Marco Albertim, no
Vermelho
O corredor é estreito. Em um dos lados há três
celas vizinhas; também não são grande coisa, em que pese o comprimento; mas a
largura é tão pouca que infunde a impressão de que as paredes estão se movendo
para se juntarem, não importa quem esteja no meio. O teto é bolorento, não
desmente a suspeita de que absorvera suores diversos; ao invés de sorvê-los e
fechar-se sem deixar indícios de contatos, devolve-os em forma de fungos e
deixa soltar o bodum de alvenaria velha, coberta de poeira, de furos de
estropícios.
Respirar aquele ar causa impacto logo nos primeiros
bafejos; em seguida, não se sente a impureza do ar engordado. A transpiração
mistura-se às bactérias. A promiscuidade entre a água dos corpos e os
microorganismos converte-se em cumplicidade. Resistir é impossível, porque o
próprio corpo torna-se agente de doenças. Quem sobreviveu logrou a cura, inda
que a doença tenha deixado seus achaques.
Jaciara Bonaires viu-se sozinha na cela. Os esbirros
trancaram a porta de madeira; como as paredes e o teto, a madeira se deixara
estropiar, sobretudo nos pés da porta, expondo fendas e taliscas soltas. No
lado em que a porta se abria, ela encostou seu rosto; deitada no chão, viu o
preso deitado no chão do corredor. Os esbirros, depois da sessão de tortura,
deixaram-no ali, espremido entre a parede e a porta da cela.
"Eles ainda estão aqui. Botaram um gravador no
meu pensamento. Estão lendo o meu pensamento..." De cueca, deu para
perceber que tinha os colhões inchados; o corpo, sobretudo o tórax, exibia
marcas de socos, de pontapés; o rosto, todo ele com inchações; não
via pelos olhos por causa das escoriações, enxergava traços indistintos que
cresciam conforme a errância das alucinações. Queria pôr-se deitado
de bruços; as dores no tórax não deixavam; acomodou-se num dos lados do corpo,
em decúbito lateral.
"Tenha calma. Procure dormir. Você está
sozinho no corredor." Jaciara estranhou a sonoridade cadenciada da própria
voz. Nos encontros, expondo a orientação do Partido sobre qual tática assumir
nos enfrentamentos com o inimigo, fora escorreita, sem lesão na voz.
Preocupara-se com duas coisas: expor o pensamento com clareza, combinando a
austeridade dos meios de luta com o padrão uniforme da voz. Descobriu-se também
portadora de infusões do coração. Fosse cristã, faria uma prece, aconselharia
uma reza; mas rezas, pensou, pensou e sentiu-se irredenta por isso, carregam
humilhação e talvez o indício da rendição ao inimigo. Viu os dois joelhos do
preso chagados, iguais às feridas de sangue do Cristo na cruz. O contralto na
voz de Jaciara Bonaires, não soltou-se das cordas da garganta, desentranhou-se
das vísceras. Então...
De
pé, ó vitimas da fome
De
pé, famélicos da terra
Da
idéia a chama já consome
A
crosta bruta que a soterra
Cortai
o mal bem pelo fundo
De pé, de pé,
Na terceira frase, não evitou distinguir nas
feridas dos joelhos do preso, a ideia crepitando na chama. Estava de calcinha e
sutiã, do jeito que a trouxeram da cadeira do dragão. Queria chorar e chorou
porque viu nos beiços pregados do preso, envoltos numa crosta quase bruta, um
traço de riso, inda que embotado de tanta dor.
Os esbirros voltaram da sala de reuniões do
Doi-Codi; todos de gravata sobre a camisa de manga comprida, branca,
arregaçada. Levantaram o preso pelos braços, ouvindo seus gemidos. Irritou-os o
esboço de sorriso na boca sinistrada. Trancafiaram-no na cela vizinha. Jaciara
Bonaires sentiu falta das chagas do preso.
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