Sêmens de luto
Marco Albertim, no Vermelho
Ele atravessou a sala do velório com os passos tão bambos quanto fora sua vida nos últimos dois dias. É certo que tinha um defeito nas pernas, e isso o tornava tão característico quanto os óculos de lentes grossas no nariz anguloso; além da barbicha e o bigode ralos e bastos. Fora sempre percebido porque sabia juntar aos petrechos do rosto, a voz cava, de sonoridade limpa. Mas o pai estava morto, estendido no caixão com cravos brancos nos lados, nos extremos.
Depois, na quarta-feira de cinzas, na avenida em frente ao cemitério, ouvia-se o som de um frevo mortiço, agonizante. Do lado de fora da capela, os flamboaiãs deixavam cair flores ainda rubras mas em queda triste.
Lembrou-se da segunda-feira gorda. Sábado e domingo, ele já os tinha nos idos da memória; usara-os para descobrir-se como folião maduro e apto para o coito carnal. Na segunda-feira, tinha a noção disso, os sêmens são tão abundantes quanto inquietos; também reivindicam o escorregamento nas ladeiras de Olinda.
Não pusera bermuda para não expor o contraste das pernas finas com a rigidez das pedras nas ruas das ladeiras. Sobre a calça jeans, a camisa de algodão, vermelha, cobriu com justeza a esqualidez de suas costelas. No carnaval ninguém repara nos detalhes; a descoberta de um ou outro, acentua-lhes a suposta originalidade. Com o panamá na cabeça, creu-se convincente; não careceria confessar que deixara para trás os pares desembarcados de um voo de Cuba; inda que fosse um arremedo de discurso para dar cores à indumentária.
Mas Leonor Padura, de fato desembarcara de um voo vindo de Santiago de Cuba. Ele a recebera no aeroporto, ele e comunistas menos afoitos como Sandino Jordão. Apressara-se a descortinar o Recife, Olinda, como cidades resgatadas não só da influência holandesa, mas já sulcadas de paus boleados em cima e austeros com a bandeira vermelha. Urdir a bandeira rubra tremulando numa torre no Alto da Fé, não seria um sonho juvenil, nem uma fraude aos olhos inquiridores de Leonor Padura, mas um penduricalho no seu juízo curioso. Quinze dias antes do carnaval. A caribenha tivera tempo de auscultar, aferir e deduzir os tons dos flabelos e estandartes.
Como quieras - dissera ela a seus convites.
Ele arremedara passos de frevo para o regalo da caribenha. Ela rira. Muy bueno. No sábado gordo, no domingo prenhe de promessas. No bulício do passeio livre da Praça da Preguiça. A segunda-feira se anunciando sem cerimônia para o conluio ideológico. Véspera do conúbio entre os sexos.
O reencontro deu-se nos Quatro Cantos. O sol de um lado e de outro, incidira o foco principal da luz no rosto cor de trigo de Leonor Padura. Ela rira com fartura ouvindo a conversa balbuciada, mas com rito de compromisso, de Sandino Jordão. Foi falar com os dois, posto que tomara partido na comissão de recepção. Olá, Marcílio. Cumprimentara-o e logo retomou o sorriso para os balbucios de Sandino.
A notícia da morte do pai sufocou os indícios de sedição que ainda mantinha seus sentidos ativos.
Na capela, depois de atravessar a sala do velório, postou-se em pé, junto à cabeça do defunto. Viu Sandino e Leonor entrando no cemitério. Ela teria atenção com ele; não a atenção que ele urdira, mas o cumprimento curto, com secura nos dentes, diferente da umidade dos lábios que ela deixara escapar na véspera.
O caixão não seria coberto pela bandeira vermelha. No vácuo do espaço ao lado, nenhuma coroa de flores em memória do camarada pai que não fora camarada de partido.
Do lado de fora da capela, o mesmo coveiro que abrira a gaveta para depositar o caixão, puxou o sino. O caixão foi fechado. Deu-se o cortejo. Sandino e Leonor seguiram atrás. Os dois fortalecendo os sentimentos recém-abertos, na segunda-feira de sêmens abundantes. Marcílio Castanho não chorou a morte do pai; acostumara-se a vê-lo quase morto na cama, prostrado pelas crises de hemoptises.
Mas Sandino e Leonor, pensou, não tinham o direito de celebrar o amor ali, sabendo-o despojado dela e do pai que deixou poucas lembranças.
Nenhum comentário:
Postar um comentário