Uma piada de mau gosto*
A derrota eleitoral em 2022 não levou à aceitação democrática. Pelo contrário, culminou no ato antidemocrático mais grave desde a redemocratização
Thiago Modenesi/Vermelho
O que temos assistido recentemente é um espetáculo de surrealismo político que desafia a lógica e a memória recente do povo brasileiro. Parlamentares e figuras públicas bolsonaristas, cujas carreiras foram forjadas na fornalha do autoritarismo, no desprezo pelas instituições democráticas e no ataque sistemático aos direitos humanos e ambientais, agora se apresentam, com uma cara de pau monumental, como paladinos da democracia e defensores dos direitos humanos. A ironia é tão densa que corta o ar, mas a incoerência é tão gritante que não pode passar sem o devido desmascaramento.
Para compreender o absurdo dessa performance, é imperativo revisitar o passado recente, ainda fresco nas feridas da nação, começando pelos ataques às instituições democráticas que ocorreram durante o governo Bolsonaro (2019-2022), nele assistimos a uma campanha incessante e sistemática contra os pilares da democracia.
O ex-presidente e seus aliados promoveram ataques virulentos ao Supremo Tribunal Federal (STF), questionando sua legitimidade, ameaçando seus ministros (como nos casos das lives semanais que fazia com ameaças explícitas) e incentivando protestos com tom claramente golpista às suas portas. O objetivo era claro: minar a independência do Judiciário.
A máquina bolsonarista operou uma campanha de desinformação sem precedentes contra as urnas eletrônicas, sem apresentar provas concretas, apenas com o intuito de semear dúvida e preparar o terreno para contestar futuras derrotas. Ataques ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) eram constantes. Tudo isso também foi combustível determinante para instrumentalizar suas tropas para o golpe que viriam tentar no 8 de janeiro de 2023
Sem esquecermos também que figuras centrais do bolsonarismo, incluindo o próprio ex-presidente, fizeram e seguem fazendo repetidas e públicas declarações de saudade e elogios ao período da ditadura militar (1964-1985), um regime notório por sua brutalidade, censura, tortura e supressão de direitos fundamentais. Como pode falar em democracia quem saúda abertamente sua antítese?
A linguagem política foi marcada por ameaças veladas e explícitas a adversários, jornalistas e instituições, criando um clima de medo e intimidação incompatível com o debate democrático. Vivemos 4 anos disso, ali sim ocorria cerceamento da democracia, ameaça aos Poderes Legislativo e Judiciário, perseguição aos opositorese tentativa de intimidação e censura aos meios de comunicação.
O governo Bolsonaro promoveu um desmonte deliberado das políticas de proteção ambiental e dos direitos indígenas. O desmatamento na Amazônia disparou, as invasões de terras indígenas aumentaram exponencialmente, e órgãos de fiscalização como o IBAMA foram enfraquecidos e desmoralizados. Direitos humanos fundamentais de povos tradicionais foram violados diariamente.
A linguagem misógina, LGBTfóbica, racista e a glorificação da violência (incluindo a polícia) foram marcas registradas. A política de segurança pública incentivou letalidade, muitas vezes contra populações periféricas e negras. A gestão desastrosa e negacionista da pandemia de COVID-19, com desdém pela ciência e pelas vítimas, resultou em centenas de milhares de mortes evitáveis – uma violação massiva do direito humano à vida e à saúde. O próprio discurso de posse de Bolsonaro como presidente foi marcado por ataques a esquerda, aos opositores e outros absurdos para um presidente eleito que deveria unir o país, fez o oposto durante todo o mandato, apostando na divisão e ataques a todos os que pensavam diferente.
A derrota eleitoral em 2022 não levou à aceitação democrática. Pelo contrário, culminou no ato antidemocrático mais grave desde a redemocratização: a invasão e depredação dos edifícios do Congresso Nacional, do Palácio do Planalto e do STF por hordas bolsonaristas radicalizadas, incitadas por meses de discurso golpista vindo do próprio núcleo do poder derrotado.
O objetivo era claro: derrubar pela força o governo democraticamente eleito e as instituições. Parlamentares bolsonaristas, alguns diretamente envolvidos na retórica inflamatória, têm laços indissociáveis com esse evento traumático. Este é o marco zero da incoerência atual: quem apoiou, incitou ou minimizou um ataque violento às sedes dos três poderes não pode ser levado a sério como pretenso defensor da democracia e da liberdade de expressão.
A manobra mais recente de parlamentares bolsonaristas para tomar o controle da Mesa Diretora da Câmara dos Deputados através da ocupação por 30 horas do plenário por estes, caracterizados com esparadrapos na boca, seguida depois da tentativa frustrada de impedir o presidente da casa de reassumi seu lugar mostram o processo de radicalização e escalada da tática fascista, que não respeita o regimento da Casa e tenta atropelar a democracia, só valendo para os bolsonaristas a busca pelo relaxamento da prisão de seu líder golpista, algo que foi frustrado. Aqui assistimos a continuação de uma prática política que prioriza o poder pelo poder, a desestabilização e o controle de mecanismos institucionais para fins particulares ou de grupo, em detrimento do debate amplo e democrático. É a mesma lógica de força e manobra que nega o diá ;logo franco.
Diante desse histórico inegável, a narrativa atual de “defensores da democracia e dos direitos humanos” soa como cinismo puro, uma tentativa grosseira de reescrever a história e apagar um passado recente repleto de ataques à ordem democrática. É uma lavagem de imagem cínica destinada a enganar desavisados e recuperar espaço político após derrotas e desgastes.
Há uma instrumentalização cínica, quase patética, da linguagem. Usar termos como “democracia” e “direitos humanos” como meros instrumentos retóricos para atacar adversários ou defender interesses momentâneos, enquanto se continua a promover uma agenda que mina esses mesmos valores. É esvaziar o significado de conceitos sagrados, vergá-los aos seus interesses, ouvir defensores de Ustra e de torturas clamarem por democracia para o seu líder chega a dar arrepios.
É impossível reconciliar o passado e as práticas atuais do núcleo duro bolsonarista com a defesa sincera da democracia e dos direitos humanos. A adesão a esses valores exige uma rejeição inequívoca do autoritarismo, do golpismo, da violência política e da violação de direitos fundamentais – coisas que estão inscritas no DNA do movimento. Não há conversão genuína que apague o 8 de janeiro ou a tomada antidemocrática da Mesa.
Essa súbita mudança de retórica apenas expõe a verdadeira face do projeto: não é sobre ideologia ou princípios, mas sobre acumulação e manutenção de poder a qualquer custo, utilizando qualquer narrativa que seja conveniente no momento.
O povo brasileiro não sofre de amnésia. As imagens do 8 de janeiro, os discursos inflamados, o desmatamento recorde, as mortes evitáveis na pandemia e a recente ocupação antidemocrática na Câmara estão gravados na memória coletiva. A tentativa bolsonarista de se rebatizar como guardião da democracia é uma farsa grotesca, uma ofensa à inteligência e à luta daqueles que verdadeiramente defendem as instituições e os direitos humanos.
Não se combate o autoritarismo fingindo ser democrata. A verdadeira defesa da democracia exige repúdio inequívoco ao próprio passado autoritário e às práticas que continuam a minar a estabilidade institucional. Até que o bolsonarismo rompa de forma clara, concreta e permanente com seu histórico golpista, antidemocrático e anti-direitos humanos – começando pelo reconhecimento da gravidade do 8 de janeiro e da natureza de sua tomada de poder na Câmara –, sua nova roupagem “democrática” não passará de uma máscara frágil sobre um rosto marcado pela intolerância e pelo desejo de poder absoluto. O ridículo dessa performance não apaga o perigo que ela representa: a tentativa de normalizar o inaceitável e reescrever a história para perpetuar um projeto que sempre foi, em sua essência, uma ameaça à ; democracia brasileira. A vigilância e a denúncia dessa incoerência perigosa são mais necessárias do que nunca.
*Publicado no Vermelho www.vermelho.org.br com o título 'Defesa da democracia pelo bolsonarismo: uma piada de mau gosto'
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A caminho
da insignificância https://lucianosiqueira.blogspot.com/2025/07/minha-opiniao_26.html
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