Luciano Siqueira
Onça e câncer: duas palavras que me metiam medo no iniciozinho da
infância. Minha mãe sempre se referia ao bicho (e seus assemelhados leão e
outros) incutindo receio: “é um perigo se uma onça se soltar no circo; leão,
pior ainda!”, comentava, como se uma ameaça descesse sobre a cabeça de
crianças, como seus filhos pequenos, fascinados pela magia circense.
Câncer, tal como tuberculose, ela pronunciava bem baixinho. Do mesmo
jeito que se referia ao morador de nossa rua, na Lagoa Seca, Natal, João
Batista Galvão, ex-ministro de Viação do breve governo revolucionário instalado
na cidade na insurreição de 1935: “ele é comunista”.
O temor aos bichos selvagens se devia à absoluta falta de com intimidade
com o mato, vivente urbana que era e de onde nunca saía.
Quanto ao comunismo, naqueles idos dos anos cinquenta, ainda se pregavam
cartazes com propaganda contra a URSS e uma suposta ameaça vermelha sobre o
Brasil. Lembro-me de um deles, que ostentava um feitor de chicote à mão,
observando trabalhadores rurais na colheita do trigo, e a frase terrível:
“Assim se trabalha na União Soviética”.
Pois bem. Dias atrás os jornais divulgaram que a onça preta Jabuticaba,
do Parque Dois Irmãos, faleceu em consequência de um câncer na cavidade oral.
Jabuticaba deixou órfãos dois filhotes com os quais vivia no setor dos felinos
do Zoológico do Recife.
A notícia dava detalhes. Jabuticaba se submetera a uma tomografia
computadorizada mediante cooperação com a Universidade Federal Rural de
Pernambuco (UFRPE). Apesar do tratamento ministrado pelos veterinários, que lhe
dera uma aparência de boa saúde, a onça definhou até a morte porque não
conseguia mais se alimentar.
Confesso que por mais não me interessei. Bem que poderia ter perguntado
ao sobrinho Daniel, um dos veterinários do Parque, ou à diretora Silvana, minha
companheira de partido. Envolto em muitas tarefas, apenas guardei a notícia
como um liame com a tenra infância. Jamais imaginei, em minha tremenda
ignorância, que uma onça morresse de câncer! No fundo, lá nas profundezas do
inconsciente, talvez tenham pesado os velhos temores – do bicho selvagem e da
doença – incutidos pelos comentários apreensivos de D. Oneide, minha mãe.
Quanto ao comunismo, vejam vocês, marca a vida e a militância desse
filho de D. Oneide há mais de quarenta anos. Sem nenhum constrangimento, nem
necessidade de pronunciar a palavra em tom baixo e cerimonioso: hoje
praticamente não existe preconceito contra o Partido Comunista do Brasil e esse
amigo de vocês, de posições claras e filiação partidária marcante, encontra
guarida em todos os salões, para além das camadas populares e da
intelectualidade progressista - das instituições empresariais aos templos
religiosos, onde pode expor ideias sem causar estranheza. Evoluiu a sociedade
brasileira e a prática política dos comunistas, que aliam firmeza de convicções
revolucionárias com convivência democrática e mutuamente respeitosa com todas
as correntes políticas, credos e visões de mundo.
Que a onça preta Jabuticaba descanse em paz. E que o Brasil possa avançar
na direção das grandes transformações que o levarão a um novo patamar
civilizatório.
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