Luciano Siqueira
Publicado no Blog da Folha
Certa vez, referindo-se à banalização do uso de certas categorias políticas, Miguel Arraes anotou que “as palavras perderam seu sentido real”. É que uma simples discrepância entre aliados aparecia em manchetes como “ruptura iminente”; dificuldades banais de governo logo ganhavam a alcunha de “crise”.
Eu mesmo muitas vezes fui interpelado por repórteres desejos de saber sobre hipotética “crise” com o PT – alinhado de primeira linha do PCdoB – em razão do anúncio de pretensões eleitorais de ambos os partidos numa mesma cidade. O pressuposto aparente é de que divergências eventuais e abordagens diferenciadas de questões polêmicas seriam inaceitáveis entre partidos coligados.
Se fosse assim, onde estaria o espaço para o bom debate democrático? A que levaria o engessamento das ideias, aprisionadas na aliança celebrada?
Agora mesmo se tem notícia de dificuldades no relacionamento entre a presidenta Dilma e sua base parlamentar, especialmente segmentos de inclinação mais conservadora. Nada mais comum, até porque não se pode colocar sinal de igualdade entre o Executivo e o Legislativo, isto valendo também para a lógica de quem administra e de quem dá sustentação no parlamento. Desencontros são naturais e absolutamente compreensíveis.
Mas, donde vem a necessidade de caracterizar esse tipo de divergência como “crise”?
Creio que vem do fato evidente de que parte da grande mídia brasileira assume, já há algum tempo, o papel dos partidos políticos que ora se encontram à margem do poder e carecem de ideário e iniciativa. Importa a todo instante identificar brechas por onde se possa combater o governo, que a oposição não estaria apta a identificar. E diante da dificuldade do confronto entre ideias e projetos, resvala-se para o velho método de transformar a mosca num elefante. Ou seja, ampliar com lentes poderosas a dimensão de fatos menores com o fito de fazer do acontecido objeto de grande interesse e, quem sabe, de desgaste do governo.
Então, se o governo libera recursos do Orçamento Geral da União referentes a emendas parlamentares – expediente normal e rotineiro -, a manchete é de que a presidenta assim age para abafar suposta “crise” com sua base. Se não libera, ou atrasa a liberação por razões de ritmo na execução orçamentária – igualmente comum -, logo se destaca em manchete que uma “crise” estaria por se instalar.
Parece aquela historinha do garoto que costumeiramente se escondia numa moita e simulava estar sendo atacado por um lobo, só para se divertir com eventuais passantes. No dia em que realmente foi atacado, ninguém mais acreditou e ele não obteve socorro. Quando surgir uma crise de verdade, qual termo será usado pela grande mídia para convencer o público de agora sim, um fato novo existe?
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