04 fevereiro 2015

Golpismo escancarado

Parecer de Gandra é um atentado às instituições democráticas

O jurista Ives Gandra cobra caro por seus pareceres. É sabidamente um competente tributarista e extremado conservador. Recentemente deu um parecer concluindo que a responsabilidade por culpa (negligência, imperícia e imprudência) é suficiente para um processo de impeachment contra um governante. Evidentemente o petardo é dirigido a Presidenta eleita.

Por Percival Maricato*, publicado no Jornal do GGN
Diz Gandra que o parecer foi encomendado por um advogado. É muito comum advogados pedirem pareceres a outros, mas para defender clientes, a quem é entregue a conta. Evidentemente não se pede por curiosidade. Por sua vez, é comum que o parecerista faça esforços para defender as teses favoráveis do requerente, e será tanto melhor quanto com elas se identificar.

Mas há que se ter responsabilidade e limites também na advocacia. No parecer, para dar credibilidade e fundamento, Gandra mostra a Presidenta como uma irresponsável completa e acabada, omissa ante a proliferação de casos de corrupção, limites que até políticos da oposição tem mais cuidado para cruzar. Curioso que o parecer apareça quando um inimigo declarado da Presidenta assume o cargo de Presidente da Câmara Federal, de quem depende o inicio de um processo desse tipo. Alguém está por trás disso tudo, quem sabe se revele, pois já tem seu instrumento para agitar ainda mais o cenário político.

O parecer tem uma lógica jurídica interna coerente, mas a coerência decorre de interpretações subjetivas das normas. Um outro jurista, interpretando os mesmos dispositivos, poderia chegar a uma conclusão totalmente contrária.

A diferença está em que o de Gandra é um desastrado atentado às instituições democráticas. Estas não podem ser submetidas as jogos de interpretações de leis, isoladas do contexto político social do caso que analisa, do regime político vigente. Muito menos podem considerar como algo semelhante a responsabilidade objetiva a exercida por governante sobre os funcionários públicos. Teria ele que ser onisciente e onipresente.

Se não fosse assim, que governante restaria no poder? Até mesmo o prefeito de Xiririca da Serra seria cassado por irresponsabilidade ou corrupção de um fiscal ou policial afoito que recebe R$ 50,00 por não multar um motorista ou comerciante ( vereadores de Xiririca já devem estar agradecidos pelo parecer) . O governador Geraldo Alckmin, por exemplo, seria uma das vítimas, tanto como teria sido FHC, a quem o advogado que requereu o parecer defendeu, ou Kassab, Haddad, Aécio, Lula etc. No caso de Alckmin não faltam episódios de corrupção no governo (casos do Metrô por exemplo) ou de erros dramáticos de avaliação(crise hídrica), ambos revelando culpa, suficiente para impeachment, se aceitarmos as conclusões do parecer. Mas como se pode discutir a legitimidade do governador paulista, eleito recentemente, o valor maior a ser defendido em um Estado Democrático de Direito? Ou a da Presidenta Dilma, eleita após os fatos citados como exemplo por Gandra já serem amplamente conhecidos? O julgamento dos governados não tem valor? Democracia, legitimidade etc, não pesam na hora de dar um parecer?

Temos que aceitar nossas diferenças com os políticos eleitos, pois pior seria explodirmos o regime democrático. Com ou sem guerra civil, ao final o país estaria dividido entre inimigos jurados, os vencedores sem crédito nenhum junto aos vencidos, que aguardariam a oportunidade da revanche. E de quebra, teríamos uma situação onde não poderíamos eleger ou mesmo criticar governantes (ou dar certos pareceres), por décadas, como já aconteceu.
*Percival Maricato é advogado formado pela USP e fundador e diretor jurídico da Abrasel. Artigo originalmente publicado no GGN cm o título "Impeachment para Dilma... e quem mais?"

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