O que é a independência do Banco Central? Por que Marina e Aécio a
defendem com unhas e dentes? Não é mera coincidência que ambas as candidaturas
tenham transformado esta pauta em tema de destaque nas eleições
Paulo Kliass*
Ao que tudo indica,
ainda não foram suficientes todos os ensinamentos a serem retirados da
profundidade da atual crise econômico-financeira internacional, que teve início
nos próprios Estados Unidos. Assistimos à falência amplamente reconhecida dos
principais fundamentos de natureza teórica e conceitual que dão sustentação ao
regime do financismo contemporâneo. Pouco importa, pois o modelo que é
considerado um paradigma a ser copiado pelos adeptos da perpetuação da
desigualdade é o norte-americano. Não satisfeitos com a trombada da realidade
objetiva, ainda assim eles insistem com a restauração da antiga ordem, com a
reabilitação do antigo regime.
Ocorre que, para esse
pessoal, a incapacidade revelada pela própria crise do mercado em encontrar
soluções satisfatórias para os conflitos econômicos pouco importa. O Estado é
sempre lento, ineficaz e incompetente. E ponto final! Esse pressuposto vale
para os mais variados aspectos da vida social. Desde a oferta de serviços
públicos básicos como saúde, educação e previdência. Até a operação de empresas
como Petrobrás, Banco do Brasil ou BNDES. E passando por organismos de
regulação, como as agências do tipo ANATEL, ANEEL e o Banco Central. É
impressionante, mas vira e mexe esse tema volta à baila na agenda da política
econômica.
Agora, à medida que
avança o debate eleitoral, as candidaturas começam a estabelecer seus limites e
revelar suas verdadeiras faces. A questão econômica ganha espaço em razão das
dúvidas e incertezas a respeito do que fazer em 2015. E dentre os assuntos
preferidos pelos defensores do financismo – sempre a postos! , diga-se de
passagem – começa a despontar a tal da independência do Banco Central. Afinal
se o “Federal Reserve” (conhecido por Fed, o BC dos Estados Unidos) é mesmo
quase independente da Casa Branca, nada mais adequado do que importarmos esse
sistema.
As concepções mais
conservadoras do fenômeno econômico sempre tentaram emplacar esse tema. Na
verdade, trata-se de sua preocupação em como tornar operacional o conceito de
“autoridade monetária”. No modelo ideal de funcionamento da economia, algumas
variáveis importantes devem ser submetidas a algum tipo de controle. É o caso,
por exemplo, da quantidade ofertada de moeda na sociedade e do “preço” dessa
mesma mercadoria muito especial – o dinheiro. E que vem a ser a própria taxa de
juros, o chamado custo do dinheiro.
Por mais radical que
seja o espírito liberal do interlocutor, a maior parte deles ainda aceita a
idéia de que a moeda nacional seja um bem cuja responsabilidade é atribuição do
Estado. Porém, o próprio sistema capitalista construiu um arcabouço financeiro
de tal ordem, que a maior parte da oferta de “moeda” existente na sociedade é
criada pelo próprio sistema bancário e demais instituições assemelhadas. O
papel moeda tradicional é hoje em dia quase uma curiosidade, uma espécie em
extinção. Assim, não basta mais sugerir apenas uma rígida supervisão das
rotativas da Casa da Moeda. O controle efetivo sobre os meios de pagamento
envolve uma ação mais incisiva da autoridade monetária sobre o universo
financeiro.
Por outro lado, a
definição da taxa oficial de juros (SELIC, no caso do Brasil de hoje) é também
uma função do Banco Central. Ela é usada como referência mínima para a formação
das taxas de juros praticadas pelos bancos em suas operações de depósito e de
empréstimo. Além disso, é a taxa utilizada para remunerar a dívida pública. O
BC pode atuar também no chamado “mercado cambial”, definindo a taxa de câmbio
da moeda nacional em sua relação com as dos demais países. Caso deixe esse
importante preço de referência ao livre sabor das forças de oferta e demanda,
pode ocorrer o fenômeno que tem arrasado a realidade brasileira ao longo dos
últimos anos: a sobrevalorização do real e a desindustrialização de nossa
economia.
As regras institucionais
também atribuem ao BC as funções de órgão regulador e fiscalizador do sistema
financeiro. Cabe a ele a definição das condições de concessão de empréstimos e
dos limites para a prática das taxas de juros nas operações de crédito. É mais
do que sabido a enormidade dos spreads praticados em nossas terras, bem como o
absurdo dos níveis das tarifas cobradas pelas instituições em suas relações com
a clientela. O chamado “banco dos bancos” deve atuar como uma espécie de xerife
do sistema financeiro, defendendo os interesses do conjunto da sociedade contra
todo e qualquer tipo de abuso cometido pelos bancos
Pois bem, frente a esse
significativo encargo de responsabilidades, nada mais recomendado que a
nomeação dos dirigentes dessa instituição seja atribuída à Presidência da
República. A indicação de nomes para ocupar essa função ainda passa pela
sabatina efetuada pelo Senado Federal, em uma indicação de que o poder
legislativo também possa alertar a respeito de algum exagero. No caso
brasileiro mais recente, o ex-Presidente Lula contribuiu inclusive para ampliar
ainda mais a autonomia existente, ao encaminhar uma Medida Provisória
equiparando o cargo ocupado por Henrique Meirelles ao de Ministro da República.
Ocorre que para o
financismo esse quadro é pouco; eles querem mais. Não basta a autonomia
concedida a um ex-presidente internacional do Bank of Boston, que ficou
exatamente 8 anos à frente do BC, atendendo a todos os interesses da banca
privada. Um período em que a autoridade monetária governou mais para os bancos
e menos para o conjunto da sociedade. Dois mandatos em que as taxas de juros
estratosféricas eram definidas pela COPOM sem nenhuma prestação de contas, nem
ao governo oe menos ainda à sociedade.
Com o argumento malandro
de que o governo pode influenciar “politicamente” na definição da política
monetária, o financismo agora pede um pacote completo: deseja a independência
do BC. Voltam com a argumentação surrada e mal lavada de que é importante haver
“técnicos” não suscetíveis de serem influenciados por quem estiver ocupando o Palácio
do Planalto. Mas o presidente do BC deve ser independente de quem, cara pálida?
O sonho de consumo da banca é um quadro de dirigentes no comando da autarquia
vinculada ao Ministério da Fazenda que não respondam a ninguém. Ou melhor, que
atendam tão somente aos interesses das instituições que deveriam controlar.
Ora, todos sabemos que
as decisões e as consequências relativas ao rumo da economia são de natureza
absolutamente política. Daí que a responsabilidade por elas deve ser de que tem
legitimidade para tanto – o Presidente da República. Não existe isenção ou
neutralidade nas decisões de política econômica. Exatamente por sua natureza
multidisciplinar, a economia é parte integrante das ciências sociais. Não
existe apenas uma alternativa técnica e adequada para cada caminho a se
trilhar.
Assim, um desenho
institucional que confira independência política e administrativa a seus
dirigentes é de uma irresponsabilidade inimaginável. As funções da autoridade
monetária são políticas e os responsáveis por elas devem ser passíveis de
remoção a qualquer instante. Conceder um mandato com prazo fixo para eles
equivale a assinar um cheque em branco para atuarem da forma que bem
entenderem. A tecnocracia não tem legitimidade para tanto: ela não foi eleita
para nada. Cabe ao dirigente político efetuar a boa escolha de seus assessores
de confiança a cada momento. E responder pelos equívocos cometidos.
Não é mera coincidência
que as candidaturas de Aécio e Marina incluam este ponto como elemento de
destaque. Afinal, os conselheiros econômicos de ambos foram os principais
responsáveis pela condução da política econômica no auge do neoliberalismo,
durante a gestão de FHC. Estiveram à frente do processo de privatização das
empresas estatais, promoveram um importante desmonte do aparelho do Estado,
desregulamentaram a economia concedendo todo tipo de facilidades ao chamado
“mercado” e aprofundaram a hegemonia do capital financeiro em nosso sistema
econômico e social. Agora, ao que tudo indica, pretendem continuar a obra inacabada.
Como passaram os últimos 12 anos trabalhando diretamente no interior do
financismo, propõem agora a efetivação da independência do BC. Algo como o
roteiro de um filme que poderia ter como título “A volta dos que não
foram”.
*Paulo Kliass é doutor
em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental
Leia mais sobre temas da atualidade: http://migre.me/kMGFD
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