28 dezembro 2012

Crônica do amanhecer em São José

O repouso do guerreiro
Luciano Siqueira

 
Há quantos anos, não sei bem, mas já há algum tempo com certeza: estacionado, defronte uma residência à beira mar, sob coqueiros, o velho barco definha. A madeira gasta abre imensas brechas na proa, o nome sequer se pode ler, apagado pelo tempo. Mas ali permanece, como que exibindo a glória conquistada em inúmeras incursões em alto mar, abrigo de destemidos pescadores e de suas pelejas.

Testemunha de dramas e conquistas, de súplicas e esperanças de homens simples e rudes, sobreviventes de bons e maus tempos.

Sempre tive paixão por barcos. Desde criança, quando imaginava fantásticas aventuras pelos oceanos. Adulto, fotógrafo amador – e bote amadorismo nisso! -, incontáveis são as fotos de barcos que surpreendo em nossas praias e rios e em terras estrangeiras. Barcos pequeninos, frágeis, toscos; barcos imensos, modernos. Movidos a vela ou a motor. Ancorados ou em movimento.

Meu fascínio por barcos é que nem o que sinto pelo mar e por rios. Como uma paixão proibida, impregnada de amor, porém à distância. Um querer reverencial. Atração apaixonada, mas comedida, isenta de aventuras e riscos. Quase platônica.

Ainda militante clandestino, quase sou tragado pelas águas azuis da costa alagoana, na Praia da Avenida. Afoito, fui mais longe do que devia e, acometido de cãimbras, em águas profundas, precisei de muita tranquilidade e autocontrole para não me deixar levar pela correnteza e nadar a salvo – ante a angústia de Luci, que em terra firme percebia minha luta.

Pelas águas de um rio também quase sou devorado, novamente nos tempos da clandestinidade. No sertão alagoano, ousei mergulhar no Rio Ipanema de cima de uma ponte sem a consciência dos limites de bêbado. Havia percorrido desde cedo quase toda a cidade, integrante de uma troça improvisada no carnaval de 1974. Em cada casa, um copo de qualquer coisa: cerveja, conhaque, vermute, cachaça, vinho... de tudo um pouco. Sob sol rigoroso. Daí o salto arriscoso. Fui salvo por um dos foliões que me arrastou até às margens do rio.
 
Desde então fico só no alumbramento, como diria o poeta Bandeira. Do mar, recolho o azul ou o verde que me emocionam e a linha do horizonte que me apazigua. Dos rios admiro a correnteza que conduz embarcações diversas e gente que passeia ou trabalha. A ambos, distante, cuidadosamente distante – apenas miro, sem me deixar envolver pela volúpia das águas.

Mares e rios são singrados por barcos. Pois aí está a razão dessa minha outra afeição, além das águas volumosas.

Por isso meu respeito a esse velho barco pesqueiro aposentado, que encontro todo fim de dezembro em São José da Coroa Grande. Um barco feliz – observa Luci: porque repousa solenemente diante do mar que já não mais o acolhe e desafia, mas o homenageia todas as manhãs.

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