e hierarquia.

No entanto, essa narrativa simplificada ignora as contradições e nuances que caracterizam ambas as regiões. Com a ascensão de potências emergentes, como China, Índia e Brasil, e o impacto crescente da globalização, mudanças climáticas e tecnologias disruptivas, ess as divisões tradicionais estão sendo questionadas, como o mundo contemporâneo se moldará diante dessas forças? Veremos uma fragmentação ou maior unificação dos sistemas de pensamento e governança?

A democracia, um dos legados mais celebrados do chamado Ocidente, remonta à Grécia Antiga, Atenas, frequentemente vista como o berço da democracia, permitia que seus cidadãos – apenas homens livres nascidos na cidade – participassem diretamente das decisões políticas. No entanto, esse modelo excluía mulheres, escravos e estrangeiros, criando uma hierarquia social que se manteve em várias formas ao longo da história ocidental. Mesmo com a evolução das democracias representativas modernas na Europa e nos Estados Unidos, a inclusão de minorias foi uma batalha prolongada e violenta, com movimentos pelos direitos civis, feminismo e lutas anticoloniais lutando por justiça.

No Oriente, os sistemas de governança seguiram diferentes trajetórias, na China antiga, o confucionismo introduziu um sistema meritocrático, no qual governantes eram selecionados com base em exames que avaliavam seu conhecimento e habilidades morais. Isso permitia mobilidade social, em contraste com a aristocrac ia europeia medieval, que era baseada no nascimento. No Japão feudal, o sistema de Shogunato estabeleceu uma rígida hierarquia militar, que garantiu estabilidade por séculos, mas limitou profundamente as liberdades individuais.

Esses sistemas excludentes, tanto no Ocidente quanto no Oriente, justificavam suas hierarquias por meio de filosofias ideológicas próprias, os ocidentais, com o racismo científico e o colonialismo pós-Iluminismo, perpetuou a exclusão política baseada em teorias de superioridade racial, enqua nto os orientais, justificavam a exclusão frequentemente pela ordem social confucionista, que via cada indivíduo ocupando um lugar específico na hierarquia, diminuindo a possibilidade de mobilidade social.

O Oriente Médio, lar de grandes religiões monoteístas como o Islã, Cristianismo e Judaísmo, foi um importante centro intelectual durante a Idade Média, a filosofia islâmica, especialmente através do sufismo e do kalam, promoveu uma síntese entre fé e razão, influenciando o pensamento ocidental durante o Renascimento. No contexto contemporâneo, o Oriente Médio permanece um centro de conflitos, moldado por sua herança religiosa e o legado do colonialismo europeu, a ascensão dos nacionalismos judaicos e árabe e a luta por autonomia pós-colonial são marcas profundas dessa região. Países como o Irã, Israel e as monarquias do Golfo Pérsico, demonstram a coexistência de teocracias, monarquias, e democracias com forte presença religiosa, mesclando uma perigosa tradição religiosa com capitalismo globalizado.

Nas Américas, a interação entre culturas indígenas, colonizadores europeus e africanos escravizados resultou em uma política diversa, a América Latina, em particular, desenvolveu uma identidade política única, marcada pelo mestiçagem – a mistura de culturas e raças como resultado da violência do colonizador. Revoluções como a cubana e sandinista desafiaram estruturas coloniais e introduziram novos paradigmas de justiça social. Movimentos indígenas e afrodescendentes, como no Brasil e na Bolívia, continuam a lutar por reconhecimento político e cultural, resistindo às influências coloniais que ainda permeiam as sociedades latino-americanas.

A África Subsaariana tem uma longa tradição de governança comunitária, sistemas pré-coloniais, como os das sociedades Iorubá e Ashanti, baseavam-se em consenso e liderança coletiva. No entanto, o colonialismo europeu interrompeu essas tradições, impondo fronteiras artificiais e sistemas de governança planificados e centralizados, após o período colonial, a África vem buscando novas formas de governança que conciliem tradições locais com modelos impostos, países como Botsuana e Gana têm mostrado sucesso em encontrar esse equilíbrio, embora a região ainda enfrente desafios como corrupção e desigualdade.

O Sudeste Asiático reflete uma diversidade de governança, países como Indonésia e Filipinas combinam democracia com fortes influências islâmicas e cristãs, enquanto o Vietnã adota um modelo socialista de partido único. A ASEAN – Associação do Sudeste As iático, exemplifica a cooperação regional em busca de estabilidade política e econômica, ao mesmo tempo que mantém a soberania nacional de seus membros, no futuro, o Sudeste Asiático terá um papel central na definição de novos paradigmas de desenvolvimento sustentável e inclusão social.

Na Oceania, a Nova Zelândia se destaca como um exemplo progressista em questões ambientais e direitos indígenas, enquanto a Austrália luta para redefinir sua identidade frente ao poder crescente da China no Pacífico, as demais ilhas do Pacífico, como Fiji e Samoa, estão à frente na luta contra as mudanças climáticas, cujas consequências são existenciais para elas. A Oceania, portanto, desempenhará um papel fundamental na criação de uma nova governança global focada na sustentabilidade e adaptação às mudanças climáticas.

O Iluminismo europeu propôs novas ideias sobre liberdade individual, direitos humanos e racionalidade, no entanto, seus ideais eram frequentemente limitados a homens brancos proprietários de terras. Essa contradição entre liberdade e exclusão foi uma marca persistente do pensamento ocidental, o Ilum inismo também consolidou o racismo “científico”, utilizado para justificar o colonialismo e a escravidão.

No Oriente, a filosofia confucionista, predominante na China, enfatizava a harmonia social e a moralidade dos governantes, enquanto o budismo difundia uma ética baseada na compaixão e desapego material, na Índia, o hinduísmo e o budismo Mahayana questionaram o papel do indivíduo na sociedade de for ma espiritual, oferecendo uma visão de mundo mais relacional e menos materialista do que o racionalismo ocidental.

O imperialismo europeu dos séculos XIX e XX dominou vastas regiões da África, Ásia e Américas, justificando-se com a retórica racista de "civilizar" povos não europeus, isso resultou em uma exploração econômica e subjugação cultural cujos ef eitos são sentidos até hoje. No oriente, também foram praticadas formas de imperialismo, principalmente pelo Japão, que durante o final do século XIX e início do século XX, desenvolveu um império expansionista que resultou na colonização da China, Taiwan, Coreia e grande parte do sudeste asiático. A ideologia japonesa durante este período também era marcada pela ideia de superioridade cultural sobre os povos colonizados.

O crescimento de potências emergentes, como China, Índia e Brasil, está redefinindo a ordem global, tornando o mundo mais multipolar, com isso, o poder político e econômico não está mais concentrado exclusivamente nas potências tradicionais ocidentais. Em vez disso, estamos testem unhando novas alianças e formas de cooperação, como o BRICS e a Iniciativa do Cinturão e Rota da China, que desafiam instituições globais até então dominadas pelo Ocidente, como o FMI e o Banco Mundial.

Esse realinhamento global coloca uma questão crucial: o futuro será marcado por uma fragmentação mais profunda ou por uma maior unificação? De um lado, vemos o ressurgimento de nacionalismos e protecionismos, que indicam uma tendência de fragmentação, no mundo ocidental, o Brexit e a ascensão de líderes populistas em muitos países refletem uma reação política contra a globalização e o multiculturalismo.

No Oriente, países como a Índia e o Japão também têm experimentado um ressurgimento de seus movimentos nacionalistas, com o foco em reafirmar suas identidades culturais em detrimento das demais. Em todos esses casos, uma reorganização e protagonismo da extrema-direita mundial como n&at ilde;o observávamos desde os anos de 1920 do século passado.
 
Por outro lado, há forças que incentivam a unificação, especialmente em áreas com impacto transnacional e até global, a interdependência econômica e a necessidade de cooperação internacional para enfrentar crises globais, como as mudanças climáticas e a regulamentação da inteligência artificial, podem forçar as nações a colaborarem mais estreitamente. Esse cenário exige uma revisão das instituições internacionais, que atualmente refletem um desequilíbrio de poder herdado da era colonial e do pós-Segunda Guerra Mundial.

Para navegar nesse mundo multipolar de maneira eficaz, e combatermos ao mesmo tempo o ressurgimento do extremismo nacionalista, serão necessárias reformas profundas nas instituições internacionais. O Conselho de Segurança da ONU, por exemplo, deve ser ampliado para incluir as potências emerge ntes de maneira equitativa. O mesmo vale para instituições financeiras globais, como o FMI, BID e o Banco Mundial, que precisam refletir as realidades econômicas atuais e permitir maior participação dos países em desenvolvimento.

Outra proposta crucial é a criação de novas instituições globais focadas em questões emergentes, como a regulação da inteligência artificial, mitigação de desastres climáticos e a novíssima geração de armas. O impacto dessas tecno logias disruptivas nas sociedades demanda uma governança internacional que vá além dos modelos nacionais tradicionais. O futuro das relações globais será moldado pelas dinâmicas entre Ocidente, Oriente e as potências emergentes. A tradicional dicotomia entre as duas regiões está se tornando menos rígida, com cada vez mais interações e influências mútuas, no entanto, essa interdependência global também está acompanhada por desafios crescentes, como o surgimento de novas formas de governança.

Ao comparar o Ocidente e o Oriente, vemos que ambos desenvolveram sistemas filosóficos e políticos complexos, que lidaram com questões de governança, moralidade e exclusão social. Enquanto o Ocidente se caracterizou pela ideia de liberdade e direitos individuais, ele também perpetuou sistema s de racismo e imperialismo que contradiziam seus próprios ideais, o Oriente, por outro lado, priorizou a harmonia social e a ordem, mas também foi marcado por sistemas hierárquicos e imperialistas que excluíam grupos minoritários.
No mundo moderno, esses legados continuam a influenciar as práticas políticas e sociais e ainda enfrentam desafios relacionados à inclusão e à igualdade. Ao compreendermos essas semelhanças e diferenças, podemos avaliar criticamente as tradições de cada região e b uscar formas de integrar os melhores aspectos de ambas as civilizações, ao mesmo tempo em que reconhecemos e enfrentamos as contradições e falhas que marcaram suas histórias.
 
A questão central é se o futuro verá uma maior fragmentação, impulsionada pelos nacionalismos e protecionismos, ou se o conjunto das nações conseguirá se unir em torno de questões globais que exigem cooperação internacional, a resposta dependerá da c apacidade de equilibrar suas identidades locais e culturais com a necessidade de enfrentar problemas que transcendem suas fronteiras.
Reformas nas instituições globais, inclusão de novas vozes e o desenvolvimento de novas formas de governança serão essenciais para garantir que o futuro seja multipolar, e marcado pela estabilidade, justiça e sustentabilidade. O mundo do século XXI será definido pela nossa habi lidade de lidar com esses desafios de maneira colaborativa, respeitando as particularidades de cada região e país, mas também reconhecendo a interdependência que agora caracteriza nossa existência global.
 
*advogado, ex-Secretário Executivo de Direitos Humanos de Pernambuco

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