Breno Altman, no
portal da Fundação Maurício Grabois
O noticiário
internacional está marcado, nos últimos dias, pelas festividades comemorativas
dos 25 anos da queda do Muro de Berlim. A maioria da imprensa celebra o evento
com galhardia.
Trata-se,
afinal, do símbolo mais emblemático da derrocada do socialismo e da possibilidade
histórica de qualquer sistema distinto do capitalismo triunfante.
A conjugação
de uma incrível máquina de propaganda com o complexo de vira-lata comum aos
perdedores foi capaz de atrair para essa comemoração amplos setores
progressistas e de esquerda, que simplesmente mandaram às favas qualquer
espírito crítico.
Alguns porque
honestamente concordam com a retórica sobre o muro maligno. Outros porque temem
ser apontados como antidemocráticos e fora de moda.
A submissão
intelectual chega ao ponto de não se questionar sequer a legitimidade dos
grandes agitadores contra a obra do mal.
Onde está,
afinal, a autoridade dos Estados Unidos e seus meios de comunicação?
No muro da
morte que separa seu território dos aliados mexicanos, matando por ano os
oitenta caídos durante três décadas na Berlim dividida?
Na base de
Guantánamo, onde centenas de muçulmanos estão presos sem o devido processo
legal e são sistematicamente torturados?
Ou teria a
Europa ocidental mais credibilidade, com sua política discriminatória contra os
imigrantes?
Ou ainda
Israel, pródigo em adotar práticas de pogrom contra os palestinos e expeditivos
em construir sua própria muralha de isolamento dos territórios ocupados?
A lista de
participantes desse festim é bastante longa, vários com muitas contas a
acertar, e de cada qual deveria ser solicitado o devido atestado de idoneidade.
Não é o caso,
obviamente, de se justificar um pecado com outro, mas evitar comportamentos
cuja índole é hipócrita.
Vamos aos
fatos, portanto.
O Muro de
Berlim costuma ser apresentado, pelos campeões da liberdade, como produto de um
sistema político tirânico, cuja natureza seria a divisão dos povos e sua
subordinação ao tacape de uma ideologia totalitária.
Quando
terminou a 2ª Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em quatro zonas de
influência, entre norte-americanos, ingleses, franceses e soviéticos.
A capital
histórica, Berlim, pertencente ao território controlado pelo Exército Vermelho,
acabou igualmente repartida em áreas controladas pelos países vitoriosos.
Quem se der ao
trabalho de ler as atas das conferências de Ialta, Potsdam e Teerã, se dará
conta que Moscou era contrário a essa divisão.
Sua proposta
era dotar a Alemanha de um governo provisório, sem divisão do território, que
organizasse em dois anos um processo eleitoral nacional.
Os demais
aliados, temerosos que o país caísse nas mãos dos comunistas, exigiram o modelo
adotado.
A União
Soviética acatou, depois que viu garantido seu direito de hegemonia sobre os
demais países fronteiriços, além de preservado seu controle militar sobre a
antiga Prússia Oriental.
Em nome de sua
política de segurança e da manutenção da aliança que derrotou o nazismo,
abdicou de parte da sua influência na porção ocidental da Alemanha e do antigo
Império Austro-Húngaro, apesar de os comunistas já serem maioria na Áustria.
Outro
compromisso que constava da agenda pós-guerra era a constituição de um fundo
mundial para a reconstrução europeia.
O papel
principal, nesse trâmite, cabia aos Estados Unidos, a potência que menos havia
sofrido com o esforço de combate, cuja economia havia sido vitaminada pelo
conflito e dispunha de imensos recursos financeiros.
Mas a vitória
eleitoral dos comunistas na então Tchecoslováquia, seguida de resultados
espetaculares na Itália e França, em 1946, provocou uma reviravolta.
A Casa Branca
decidiu-se por quebrar o pacto da reconstrução e inundar de financiamento
apenas sua área de influência, dando origem ao Plano Marshall, em 1947. Cerca
de 140 bilhões de dólares, em valores atualizados, foram injetados no ocidente
europeu.
Tinha início a
chamada Guerra Fria, antecipada, em março de 1946, pelo famoso discurso de
Winston Churchill em Fulton.
A União
Soviética, que havia arcado com um incalculável custo humano e material ao ser
o grande vetor da vitória contra Hitler, passou a enfrentar uma outra guerra,
financeira e de sabotagem, contra suas posições. Especialmente na Alemanha
Oriental, constituída em 1949 como República Democrática da Alemanha.
A estratégia
norte-americana era roubar os melhores profissionais alemães, atrai-los a peso
de ouro a partir de sua cabeça-de-ponte em Berlim Ocidental, que recebia
aportes formidáveis para ser exibida como vitrine esplendorosa da pujança
capitalista.
A fuga de
cérebros e braços asfixiava a jovem RDA, que pouco podia contar com a ajuda
material soviética, pois estava o Kremlin às voltas com o dificílimo
reerguimento do próprio país.
Foram mais de
12 anos em uma batalha árdua e desigual.
A URSS tinha
quebrado a máquina de guerra do nazismo, retesando cada músculo e cada nervo da
nação, e se via diante de uma situação que poderia levar à desestabilização de
suas fronteiras, exatamente a aposta maior da Casa Branca.
Essa escalada
teve seu desfecho no dia 13 de agosto de 1961, data inaugural do Muro de
Berlim.
O fluxo entre
os dois países e as duas áreas da antiga capital foi militarmente interrompido,
obstaculizado por uma construção que chegou a ter 66,5 km de redeamento
metálico e murado.
Famílias e
amigos foram separados por quase 30 anos.
Aprofundou-se
a fratura entre ocidente e oriente na Europa.
Uma nação
histórica foi dividida. Oitenta pessoas morreram e 142 ficaram feridas ao
tentar ultrapassar o muro, finalmente derrubado em 1989.
Sua construção
foi um ato de guerra, mas de caráter defensivo. As hostilidades e operações de
sabotagem, que impediram a permanência de uma Alemanha unida e a coexistência
pacífica de dois sistemas, foram iniciadas pelas potências que romperam o
acordo de paz, impondo ao leste europeu e socialista, com sua economia ferida
pela guerra, um longo estado de exceção.
Claro, havia
outras alternativas.
A URSS e seus
aliados poderiam, por exemplo, ter capitulado de antemão à ideia de desenvolver
outro sistema de produção e poder, pois era essa tentativa dissidente o motivo
da Guerra Fria. Afinal, não foi assim que tudo terminou, lá se vão 25 anos?
Mas com seus
erros e seus acertos, suas glórias e seus desastres, seus feitos e até seus
crimes, o socialismo foi, durante gerações, a bandeira e o sonho de povos que
aceitaram pagar com sacrifício, dor e sangue por um outro mundo possível.
Teria sido
impensável, se assim não fosse, a extraordinária vitória na guerra de trinta
anos que vai da Revolução Russa à caída de Berlim nas mãos do Exército
Vermelho, em 1945.
O muro de
Berlim talvez tenha sido a criatura disforme de um processo no qual seus
protagonistas tiveram que enfrentar circunstâncias e teatros de batalha
escolhidos, no fundamental, por inimigos poderosos.
De certo modo
foi, durante décadas, marco de resistência e de equilíbrio entre dois sistemas.
Caiu quando a força propulsora de um dos lados já tinha se esgotado.
O resto é a
mitologia dos vencedores.
Observação:
este texto é uma adaptação, com poucas alterações, de artigo que escrevi há
cinco anos. Também foram poucas as mudanças na narrativa tendenciosa e
falsificada dos fenômenos históricos que precederam a queda do Muro de Berlim.
Publicado em
Opera Mundi
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