21 junho 2018

Cinema


Reaparições amorosas
Apesar dos contextos diferentes (a ditadura brasileira e a ortodoxia judaica), Amores de Chumbo e Desobediência tratam de amores do passado que ressurgem para bagunçar a relativa harmonia do presente
Carlos Alberto Mattos, na Carta Maior
Memórias do amor e do cárcere
Miguel foi prisioneiro político durante a ditadura. Sua amada Maria Eugênia esteve presa com ele, mas depois exilou-se na França. Sem mais notícias um do outro, refizeram sua vida amorosa. Miguel casou-se com Lúcia, uma amiga comum. Eis que 43 anos depois, enquanto o casal comemora sua longeva felicidade com o filho e a neta, Maria Eugênia reaparece com uma revelação que vai alterar profundamente essa composição afetiva. Amores de Chumbo coloca o passado em perspectiva e investiga os limites do ressentimento e do perdão. 
O projeto inicial da diretora pernambucana Tuca Siqueira era um filme de época sobre a vida dos militantes. Ela é filha do político Luciano Siqueira e da militante Luci Siqueira, ambos presos e torturados no regime militar, e já realizou dois documentários sobre ex-presos políticos na faixa etária dos protagonistas de Amores de Chumbo (um deles, A Mesa Vermelha, pode ser visto aqui. Quando se decidiu por um filme de ficção ambientado nos dias de hoje, colocou a memória como denominador comum entre o ativismo político e os descaminhos do amor. 
Assim é que, nas conversas entre os personagens, são frequentes as menções tanto a Che Guevara e Pablo Neruda quanto a lembranças pessoais como a canção "Negro Amor" na voz de Gal Costa. No entanto, não se trata de um filme nostálgico ou lamuriento. Mais que a dor do que não foi, interessa àquelas pessoas o que será de agora em diante. Como tocar a vida depois de saber que tudo poderia ter sido muito diferente.
Com sua trama relativamente simples e até clássica, Amores de Chumbo alcança uma ressonância maior pela maneira sóbria e intensa com que foi realizado. O elenco de larga experiência no palco, a encenação baseada em tempos distendidos e longos diálogos sem corte, assim como a expressiva alternância da câmera entre proximidade e distanciamento, conferem um forte senso de teatralidade. É extraordinária a maneira como Aderbal Freire-Filho se apropria do personagem de Miguel, um professor de Sociologia que vê sua vida ser reconfigurada a posteriori e experimenta um impasse devastador. As cenas dele com Juliana Carneiro da Cunha (Maria Eugênia) são magnetizantes pelo que transmitem da emoção daquele protocasal irrealizado. É particularmente comovente a sequência em que os dois atualizam suas memórias no interior de uma cela da antiga Casa de Detenção de Recife. Augusta Ferraz (Lúcia) e Rodrigo Riszla (o filho Ernesto) acompanham o mesmo nível de naturalidade e convicção. 
Com esse trabalho, Tuca Siqueira demonstra sensibilidade especial para lidar com dramas individuais conjugados à História, um pouco como tem feito Tata Amaral em seus últimos filmes. Manter-se à margem das tendências "do momento" no cinema brasileiro, preferindo criar uma dicção singular, é outra qualidade que salta aos olhos em Amores de Chumbo.
 
Duas mulheres contra a Torá
Com Desobediência o chileno Sebastián Lelio se consagra como um exímio narrador do feminino em
luta contra condições adversas. A solidão em Glória, a normatividade sexual em A Mulher Fantástica e agora o amor lésbico numa comunidade anglo-judaica ortodoxa. 
A atmosfera claustrofóbica daquele grupo social é enfatizada desde a chegada de Ronit (Rachel Weisz), a ovelha negra que se desgarrou e virou fotógrafa moderninha em Nova York. Ela retorna ao subúrbio de Londres para o funeral do pai e descobre que fora deserdada. Em compensação, reencontra a amiga Esti, com quem teve uma relação amorosa na juventude e agora está casada com um amigo comum, o jovem rabino Dovid (Alessandro Nivola). 
Os ambientes sombrios, os espaços exíguos e os costumes austeros combinam-se para definir tudo aquilo que Ronit não mais tolera. Apesar disso, ela não deixa de ser afetada pelo desprezo do pai e a retração das pessoas por conta de um escândalo no passado. Essas duas dimensões da personagem é uma das riquezas do roteiro baseado no romance homônimo de Naomi Alderman, escritora criada num meio semelhante ao retratado no filme. 
Tal como Ronit, sua amada Esti também se divide. No seu caso, entre o desejo de liberdade e a conformidade com um modo de vida a que ela sente ter sido destinada desde sempre. Na primeira sequência do filme, o venerando rabino Krushka, pai de Ronit, sofre um enfarte justamente enquanto fazia um sermão sobre o livre arbítrio dos homens, a única criação divina capaz de desobedecer. 
Como muitos outros filmes sobre a temática da ortodoxia judaica, Desobediência se esmera na representação dos instintos reprimidos. Conversas interrompidas por temas-tabu, vida sexual extremamente regrada, padronização através de roupas, perucas, etc. Nisso não vai nenhum enfoque novo ou especialmente interessante. O que ressalta é mesmo a relação entre as duas mulheres, assim como as brechas que elas encontram para satisfazerem sua sede de amor após tão longo afastamento.
As atrizes estão corajosas e convincentes em sua química. A direção de Lelio não dispensa os apelos do melodrama, inclusive no uso transbordante da trilha sonora de Matthew Herbert (o mesmo de A Mulher Fantástica). Se o desfecho conciliatório e derrotista decepciona um pouco, é por conta das negociações de uma dramaturgia que ousa somente até certo ponto.
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